Punk na Caatinga

Sozinho, professor desenvolveu plantio sustentável para criar floresta no "deserto" de Sergipe

Marcos Candido De Ecoa, em São Paulo Arquivo Pessoal

Marcelo Prata, 49, é um agricultor que teve o sonho de erguer uma floresta no interior de Sergipe. Mas, em 2012, quando começou a preparar um terreno com cinco hectares na Caatinga, tudo o que tinha era um leve sereno à noite e mais nada. A terra comprada é em declive, e o solo havia sido queimado por décadas pelos donos anteriores. Ali, só umbuzeiros resistiam solitários nas poucas áreas planas, onde despejavam os frutos verdes no solo cada vez mais seco. Marcelo queria ver aquele chão improvável germinar.

Em vez de criar bois ou colocar fogo e arar a terra para a produção, como faziam seus vizinhos, ele desejava ver uma floresta nativa no chão seco. Ali, cresceriam xique-xique, mandacaru, facheiro e cactos que sabiam como viver com pouca água. Além disso, iria cultivar a palma, a babosa e as avermelhadas e exuberantes pitaias.

A seca não era uma surpresa, mas prolongava a impossibilidade de realizar o sonho de uma floresta de espinhos, folhas e frutos. Quando Marcelo andava pelo terreno, ouvia apenas o som dos cascalhos e pedregulhos sob os pés.

De líquido, só o suor que escorria pelo chapéu e pelos óculos. Mas, nessas caminhadas, ele percebia que as pedras, a poeira, as plantas do deserto e o complexo ecossistema do subsolo sabiam como sobreviver à seca. A própria existência delas, apesar dos poucos recursos hídricos ou de manutenção, era prova de sua capacidade de resistir à passagem do tempo, à escassez e à hostilidade do clima.

Por isso, em vez de plantar de maneira ordenada uma só plantação e aplicar veneno contra pragas, decidiu plantar espécies diversas e sem agrotóxicos. Daria uma mão para que a vida continuasse e se prolongasse por ela mesma.

Arquivo pessoal
O terreno de Marcelo Prata antes do projeto de agrofloresta

A técnica adotada por Marcelo é chamada de sistema agroflorestal. Em vez de uma só planta soberana no terreno, o agricultor planta várias espécies nativas ou capazes de resistir ao clima para cultivar o verde natural do bioma.

Com a plantação diversa, a própria vegetação cresce, se organiza e as diferentes espécies se fortalecem, dão frutos e resistem aos insetos sem o uso de agrotóxicos. É como recriar a floresta que existia antes. Apesar de o método estar se popularizando, o agricultor afirma não conhecer outras tentativas de reproduzi-lo no semiárido.

A Caatinga costuma ser apontada como um bioma com menos biodiversidade e produtividade em relação a outros, como a Mata Atlântica e a Amazônia. A concepção, no entanto, não é verdadeira.

"A Caatinga é vista como uma vegetação morta e não traz a beleza de uma Mata Atlântica, mas surpreende naquela época chuvosa", diz o biólogo Wictor Thomas, pesquisador da Caatinga. "A gente vê aquele gradiente, saindo do branco, para uma mata totalmente verde."

A técnica da agrofloresta também carrega princípios filosóficos, difundidos e praticados por indígenas, que acabaram formalizados em pesquisas acadêmicas e por agricultores ecológicos pelo país. Segundo a tese, o ser humano não é capaz de controlar e deve incentivar o equilíbrio das relações do mundo natural.

Para colocar a ideia na prática, Marcelo cavou um tanque na parte baixa do terreno e usou pedras como cerca. Depois, fez canais em direção aos tanques para armazenar a chuva, mas ela nunca vinha. Há cinco anos não chovia.

A palma vive melhor na sombra de um umbuzeiro por receber menos radiação solar. E isso é bom. Os seres humanos sobreviveram até hoje com a ajuda mútua e plantas sempre fizeram isso"

Marcelo Prata, agricultor e professor em Sergipe

Marcelo ia até a cidade de carro, abastecia tonéis em um carro pipa e dirigia de volta ao terreno. Dentro do automóvel, via a paisagem mudar da Mata Atlântica no litoral para o Agreste no interior e, finalmente, chegava no semiárido da Caatinga.

Nem o carro, nem ele, eram preparados para tantas viagens. Com o tempo, os pneus arriaram, e ele se desgastou junto. Dia após dia, tentava se lembrar do porquê ter se mudado para o pequeno município de Gararu, às margens do rio São Francisco. Naquele momento, voltavam à memória as imagens do que havia vivido até ali.

Marcelo morou na cidade de São Cristóvão, onde trabalhava em fábricas e fazia parte de grupos punks anarquistas. Até hoje, lidera uma banda punk chamada Olho por Olho. É um leitor de anarquistas como Pierre-Joseph Proudhon e Mikhail Bakunin e acredita no esforço e na ajuda mútua para mudar a sociedade.

Como alguém acostumado a defender seus valores, Marcelo acabou batendo de frente com um patrão da fábrica na cidade. Protestou contra ordens que considerava injustas e foi demitido. Sem emprego, decidiu se matricular no curso de história e, nos anos seguintes, deu aulas na rede pública de Sergipe.

