Sete coisas positivas

Técnica Pia Sundhage criou filosofia de liderança e rodou mundo defendendo direito de mulheres jogarem futebol

Fernanda Schimidt De Ecoa, em São Paulo (SP) Ricardo Borges/UOL

Aos 6 anos, Pia Sundhage mudou de nome para poder jogar futebol no time dos meninos. Mulheres não podiam competir, então, por dois anos, Pia foi chamada de Pelle - nome masculino que lembrava Pelé, seu grande ídolo ao lado de Johan Cruyff e Franz Beckenbauer.

Ela agarrou-se àquela oportunidade e a transformou em uma carreira inigualável. Como jogadora foram mais de 300 gols em clubes e 146 jogos pela seleção sueca e uma medalha de bronze na Copa de 1991; como técnica levou os Estados Unidos a dois ouros olímpicos e ganhou a prata na Rio 2016 com as conterrâneas suecas. Uma das principais embaixadoras da modalidade, Pia Sundhage luta há cinco décadas para que nenhuma garota precise trocar de nome novamente e que a sociedade veja no futebol feminino uma possibilidade real de futuro, com investimento e salários equivalentes ao masculino.

"Todos irão ganhar se apoiarmos tanto os homens quanto as mulheres", diz Pia, 61. Ela gosta de fazer paralelos entre a vida dentro de campo e os desafios enfrentados por nós, não atletas, no cotidiano. Tanto que escreveu, após os Jogos de 2008 em Pequim, um livro sobre liderança em parceria com a mentora Elisabeth Solin. "Jogue no melhor pé - sobre liderar com alegria" reúne os aprendizados e a filosofia positiva que Pia construiu ao longo da carreira — difícil não pensar em Ted Lasso, personagem criado por Jason Sudeikis na premiada série de mesmo nome (e desconhecido de Pia).

À frente da seleção de Marta desde 2019, a técnica se mudou para o Rio e conquistou elenco e público brasileiro, com um violão no braço e cantando Alceu Valença, num português ainda truncado. O instrumento é seu refúgio da vida na estrada desde o início da carreira, e a voz afinada já tinha ganhado a Suécia no fim dos anos 80, quando protagonizou o hino empoderado "Nós somos garotas. Nós somos as melhores" ao lado das companheiras de seleção.

Na conversa com Ecoa, Pia Sundhage deu dicas de liderança, falou sobre igualdade e o papel social do futebol e compartilhou o que a fez sair do armário após uma carreira se esquivando de perguntas pessoais.

Quando você tem a oportunidade de falar sobre si, sinto que tenta mudar o foco do indivíduo para o coletivo. Não é sobre você, mas sobre o futebol feminino. Sempre foi assim?

Sim, sempre foi assim. E procuro falar também sobre o contexto em que estou, porque nunca estou sozinha. Como técnica, não sirvo para nada sozinha. Mas, junto com outras pessoas, atinjo o meu melhor.

É mais fácil para mim falar sobre o coletivo por duas razões. Primeiro, porque cresci numa família grande, tenho cinco irmãos, e naquela época eu não podia jogar futebol por ser uma menina. Mas as pessoas no meu entorno deixaram que eu jogasse com os meninos, então sei quão importante é um grupo. Mesmo quando joguei por muitos anos na seleção e marcava gols, sempre tinha recebido a bola de alguém. Treinei estrelas como a Abby [Wambach], a Marta, a Carly Lloyd, Megan Rapinoe e, na Suécia, a Lotta Schelin e Caroline Seger, e, se você perguntar a elas, é claro que ficam felizes de fazer gols, mas no fim do dia o que importa é o time. É como a sociedade. Seria chato se, eu agora morando no Rio, não tivesse vizinhos, se não tivesse com quem compartilhar o que estou sentindo e fazendo.

Você mencionou que não podia jogar futebol quando era criança e que entrou no time como um garoto. Isso parece roteiro de filme.

