Raí, o empreendedor social

Ex-jogador e fundador da Gol de Letra, Raí mostra que esporte, política e mudança social podem andar juntos

Camilla Freitas De Ecoa, em São Paulo Divulgação

Multicampeão pelo São Paulo Futebol Clube, Paris Saint-Germain e seleção brasileira, Raí decidiu, ao aposentar as chuteiras, que seria ídolo também fora das quatro linhas. "Dentro de um país tão desigual e tão injusto, a gente tem que tentar fazer um pouco a mais", disse em bate-papo com Ecoa na última semana. Foi esse pensamento que o levou a se juntar ao também ex-jogador (e atual diretor de futebol do PSG) Leonardo de Araújo e criar, em 1998, a Gol de Letra, fundação que une esporte e cultura por um mundo melhor.

"A missão da fundação é dar oportunidades para crianças e jovens e fazer um movimento de educação comunitária", conta Raí. Mesmo com as sedes fixas na Vila Albertina, em São Paulo, e no Caju, no Rio de Janeiro, a fundação tem encontrado maneiras de se expandir pelo país e pelo mundo.

Como uma rede, a Gol de Letra tem difundido sua metodologia para outros projetos sociais e conseguiu virar política pública em 2013. A Etec de Esportes do Estado de São Paulo tem formado milhares de alunos usando o que aprendeu com a fundação de Raí.

A instituição Atletas pelo Brasil veio logo depois da Gol de Letra e nasceu por iniciativa também do ex-jogador. A organização reúne diversos atletas, em atividade ou não, em prol do esporte e da luta por avanços sociais. A vontade e a ação de unir o esporte e mudança social são os objetivos que movem Raí.

"Só assim a gente vai construir uma sociedade mais justa e, consequentemente, mais harmônica, mais democrática e com mais oportunidades para as pessoas se desenvolverem."

Para conversar um pouco mais sobre a Gol de Letra e a potência do esporte como agente de transformação, Ecoa conversou com o ex-atleta e empreendedor social.

Ecoa - Como aconteceu essa transição do futebol para o empreendedorismo social?

Raí - Eu acho que não existe democracia plena se você não tem o mínimo de igualdade de possibilidades. E isso foi o que me moveu. O fato de que eu tive sucesso na carreira me tornando uma pessoa pública só aumentou essa responsabilidade e essa motivação. Eu não tinha nenhuma experiência como empreendedor social, mas desde o início da Gol de Letra fui sentindo uma vontade de mudar o mundo. Mas aí percebi que eu era parte de uma onda. Quando eu dei os primeiros passos, vi que muita gente já estava se organizando na sociedade civil e eu fui aprendendo algumas coisas.

E que coisas você aprendeu?

Uma delas foi que a maturidade cívica só se consegue através da organização da sociedade civil formando seus grupos para lutar por um objetivo comum. Independentemente do momento econômico e social que o país vive, a sociedade tem sempre que continuar nesse movimento de se organizar. E eu percebi que ser um empreendedor social é contribuir nesta missão de juntar pessoas em torno de causas sociais.

A fundação foi criada em 10 de dezembro, no dia internacional dos direitos humanos, e todas as suas atividades são voltadas para atender a esse tema. Queria saber de você como vê as críticas a quem atua na defesa dos direitos humanos no Brasil.

Não foi por acaso que escolhemos essa data, os nossos ideais e tudo o que nos motivou tem a ver com os direitos humanos. No lançamento da fundação eu falei uma frase que foi usada pelo [Georges Jacques] Danton na Revolução Francesa: "depois do pão, a educação é a primeira necessidade do povo". A diferença enriquece, a gente tem que respeitar todas as opiniões. A gente não pode confundir uma economia liberal, uma economia de mercado, [com uma sociedade] sem garantia a direitos básicos, que são a base dos direitos humanos. A luta por direitos humanos tem que ser uma causa de todos.

Nunca podemos aceitar uma chacina como a do Jacarezinho, por exemplo, 27 garotos pobres, negros assassinados sem chance de defesa. São, sem dúvida, vítimas de um sistema perverso, desigual e desumano. E esse não pode ser o caminho para reverter esta realidade já violenta e cheia de sangue. Precisamos, todos, de oportunidades, justiça e dignidade.

Raí, ex-jogador de futebol e empreendedor social

Gabriel Bouys/AFP

Apesar do nome da fundação, os programas não são voltados só para o futebol e outros esportes. Tem atividades de teatro, cinema e até cursos profissionalizantes. Queria que você comentasse a importância dessa formação mais ampla.

Os fundadores da Gol de Letra vêm do futebol profissional, mas a gente nunca teve como objetivo formar atletas. O nome Gol de Letra remete ao uso do esporte pela educação. A integração entre todas essas linguagens é o que faz a riqueza da Gol de Letra e o que faz a gente alcançar resultados ainda melhores, até porque você acaba desenvolvendo diferentes habilidades durante a formação. Isso é o que a gente chama de educação integral, não só integral no tempo da formação, mas integral envolvendo toda a realidade de onde os integrantes do projeto vivem.

