Quem causou em 2020?

Quem fez a diferença no ano da pandemia? Ecoa listou 7 ativistas que fizeram de 2020 um ano melhor

Beatriz Sanz Do ECOA, em São Paulo. Duda Gulman/UOL

Causadores 2020

É inegável que o ano de 2020 foi intenso. Quase 200 mil brasileiros perderam sua vida para a Covid-19 e o desemprego chegou a 14,6%, afetando 14,1 milhões de pessoas no país. Mas talvez exista um fundo de verdade na sabedoria popular que diz que o brasileiro não desiste nunca.

Bons exemplos para isso, aqui em Ecoa, não faltam. Toda segunda-feira destacamos um "causador;" uma pessoa que fez a diferença, mesmo enfrentando diversas adversidades, e polinizou impacto positivo na vida de outras pessoas.

Por isso, Ecoa destacou algumas das pessoas que causaram em 2020. São histórias incríveis e que irão inspirar você a também causar [impactos positivos] no ano que vai começar!

Sheila de Carvalho

Duda Gulman/UOL

Raiva como força

"Tem uma questão da raiva: por muito tempo eu ficava muito brava quando alguém me chamava de raivosa. Enquanto mulher negra, já escutei muitas vezes que eu sou raivosa. Eu acho que cria-se uma figura muito prejudicial da mulher negra por trás disso, então eu ficava com muita raiva dessa expressão (risos) -- falando sério, como você já parte do pressuposto que eu sou raivosa porque eu trago uma realidade que você se recusa a enxergar? Mas como a gente pode não estar com raiva? É isso que impulsiona em mim quando eu leio Angela Davis, Juliana Borges, escuto Djonga ou assisto Olhos que Condenam. Como, passando por tudo isso que a gente passa, a gente não vai ficar com raiva? Se pessoas brancas passassem pelo que a gente passa, também teriam raiva. E a gente passa por isso há séculos. A raiva reprimida pode ser muito danosa. Eu resolvi expressar a minha raiva, transformá-la na força motriz das minhas ações"

Sheila de Carvalho

Sócia do Carvalho Siqueira Advogadas e Advogados, escritório especializado em litígio de interesse público, Sheila também faz parte do grupo Prerrogativas, o qual reúne grandes nomes da advocacia brasileira em prol de mobilização política frente aos ataques das institucionalidades que tem se desenrolado no Brasil. O marco da criação desse grupo foi o processo de impeachment de 2016, episódio do qual Sheila se lembra nitidamente.

E Sheila de Carvalho não para. Depois de ter ganhado perfil aqui no Ecoa, este ano. Ela ainda fez parte do time de advogados que venceu o processo da colunista de Ecoa Bianca Santana contra o presidente Jair Bolsonaro e condenou o presidente a pagar R $10.000 à jornalista.

Sheila também acaba de ganhar menção honrosa do Conselho Nacional dos Direitos Humanos por sua atuação em 2020.

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Noah Scheffel

Tiago Coelho/UOL

"A mãe é um menino"

O que minhas filhas vão pensar? Como vou explicar isso para elas?", eu pensava. Contar sobre mim era minha maior preocupação. Tenho duas filhas: a mais velha se chama Anita, de 7 anos; a mais nova é a Helena, de 4. Fui negligenciando essa conversa, empurrando com a barriga, até que não aguentei mais e decidi falar. Aconteceu enquanto eu e Anita fomos comprar ração para nossos bichinhos. No carro, perguntei para ela: "Você acha que a mãe parece mais um menino ou uma menina?". "Ai, mãe, tu parece um menino", ela me disse. "É isso mesmo: a mãe é um menino", respondi. Na hora, achei que o mundo dela tinha caído. Como assim ela tem uma mãe que é menino? Ansioso, me preparei para mil questionamentos que imaginei que viriam. Até que ela virou para mim e falou: "Tá, mas tu tem que trocar teu nome, né?"

Noah Scheffel

Mãe de uma filha, pai de outra e criador do EducaTRANSforma. Com seu projeto, que surgiu no ano passado, Noah ajuda mais de 160 pessoas trans em todo país a se capacitarem para empregos na área da tecnologia.

"Na pandemia, a gente precisou recriar o programa. E deu certo, porque em uma plataforma online conseguimos colocar essas pessoas para estudar nos melhores horários para elas, conseguimos intensificar a carga horária e reduzir o tempo do curso: o que faríamos em um ano, agora vamos fazer em seis meses", ressalta.

O projeto que começou atendendo a 16 pessoas em Porto Alegre ganhou impulso com o investimento de grandes empresas.

"O Educa mudou tudo, tudo na minha vida. Nós só precisamos de uma primeira oportunidade para mostrar como somos bons e boas no que fazemos. Antes, eu não tinha oportunidade nenhuma na minha vida. Hoje, por causa do projeto, tenho um emprego em uma empresa de tecnologia.