Sim! E a melhor parte é que não foram meus pais, irmãos e irmãs que disseram "você vai jogar", foi o vilarejo [em que eu morava]. Eu jogava com os meninos, meus vizinhos. Então, de novo, estamos falando do time, da sociedade, uma sociedade que era mente-aberta, uma sociedade bem pequena, um vilarejo com 500 pessoas ou coisa do tipo. Todo mundo conhecia todo mundo. Minha mãe e meu pai disseram "a Pia é um pouco esquisita, mas tudo bem". Não tinha problema ser diferente naquela época. Eu amava jogar e era sempre a última a sair do campo. Eles permitiram que eu fizesse o que gostava.

E você usava o nome Pelle [apelido de Per - algo como Pedrinho], que é um pouco genial para uma criança fã de Pelé.

Sim, tinha isso. Sabe, eu sonhava em ser uma jogadora profissional, e as mulheres nem treinavam futebol. Eles mudaram meu nome de Pia, um nome feminino, para Pelle, um nome de menino. Era meio fácil enganar, na verdade. E, de novo, não foi minha mãe nem meu pai, foi um dos técnicos do time dos meninos. "Se você quer jogar de verdade, com juízes e gol, linhas, vamos ter de trapacear um pouquinho. Então a gente te chama de Pelle". Por mim estava tudo bem. Só depois contei pros meus pais e eles disseram "ok" e era isso. O propósito para eles era me ver feliz, isso era o mais importante. Eu estava satisfeita, estava feliz, então tanto fazia qual o seu nome ou o seu gênero.

Ricardo Borges/UOL Ricardo Borges/UOL

As jogadoras da seleção têm uma música própria, "Jogadeira", e também "Brasil Chegou", na qual você toca violão. Você também teve o seu próprio hino lá atrás, "Nós somos garotas. Nós somos as melhores". Qual significado a música tem para você?

Meu irmão mais velho me ensinou a tocar guitarra. Começou com Bob Dylan, três acordes. Aí eu queria tocar um pouquinho mais e fui para Paul Simon e Art Garfunkel. Tendo estado em tantas partes do mundo, é algo que faz com que eu me sinta em casa. A primeira coisa que comprei quando mudei pros Estados Unidos e pro Rio foi um violão. E, aqui, uso a música também para aprender português e curtir a vida.

Lá atrás, quando a gente viajava para jogos, eu sentava no ônibus e tocava meu violão. Aí acho que em 1987 quiseram fazer algo diferente para a seleção feminina sueca. Criaram duas músicas e uma delas era "Nós somos garotas. Nós somos as melhores". Perguntaram se eu queria cantar a música e ir com o time para um estúdio de verdade. Lembro até hoje daquela sensação. Estava tão bom que eu pensei "caramba, devia ter sido uma estrela pop!" Você vai acrescentando pessoas e instrumentos e vai ficando melhor e melhor. Foi fantástico.

Estamos vendo mais investimento e espaço para o futebol feminino no Brasil. Como você acha que isso impacta as jovens garotas que sonham em jogar, como você sonhou?

É tão importante ter bons exemplos. Quando eu era pequena, tinha três grandes jogadores que eu adorava. Era o [Johan] Cruyff, o Pelé e o [Franz] Beckenbauer. Não tinha nenhuma garota. Mas agora as pessoas falam sobre a Alex Morgan, por exemplo, e sobre a Caroline Seger. Nós temos homens e mulhers, não é só sobre Neymar. A Marta é uma estrela gigantesca aqui. Gosto de pensar que, se as pessoas me reconhecem, elas estão reconhecendo o futebol feminino. Se estão me entrevistando, como você está fazendo agora, estão entrevistando o futebol feminino. E isso é tão importante para aquela garotinha - e para o garotinho.

Até hoje algumas páginas separam entre 'futebol' e 'futebol feminino'. Não gosto disso, acho injusto. As palavras que usamos importam. Tenho lutado por isso. Deveria ser como na Suécia hoje, diz 'futebol masculino' e 'futebol feminino'. Porque futebol não é só de homens.

Pia Sundhage, técnica da seleção feminina de futebol

Ricardo Borges/UOL

Quando olhamos para o crescimento do futebol feminino, é preciso partir de uma perspectiva profissional de trabalho, que inclui acesso a alimentação adequada, saúde, bom salário, licença maternidade... O que precisa ser feito para que isso aconteça?