Mas aquela mesma truculência que via no antigo chefe aparecia no comportamento de seus alunos. Um deles, certa vez, se gabou de ter um revólver para enfrentar a polícia. Depois disso, Marcelo decidiu sair do emprego e recomeçar mais uma vez.

Sem avisar a família, prestou concurso para ser professor em uma escola no semiárido sergipano, na divisa com Alagoas. Quando, enfim, chegou a Gararu, ele descobriu que havia tomado a decisão correta. "As cidades são um câncer em metástase", diz. "Seria mais revolucionário ir para o campo do que tentar uma grande revolução nas fábricas".

Awá Arã Mura/UOL Awá Arã Mura/UOL

O terreno comprado da mãe de um colega da banda poderia ter vários destinos. Marcelo poderia criar animais, cultivar comida para vendê-la ou tentar algo diferente.

No início, ele plantou milho, feijão, abóbora, melancia, quiabo e outros grãos e legumes que não resistiram à seca. Outras, como a jabuticaba, a romãzeira, a moringa e um pé de acerola ficaram em pé, mas sofriam com a pouca água.

Na escola em que dava aula, Marcelo ensinava sobre plantas medicinais, como o mulungu, e frutas como o umbu e o fruto do xique-xique. "Eu me impressionei como, mesmo na seca, elas sobreviviam", diz. Então, teve a ideia de plantar espécies da Caatinga e restaurar o terreno degradado com plantas medicinais, frutos e legumes do bioma que lentamente vinham desaparecendo das plantações ao redor. Começou com umbuzeiros, maracujá da Caatinga, uva do mato.

Cercou o terreno com cactos como o xique-xique e o mandacaru. "Ao contrário do que pensam, os cactos dão frutos deliciosos", diz. Plantou uma árvore de amburana e reservou espaço para a babosa, a palma, a abóbora.

Um dia, dirigiu da casa onde mora com a família até o terreno e teve uma surpresa: a chuva caiu. Era o início do inverno, a água escorria pelas pedras organizadas no terreno, irrigava o solo e enchia os tanques. No ano seguinte, mais chuva. Com ela, floresceram os pés de jabuticaba, as acerolas, os frutos do mandacaru, do quipá, os maxixes. Os cactos deram flor.

Arquivo/Reprodução
Marcelo Prata colhe o umbu em sua floresta na Caatinga

Dali em diante, a família foi ao terreno colher umbus e as batatas do umbuzeiro, fazer doce de mandacaru, servir abóboras para o jantar. "Eu garanti segurança alimentar para a minha família e revitalizar a terra", diz ele.

"O que também é forma de pensar em uma sociedade menos consumista. Se eu me planto, posso compartilhar, me nutrir, e participar menos da lógica capitalista". E pelos caminhos feitos com babosa e palma, o chão antes empoeirado foi ficando verde.

Em março de 2021, a velha estiagem retornou implacável e, de longe, Marcelo viu uma fumaça que subia do terreno. Ele correu para ver o que estava acontecendo, e viu despedaçado os umbuzeiros que existiam desde que chegou ali.

Um vizinho 'coivarou' o próprio terreno, o que significa botar fogo para o pasto ou arado. As chamas, que não respeitam cercas, foram levadas pelo vento, atravessaram o território e destruíram árvores que resistiram por quase uma década anos de irradiação solar e ao efeito ininterrupto do tempo e do calor. "Foi desolador", lembra.

Ao pé de um umbuzeiro com oito anos de crescimento, com a voz embargada, ele gravou um vídeo. "A floresta exuberante é autônoma, e ela se mantém. Não promova degradação. Vamos praticar a regeneração", diz. Os caminhos verdes foram substituídos por trilhas de cinzas e fuligem, mas ele pretendia ajudar a floresta a se erguer de novo, mesmo sem saber se a seca duraria cinco anos outra vez.

A seca foi minha grande mestra e sofrê-la logo de início me ajudou a entender a floresta da Caatinga

Marcelo Prata

O que o agricultor sabia é que a floresta, diversa e natural, se restauraria. "E eu recomecei um trabalho de formiga", diz. Ele replantou babosas para nutrir e estabilizar o solo e misturou o material orgânico das folhas e cascalhos.

E ele deu um nome à sua floresta: Paêbirú. O nome é uma homenagem ao disco experimental de Zé Ramalho e Lula Cortês dos anos 60. O termo significa "caminho da montanha do Sul".

"Eu associei esse disco com o que vislumbrei na seca: uma serra enorme, o rio Capivara seco, o sol escaldante e derretendo abaixo, fazendo o sistema funcionar".

Oito anos depois de dar início ao reflorestamento da área, sendo cinco sem chuva, e um incêndio em março deste ano, choveu mais uma vez na floresta semiárida de Marcelo.

A água escorreu e encheu os tanques com água. Em algumas semanas, as plantas que foram queimadas adquiriram novamente a cor esverdeada na Caatinga. Com a filha no colo, ele desceu até o tanque e botou os pés na água, rodeado por árvores e cactos. Ajeitou os óculos. "A chuva para quem mora no semiárido nordestino é a vida", conclui.

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