O Noah está sempre preocupado em perguntar como a gente está, principalmente agora durante a pandemia. A maioria das pessoas não têm apoio familiar, não têm morada certa, e ele toda hora aparece para nos perguntar se está tudo certo, se precisamos de ajuda com algo? Então, assim, não é só uma questão de capacitação, de um curso, sabe? É uma questão pessoal. Ele criou uma rede de apoio para quem muitas vezes é abandonado e não tem ninguém com quem contar." Victória Cristine Chuquel Corotto, estagiária em engenharia de software

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Luciana Bispo

Julio Kohl/UOL

Ela não faz caridade: promove direitos

Mudei minha opção de curso na universidade. Fui de Direito para Serviço Social. A ideia, no início, era só a de ajudar minha mãe, criadora de um abrigo para crianças abandonadas no extremo sul de São Paulo. Ao longo dos anos fui entendendo: minha mãe não fazia caridade. Ela promovia direitos. E foi isso que me encantou para continuar a ajudar crianças e adolescentes: vê-los como cidadãos, vê-los exercendo uma cidadania que nunca lhes foi dada. Minha espiritualidade é "tudo junto e separado" com meu trabalho. É a religiosidade que me fortalece. E é meu dever falar e apresentar meu orixá. É meu dever tentar reconstruir famílias desorganizadas e acolher quem me pede força.

Luciana Bispo

A ialorixá Luciana Bispo é a responsável pelo Lar Maria & Sininha, uma instituição cultural que funciona na divisa entre as cidades de Diadema e São Paulo. O espaço que já funcionou como um abrigo temporário atualmente é um espaço cultural que promove oficinas de capoeira, informática, dança, percussão, teatro.

Além disso, Luciana assiste com cestas básicas e doações às famílias que vivem no Morro dos Macacos, uma ocupação que se formou na região, bem próximo ao Lar. O Lar Maria & Sininha é uma herança que ela recebeu de sua mãe, Aparecida Bispo, que criou o espaço. "Eu entendi que minha mãe não estava fazendo caridade, mas uma promoção de direito", destaca.

"Temos um lema: cuidar de quem cuida. Queremos criar um espaço de escuta em que a pessoa diga: 'eu não estou aguentando mais'. Especialmente as mulheres, já que a responsabilidade cai toda no colo delas. É preciso mostrar que não estão sozinhas".

Dona Anna Gomes, moradora do Morro dos Macacos há cerca de cinco anos

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Jacque Chanel

Tuane Fernandes/UOL

Religiosidade horizontal

"Passei a frequentar os cultos na Universal. Depois de um tempo, comecei a me enturmar muito com os LGBTs de lá. Começamos a participar mais ativamente das atividades religiosas. Até que, um dia, durante um culto, o pastor nos chamou até o altar e nos expulsou da igreja na frente de todo mundo" (...) "Nós tentamos subverter essa lógica da Igreja, em que apenas o líder religioso tem espaço para falar. Muitas passaram por processos dolorosos: expulsas de casa, em situação de rua, sem ter qualquer tipo de ajuda... Isso faz com que elas não acreditem que têm direitos. Por isso, deixo sempre que falem o que quiserem, para se sentirem cada vez mais confortáveis para recuperar o poder da fala, principalmente dentro da religião."

Jacque Chanel

A líder religiosa e ativista LGBTQIA+, Jacque Chanel foi abandonada pela mãe biológica aos 13 anos quando revelou que era uma mulher trans. Foi deixada com uma mala na porta da igreja que frequentava e acolhida pelo pastor Rui Beckman, que ela chama de pai.

Depois de ser expulsa de igrejas fundamentalistas, Jacque passou a frequentar igrejas inclusivas. Mas ainda assim não se sentia confortável, já que não se deparou com grupos religiosos voltados para trans e travestis.

Desse incômodo, surgiu o grupo Séforas que, alguns anos depois, se tornaria uma ONG, também coordenada por Jacque.

Além de proporcionar alento, por meio da fé e da acolhida, para pessoas trans e travestis, Jacque oferece jantares e doações de roupas para pessoas em situação de vulnerabilidade.

Antes da pandemia, os encontros aconteciam na ICM (Igreja da Comunidade Metropolitana de São Paulo).

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Fernando Botelho

Theo Marques/UOL

"O que causa nossos problemas é o comportamento humano"

Não era bom para esporte por causa da minha visão e tinha problemas com a leitura, mas eu andava sem bastão, até o momento que não dava mais eu fingir que não tinha deficiência visual. Tive que encarar. (...) Nossos problemas não podem ser resolvidos com a tecnologia. O que causa nossos problemas é o comportamento humano: egoísmo, momentos de fraqueza moral, de desonestidade, de impaciência. Nenhuma dessas coisas é solucionável com tecnologia.

Fernando Botelho

Cego desde os 15 anos de idade, Fernando Botelho desenvolve softwares, programas, extensões e outras tecnologias para ajudar outras pessoas com deficiência visual a acessarem a internet.

"A acessibilidade na internet é importante para ter a educação à distância, para um estudante fazer as tarefas de casa ou interagir com os colegas de curso. Não ter acesso à tecnologia afeta a educação e futuras oportunidades de emprego", explica.