O fato é que no mundo a maioria das jogadoras não é profissional. Então depende de para onde você olha. Se vê o treino do Flamengo feminino, por exemplo, e depois vai para Corinthians ou Palmeiras, é uma grande diferença. Mas te digo que estou aqui há dois anos e acho que a mudança está acontecendo, pouco a pouco, e é imparável.

A única coisa perigosa é quando se diz "temos de investir", mas não se tem ações por trás das palavras. Você faz porque é obrigado, não porque acha que é importante. Não acredito que daremos um grande passo até que você entreviste um treinador ou um jogador e eles falem a mesma coisa que eu. Porque todos irão ganhar se apoiarmos tanto os homens quanto as mulheres, as meninas e os meninos. É só olhar para a discussão sobre a equidade salarial.

Você vê o futebol como uma ferramenta social?

Absolutamente. Se você joga futebol no mesmo parquinho, você toma conta desse parquinho. O jogo é como a vida, basicamente. É sobre confiança, trabalho em equipe, humildade, respeitar o seu oponente. E o fato de muitas pessoas amarem futebol faz com que seja uma grande ferramenta para mudar o mundo e as vidas das pessoas.

Com frequência você ouve mulheres, nomes grandes, falando 'precisamos de salários equivalentes'. Você imagina se um dos grandes jogadores ou alguém com muito poder diz 'isso é importante, precisamos fazer alguma coisa'? Isso tornará a sociedade melhor. Futebol é um esporte tão grande e tem um impacto enorme na sociedade.

Pia Sundhage, sobre a importância de ter craques como aliados do futebol feminino

Ricardo Borges/UOL

Você escreveu um livro sobre liderança. Quais são os paralelos entre o esporte e a vida em geral ou o trabalho?

Escrevi o livro após a medalha de ouro olímpica de 2008 [com os Estados Unidos]. Eu tinha um time ótimo, e ter boas jogadoras é uma fórmula para vencer, pode-se dizer. Mas aproveitei a oportunidade para treinar a minha liderança. Acredito que todos nós pertencemos a um grupo. Você tem a dinâmica de equipe, algumas líderes, uma capitã, tantas coisas que podemos usar na vida, na família ou no trabalho. Cada técnica ou técnico tem a sua filosofia, e ao longo dos anos fui fazendo anotações, tive muitos técnicos, bons, mas também ruins.

Então, quando comecei a treinar a seleção feminina sub-16 da Suécia - eu tinha 30 na época -, sentei e escrevi a minha filosofia para liderança. Foi importante porque era como um guia para mim. Sempre que fico um pouco hesitante, me olho no espelho e pergunto "quais são as suas filosofias?" E isso vale para a vida pessoal também. "O que eu apoio?" E não importa se você está liderando um time ou uma fábrica ou se é mãe ou pai... se você tem um grupo com um ótimo ambiente, tudo se resume a respeito. E por isso é importante desenvolver a diversidade.

E a sua filosofia tem muito a ver com alegria, pelo que pude entender. Como você a descreveria?

Bem, eu sou uma pessoa positiva. Eu treino no meu melhor quando estou positiva. Tento fugir do "isso não está bom o suficiente". E acho que fiz um bom trabalho. Tento encontrar o melhor e pedir para as pessoas procurarem o melhor. Quando dou feedback, tenho uma coisa que chamo de Sete-Um. Minha experiência demonstrou que são necessárias sete coisas positivas para fazer com que alguém abrace uma negativa. Já ouvi gente dizer "me diz na lata, eu aguento". Mas não aguentam. Eu realmente quero que ela abrace o feedback que estou dando. Tento ser positiva e dizer que acredito nelas e que vão conseguir.

Claro que é diferente de uma jogadora para a outra. Eu não as trato igualmente. Acho que isso seria errado. Trato diferente, porque elas são diferentes. Realmente preciso desenvolver uma relação com elas. Você precisa merecer o respeito delas. E como você faz isso? Vendo jogar, ouvindo, perguntando como elas se sentem e então com o meu feedback. Não estou trabalhando na base, tenho de levar isso em consideração quando faço algumas coisas. Se eu fosse uma professora na escola, teria de mudar meu estilo de liderança um pouco, assim como mudei aqui no Brasil em comparação com a Suécia ou EUA, é claro.

