É preciso sonhar

Ex-CEO da Lacoste Brasil, Rachel Maia trabalha para a inclusão e diversidade no mercado de trabalho

Matheus Pichonelli Colaboração para Ecoa Claudio Gatti

Rachel Maia, ex-CEO da Lacoste Brasil, ainda se lembra de quando sua família precisava fazer rodízio de frango aos domingos para que ela e todos os seis irmãos pudessem se alimentar. Mas, mesmo nos tempos mais difíceis, o incentivo à educação sempre esteve presente em casa. "Meu pai queria que eu estudasse, sabia que o estudo me daria uma garantia de futuro", conta ela a Ecoa.

Rachel levou o conselho a sério e se formou em ciências contábeis, com pós-graduação em finanças pela USP, FGV e Harvard Business School. A trajetória em seus quase 30 anos de carreira está contada no livro "Meu Caminho até a Cadeira Número 1". Ali, relata os desafios de uma mulher negra, periférica, que estudou em escola pública e dividia um quarto com todas as irmãs até chegar ao cargo de direção de diversas empresas globais - além de Lacoste e Pandora, ela também já passou por Tiffany & Co., 7-Eleven e Farmácia Novartis.

Aos 51 anos, hoje ela é CEO da própria empresa, a RM Consulting, pela qual presta consultoria em liderança, varejo, diversidade e inclusão. Também é conselheira de companhias como a CVC, Grupo Soma e Banco do Brasil, e ocupa, desde 2019, a cadeira de presidente do Conselho Consultivo do Unicef Brasil.

O trabalho social é outra parte importante de sua vida: Rachel é fundadora da ONG Capacita-me, que se dedica a criar condições para a inclusão no mercado de pessoas em situação de vulnerabilidade socioeconômica. Com sede em São Paulo, o instituto já capacitou mais de 500 jovens e está com planos de expandir para outros estados. Na conversa a seguir, ela relembra sua trajetória e compartilha aprendizados.

Claudio Gatti

ECOA - No filme "King Richard: Criando Campeãs", que concorreu ao Oscar este ano, vemos como os pais das tenistas Venus e Serena Williams foram importantes na construção da autoestima das filhas em um momento em que muita gente duvidava de seus talentos. Em entrevistas recentes, a senhora sempre fala sobre a importância de seus pais no incentivo aos estudos para chegar até onde chegou. A senhora vê paralelos com a história contada no filme?

Rachel Maia - Meu pai e minha mãe foram meus maiores incentivadores. Meu pai queria que eu estudasse, sabia que o estudo me daria uma garantia de futuro. Todos os meus irmãos estudaram. Como ele sempre diz: a educação muda o mundo. Assim como King Richard, meus pais sempre trabalharam e deram duro para sustentar nós sete. Fazíamos rodízio de frango no almoço de domingo. Mas o incentivo à educação sempre esteve presente. De fato, é a educação que vai mudar o mundo.

A senhora já falou em entrevistas sobre ser catequista de crisma. De que maneira a religião pode conectar temas como inclusão e diversidade na sociedade hoje?

Não sou mais catequista, mas fui durante muitos anos. Eu brinco com a minha equipe que eu queria mais 'Rachels' para dar conta de todos os projetos em que eu quero estar.

Se eu fosse conectar o tema, diria que é a sensação de pertencimento, a busca por aquilo que te faz se sentir pertencente, com a qual você se sinta bem e livre para ser quem você é. Talvez seja esse o ponto de conexão.

Claudio Gatti Claudio Gatti

A página da sua empresa, RM Consulting, traz o dado de que as buscas por temas ligados à diversidade mais do que dobraram de 2012 para cá. O que explica esse interesse crescente das empresas?

As empresas perceberam que aquelas que têm em sua base a busca pela diversidade são mais rentáveis. Com o aumento do movimento pelo consumo consciente, a percepção dos consumidores sobre produtos e empresas tem mudado - eles estão muito mais preocupados com as pautas ligadas a ESG [sigla em inglês para "governança ambiental, social e corporativa"] do que antigamente. Em resumo, quem não pensar em diversidade acabará ficando para trás.