A Gol de Letra também tem vários projetos voltados à participação das mulheres nas atividades esportivas. Como você avalia a presença de mulheres no esporte hoje?

O incentivo à prática do esporte de mulheres, seja qual for a modalidade, ainda é pequeno, mas já é bem maior que no passado. E é algo inevitável. Quando a gente fala de igualdade de gênero, isso passa também pelo esporte. A gente sempre buscou essa igualdade na fundação, mas sem dúvida nenhuma a sociedade clama para que a gente consiga minimizar essa desigualdade. Sem dúvida nenhuma a educação, a cultura e o esporte têm um papel importantíssimo nisso.

O que podemos fazer para que haja equidade no futebol e no esporte em geral?

Toda a desigualdade, quando é flagrante e absurda, a gente tem que buscar algumas compensações como as cotas. E tem que se trabalhar, também, para que essa integração aconteça da maneira mais harmoniosa possível. Além disso, quando a gente fala do esporte profissional a gente vê alguns clubes investindo mais no esporte feminino, mas acho que isso tem que se transformar em uma regra. O que for gerado pelo esporte em termos de recurso precisa, de alguma forma, ser destinado a essa causa.

A Gol de Letra atuou em vários projetos com a parceria de grandes empresas. Qual é a importância da iniciativa privada para a construção de projetos sociais?

A responsabilidade social empresarial não é um conceito novo e é um dos pilares para que uma instituição como a Gol de Letra sobreviva por 23 anos. A gente começou com recursos próprios, e ainda fazemos eventos e mobilizamos pessoas físicas, mas, sem dúvida nenhuma, o setor privado tem uma importância muito grande para a gente. E as empresas também têm um aprendizado com o terceiro setor. Em uma participação que a gente chama de exemplar, eles não só auxiliam financeiramente como participam das decisões envolvendo seus colaboradores. E isso gera até um resultado positivo de lucro para a empresa porque você ganha o reconhecimento da equipe interna e do consumidor.

A gente vê de maneira mais clara nas causas ambientais cada vez mais as pessoas escolhendo produtos de empresas que têm um cuidado com essa causa, e acontece com a questão social também.

A gente só vai conseguir um país melhor para todos quando tivermos um país mais justo, com melhor distribuição de renda e com uma sociedade civil mais organizada e isso passa pela participação das empresas no apoio a essas causas

Raí, ex-jogador de futebol e empreendedor social

Divulgação Divulgação

Muito se fala que filantropia é algo pouco difundido no Brasil. Você concorda com essa afirmação? Como engajar mais a população com trabalho social?

Existem muitos estudos que apontam que quem tem menos colabora mais em termos de porcentagem. Há uma solidariedade entre a classe mais baixa que acaba se ajudando mais do que a ajuda de pessoas com grandes fortunas e o setor privado. Mas acho que é uma cultura que está mudando e está melhorando no Brasil. E isso passa muito por um amadurecimento das próprias instituições ao saber como interagir com esse parceiro do terceiro setor. A gente vê iniciativas até dentro da Bolsa de Valores que incentivam projetos de causas sociais.

Você fez um artigo recentemente falando sobre a situação política do Brasil não só durante a pandemia, mas também em relação às áreas ambientais e sociais. Esse tipo de posicionamento de atletas de futebol em atividade é raro hoje em dia. Por que você acha que isso acontece?

O esporte, de maneira geral, é mais conservador que a própria sociedade. Seria uma utopia esperar que o esporte seja o protagonista nesses posicionamentos, mas dá para a gente esperar que pessoas ou grupos de pessoas se posicionem. O Bahia tem um trabalho muito bonito de posicionamento institucional a favor do meio ambiente e contra o racismo, por exemplo. Isso, quando acontece, tem um impacto grande. A gente tem sempre que lutar e formar pessoas para que elas tenham uma visão mais social, por isso lançamos a fundação, e para que elas entendam o poder de mobilização que o esporte e os esportistas têm.

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Você foi criticado, durante o último período eleitoral, por misturar política e futebol. Como você acha que esses dois temas se misturam?

Tudo é política. Dentro do futebol existe política. Qualquer tipo de ato de um cidadão não deixa de ser um ato político independentemente do impacto e da forma que isso tenha. Mas eu acho que as pessoas precisam buscar embasamento, conhecimento, informação para poder usar o que a sua profissão te permite e para que você possa impactar positivamente dentro daquilo que você acredita. E o esporte tem essa força.

Estamos no Mês do Orgulho LGBTQIA+. Como você avalia a evolução do futebol em relação a temas como homofobia? O que falta para termos jogadores abertamente gays em campo?

O que falta para essa luta contra a homofobia chegar de vez ao futebol é um ambiente propício para que as pessoas possam se expressar. O esporte, na realidade, tem que ser sinônimo de libertação. A gente vê algumas iniciativas para que se possa mudar esses hábitos, mas ainda é algo muito longe de se concretizar.

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