As dicas de liderança de Pia Sundhage

  • Autoconhecimento

    "Não sei o que funciona para você. Ouvi isso de uma das minhas mentoras, e ela disse: 'você precisa descobrir sozinha do que você precisa'. E é aí que eu começo"

  • Pontos fortes e a melhorar

    "Então o que eu faço é: me olho no espelho e pergunto: 'ok, quais são as minhas fortalezas?' Você tem de ser generosa com você mesma. 'Sou boa nisso, nisso e naquilo'. Ok. E a outra coisa é 'bom, e quais são as minhas fraquezas?'"

  • Tenha ajuda com o que precisa aprimorar

    "Como você poderia esconder as suas fraquezas? O que eu faço é eu trago um time por trás do time. Por isso que tenho tantos técnicos assistentes, tipos diferentes de especialistas. E eu garanto que eles cubram as minhas fraquezas"

  • Inteligência emocional

    "Tento desafiá-las, mas depende como elas são. O lado emocional, eu impulsiono quando é a hora certa e desafio quando tem altos e baixos."

  • Errar faz parte

    "Outra coisa que percebi é que tenho de ter coragem e que está tudo bem se você errar -- e eu fiz alguns erros, acredite. O pior erro que você pode fazer é nem tentar. Então, você tenta e talvez acaba exagerando demais. E tudo bem, desde que você tenha consciência disso. Não pode repetir sempre os mesmos erros. É importante como você lida com o erro, mas você precisa errar, de outro jeito você não vai melhorar."

Ricardo Borges/UOL Ricardo Borges/UOL

Temos visto atletas assumir posições publicamente e lutar por igualdade de gênero, casamento igualitário e contra assédio e violência. E as jogadoras de futebol têm tido um papel expressivo nisso, desde Abby Wambach a Megan Rapinoe, Nilla Fischer, Lina Hurtig, Quinn, Marta e Cristiane. Que impacto isso teria tido na pequena Pia lá atrás?

Acho que elas são muito corajosas para começo de conversa. É fácil quando elas têm, como posso dizer, as "opiniões corretas". Então todo mundo gosta. Quando se trata de salário equivalente e direitos humanos, é fantástico. Elas realmente assumiram riscos. É ótimo quando elas expressam suas opiniões sobre o esporte, tudo o que está acontecendo, seja Fifa, Uefa, equidade salarial e assim por diante. Mas sobre outros assuntos é interessante, não estou dizendo que é errado... Já encontrei notícias sobre pessoas famosas com opiniões sobre assuntos que não o esporte. Aí você cria um debate porque uma pessoa famosa deu uma opinião sobre algo, não concordo. Mas no geral eu acho ótimo, uma ótima maneira para mudar o futebol feminino.

Você esteve na EuroPride em 2018 e fez um discurso sobre amor, diversidade e que estava na hora de entrar na luta por direitos LGBTQIA+ e cantou "I Won't Back Down". O que te fez se abrir?

O que eu pensei foi... recebo essa pergunta desde os 25 anos sobre a minha vida privada e eu disse lá atrás "não, se você me entrevistar tem de ser sobre futebol", porque não tínhamos muito tempo ou espaço no jornal, então tinha de ser sobre futebol. Era uma coisa pessoal para mim. Tomei essa decisão muito cedo. E, dito isso, tenho um respeito imenso por aquelas que tiveram outras respostas, que se assumiram e falavam sobre suas vidas. Sou muito grata por isso. Mas o que eu queria ser era uma jogadora de futebol e técnica. E dessa vez eu me ouvi dizendo "sim". E aí "putz, agora tenho de fazer". Então só fiz. Me senti bem, fiz algo que achei que era o certo. E pude cantar um pouco, fazer um pouco a diferença.

Mas, como falei, espero que as pessoas me vejam como embaixadora do futebol feminino, do direito das mulheres de jogar futebol, e essa é meio que a minha missão. Acho que isso é suficiente.

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