Como vê o crescimento de iniciativas que discutem estratégias de inclusão em empresas lideradas ainda majoritariamente por pessoas brancas, sobretudo homens?

Todas as ações que busquem pela inclusão e equidade são válidas e devem ser aplicadas, assim como as ações afirmativas, que comprovadamente trazem uma maior diversidade e equidade para o mercado de trabalho. A RM Consulting tem o propósito de mudar essa estrutura em que vemos apenas homens e pessoas brancas em cargos de liderança. Nós tratamos não só o pilar étnico-racial, mas de gênero também. Queremos mais equidade e diversidade. É para isso que eu acordo todos os dias.

[Sobre a diversidade] eu sempre falo: se não fizer porque é certo, porque é justo com todos para um mundo mais equânime, que se faça pelo ganho financeiro. Mas faça.

Rachel Maia, executiva e fundadora da ONG Capacita-me

Claudio Gatti

Em que medida a senhora acredita que contribuiu e ainda contribui para o debate sobre diversidade no mercado de luxo? Ainda há muito a se fazer quando se pensa em representatividade no marketing, no acesso dos consumidores e também na gestão dessas empresas?

O mercado de luxo normalmente é voltado para o exclusivo. Fui uma das pioneiras ao criar um e-commerce para a Pandora na época em que estive à frente da empresa. Sempre busquei estar um passo à frente. E acredito que diversidade é algo que devemos abordar diariamente.

Toda vez que eu chegava em alguma parte das empresas, eu escutava: "lá vem a Rachel falando de diversidade". É sempre assim. É algo em que eu acredito e que já foi comprovado: uma empresa diversa é mais lucrativa. Então eu falo: se não fizer porque é certo, que se faça pelo ganho financeiro. Mas faça. É uma jornada, mas vimos que já aumentaram o número de empresas buscando por diversidade e isso já me mantém otimista.

De que maneira a iniciativa privada pode pautar e orientar ações relacionadas ao desenvolvimento social e à sustentabilidade? É uma lacuna deixada pelo Estado?

Cada um tem a sua parcela de participação. O governo, ao manter as cotas raciais, por exemplo, aumentou a presença de pessoas negras dentro das universidades. As ações afirmativas são importantes para a contratação de pessoas negras. Tudo é um complemento. Quanto mais iniciativas privadas e públicas falarem sobre diversidade, mais ganho e mais força teremos.

Posso não conseguir mudar o mundo inteiro, mas se eu tiver mudado o mundo de uma pessoa, é o suficiente para me fazer otimista e acreditar que amanhã é possível mudar mais uma.

Rachel Maia, executiva e fundadora da ONG Capacita-me

Claudio Gatti Claudio Gatti

A ONG Capacita-me, criada em 2017, se dedica à inclusão no mercado de trabalho de pessoas em situação de vulnerabilidade. Como ficaram as ações com a pandemia?

A pandemia foi um período difícil para todos nós. A falta de contato, a perda de amigos e familiares…Foi um período de cansaço mental, físico e emocional. Quando tivemos de paralisar os cursos, entramos fortemente com as ações sociais, ou seja, com as entregas de alimentos, produtos de higiene e a preocupação em levar um conforto mínimo para as famílias atendidas pelo Instituto.

Tendo em vista esse cenário, trouxemos nosso Curso de Inovações no Mercado de Trabalho para o modelo EAD. Agora, com a retomada, aumentamos nossa grade de cursos e retomamos o módulo presencial, com esperança de mudar cada vez mais vidas. Um dos nossos planos é ampliar o instituto para outras regiões do país.

Como manter o otimismo com o Brasil atual?

Precisamos manter o pensamento positivo sempre e evitar usar palavras negativas. O pensamento e as palavras têm poder. Eu sigo sonhando e planejando um mundo melhor, seja através das minhas palestras, que podem mudar o mindset de alguém, através da RM Consulting, com nossos letramentos, ou com o Instituto Capacita-me, com ações sociais e de empregabilidade. É como eu sempre digo: é preciso sonhar, planejar e executar.

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