Botelho é fundador da F123, uma empresa social que reinveste todos os recursos arrecadados em projetos sem fins lucrativos.

O F123 Acess, um software criado por ele em 2015 que reformata as páginas web automaticamente, incluindo plataformas como Facebook, YouTube e WhatsApp, acessibilizando o acesso a deficientes visuais e que está disponível em inglês, espanhol e português, é usado em mais de 70 países.

O trabalho de Botelho, que já morou nos Estados Unidos e Suíça e presenciou o atentado de 11 de setembro, em Nova York, também é reconhecido com prêmios como empreendedor social pela Ashoka, organização global que escolhe projetos de vanguarda, e o de empreendedor social de futuro da "Folha de S. Paulo", ambos conquistados em 2012.

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Anna Benite

Pryscilla K./UOL

Cadê as mulheres?

'Onde estão as pessoas que vieram do mesmo lugar que eu e cadê as mulheres?'. Todas as vezes me fazia essa pergunta enquanto andava pelos corredores da universidade de química. Era um lugar tão monocromático. No mestrado, a mesma ausência. Meus orientadores eram dois homens, brancos. Cheguei a ser questionada se não me sentiria mal em ter que interromper meu trabalho de pesquisa para ter filho. Segui em frente, mas o grande problema é que ainda há espaço para esse tipo de atitude, que menospreza e tenta limitar o 'ser mulher'. Por isso, ficava me perguntando: até quando terei que passar por isso? Até quando vou continuar sem pares, sem referências? Em uma disciplina superdifícil, de físico-química-orgânica, comecei a tirar A. E não tinha um só colega de sala que não falasse: "Ah, você é muito esforçada. Parabéns!". Isso me irritava profundamente. Por que eu era a esforçada e quando eram eles que tiravam notas boas, isso era normal, ou eles eram acima da média?

Anna Benite

As mulheres negras doutoras que participam de programa de pós graduação somam apenas 3% do total segundo dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep). Para mudar esse cenário, a química e professora Anna Benite criou em 2015 o projeto "Investiga Menina".


A ideia de Anna e outras pesquisadoras é estimular que meninas negras escolham carreiras de ciências, exatas e tecnológicas.


"Somos a maioria, mas a minoria em direitos. É muito difícil, em sala de aula, um professor fazer referência a uma cientista negra ou a um cientista negro. E isso acontece porque a cultura hegemônica visa o sujeito universal, que é o homem branco. Nosso trabalho é tirar da invisibilidade o passado em produção de Ciência e Tecnologia dos nossos ancestrais africanos e da diáspora, tornando a escola um lugar mais atrativo para todas crianças e adolescentes negros", ressalta.

Filha de professora, Anna teve um vislumbre dos privilégios enquanto atuava como química, mas decidiu se voltar para sala de aula. "Foi o ensino que transformou a minha vida. Antes da Química, aprendi que quem faz verdadeiras transformações é a escola", diz.

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Davi Kopenawa

Victor Moriyama/ISA

O pensamento dos brancos é oco

Omama não nos deu nenhum livro mostrando os desenhos das palavras de Teosi, como os dos brancos. Fixou suas palavras dentro de nós. Mas, para que os brancos as possam escutar, é preciso que sejam desenhadas como as suas. Se não for assim, seu pensamento permanece oco. Quando essas antigas palavras apenas saem de nossas bocas, eles não as entendem direito e as esquecem logo. Uma vez coladas no papel, permanecerão tão presentes para eles quanto os desenhos das palavras de Teosi, que não param de olhar. Isso talvez os faça dizer: "É verdade, os Yanomami não existem à toa. Não caíram do céu. Foi Omama que os criou para viverem na floresta"

Davi Kopenawa, "A queda do Céu"

Em dezembro, Davi foi anunciado como membro da Academia Brasileira de Ciências (ABC). O grupo fundado em 1916 reúne pesquisadores em 14 áreas de conhecimento, como a matemática, biologia, física, química, ciências sociais e biomedicina. Por unanimidade, os membros da academia reconheceram que o líder Yanomami domina saberes tão eficazes e empíricos como qualquer cientista tradicional. "Normalmente, nossos membros são doutores, professores em instituições de pesquisa e com muitas publicações em revistas científicas", explica o antropólogo e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul Ruben Oliver, um dos diretores da Academia Brasileira de Ciências, responsável pela indicação.

Davi é líder xamânico e co-autor do livro "A queda do céu: palavras de um xamã yanomami" (Companhia das Letras), uma mistura de memória, cosmologia e constatação sobre o fim do mundo. A obra foi escrita a partir de relatos de Davi ao antropólogo francês e co-autor Bruce Albert.

É um dos registros mais importantes sobre a cultura, religião e história de um povo indígena já feitos, onde estão descritas fauna e flora locais, as práticas xamânicas, o uso da yãkoãna e o extermínio provocado pelo consumo e ânsia de produção do homem branco, especialmente os garimpeiros que Kopenawa chama de "comedores de terra"

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