Escritos da crise

Reflexões sobre a pandemia viram livros inéditos e entrevistas com grandes pensadores no Brasil e no mundo

Rodrigo Bertolloto De Ecoa, em São Paulo

A pandemia, o isolamento social, a crise econômica. Tudo isso está fazendo a gente refletir muito sobre a vida que levamos e o mundo em que vivemos. Se isso acontece comigo e com você, imagina com quem é profissional da reflexão, do olhar com atenção para a sociedade e trazer isso em textos que vão além dos posts de rede social.

Pensadores e intelectuais estão publicando muitas ideias durante essa quarentena, seja em livros, ensaios ou em entrevistas. Como nós, eles tateiam o presente e tentam vislumbrar o futuro próximo, usando o conhecimento acadêmico e a vivência política e tentam achar lições em meio à calamidade sanitária e social. Cada um com seu ponto de vista. Cada um com seu repertório de conhecimento.

Ecoa selecionou um time variado que andou pensando sobre o que está acontecendo na cabeça deles e no mundo convulsionado. Para quem gostou de algum autor, pensamento ou tema e queira se aprofundar nas ideias, há um link para o texto original (alguns são livros cuja renda da venda será destinada a entidades que ajuda atingidos pela pandemia).

Fortalecimento coletivo

Para aqueles de nós que se sentem muito sozinhos durante o distanciamento social: devemos nos fortalecer, todos podemos nos sentir fortalecidos e energizados pela conexão com pessoas de outros cantos do planeta que neste exato momento passam por situação semelhante. Fico pensando no que se passa na Palestina agora. No que se passa no Curdistão, especialmente no Curdistão sírio... Estou preocupada com as populações que se encontram sempre sujeitas a diferentes formas de repressão e que são muito mais vulneráveis durante este período de resposta falha ao coronavírus. (...)

Somos obrigados a viver dentro dos limites dos estados-nação. Estes, porém, não funcionam de um modo que melhore a vida. De fato, o estado-nação está se tornando cada vez mais obsoleto. E é o que vemos agora. Então, realmente busco conversas e organizações globais, internacionais, e acho que este tipo de troca deve acontecer mais e mais vezes. Organização digital, sim! E precisamos estar preparados para um novo começo quando finalmente entrarmos em contato uns com os outros pessoalmente.

  • Angela Davis

    Trecho de texto da professora e filósofa dos EUA, no livro "Construindo Movimentos - Uma Conversa em Época de Pandemia", de Angela Davis e Naomi Klein (editora Boitempo)

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Flecha do tempo

Considerando que viver é artimanha que se cultiva entre aquilo que se enxerga e aquilo que mora no invisível, seguimos o rastro da flecha que atravessa o tempo: o contrário da vida não é a morte, o contrário da vida é o desencanto. Para os saberes que margeiam essa terra e sopram ar, hálito e palavras de força para afugentar o espectro colonial, vida e morte transbordam os limites de uma compressão meramente fisiológica para se inscrever em outras dimensões.

Assim, cabe falarmos em mortandade e vivacidade, considerando que a primeira é um estado de desencanto da vida, e a segunda é a experiência do ser integral e integrado como a natureza, mesmo que eventualmente tenha morrido.

  • Luiz Antonio Simas e Luiz Rufino

    Trecho do livro gratuito "Encantamento - Sobre a Política da Vida", de Luiz Antonio Simas e Luiz Rufino (Mórula Editorial)

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Terra pede silêncio

O vírus está querendo nos "desligar", tirando nosso oxigênio. Quando a Covid-19 ataca os pulmões, o doente precisa de um respirador, um aparelho para alimentação de oxigênio, se não ele morre. Quantas máquinas dessas vamos ter de fazer para sete bilhões de pessoas no planeta?

A nossa mãe, a Terra, nos dá de graça o oxigênio, nos põe para dormir, nos desperta de manhã com o sol, deixa os pássaros cantarem, as correntezas e as brisas se moverem, cria esse mundo maravilhoso para compartilhar, e o que a gente faz com ele?

O que estamos vivendo pode ser a obra de uma mãe amorosa que decidiu fazer o filho calar a boca um instante. Não porque não goste dele, mas por querer lhe ensinar alguma coisa. "Filho, silêncio". A Terra está falando isso para humanidade. E ela é tão maravilhosa que não dá ordem. Ela simplesmente está pedindo: "Silêncio". Esse também é o significado do recolhimento.

  • Ailton Krenak

    Trecho publicado pelo líder indígena, ambientalista e escritor no livro gratuito "O Amanhã Não Está À Venda", de Ailton Krenak (editora Companhia das Letras)

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Declaração de dependência

Se olharmos para a história das sociedades modernas, elas estiveram impregnadas de surtos relativamente regulares, mas, no passado, as pessoas tendiam a voltar aos seus hábitos comuns de existência. O novo agora é que vemos que, por causa da globalização, a interconectividade das vidas humanas na Terra é mais forte e precisamos de uma consciência compartilhada da imunidade. A imunidade será a grande questão filosófica e política após a pandemia. (...)

O conceito de coimunidade implica aspectos de solidariedade biológica e de coerência social e jurídica. Essa crise revela a necessidade de uma prática mais profunda do mutualismo, ou seja, proteção mútua generalizada. (...) Vejo, no futuro, a competição pela imunidade ser substituída por uma nova consciência da comunidade, pela necessidade de promover a comunidade, fruto da observação de que a sobrevivência é indiferente às nacionalidades e às civilizações. (...)

Nos dois últimos séculos, a maior preocupação das entidades políticas, dos Estados-nação, girou em torno da independência. No futuro, precisamos de uma declaração geral de dependência universal; a ideia básica de comunidade. A necessidade de um escudo universal que proteja todos os membros da comunidade humana não é mais algo utópico. A enorme interação médica em todo o mundo está provando que isso já funciona.

  • Peter Sloterdijk

    Trechos da entrevista que o filósofo alemão deu ao jornal "El País"

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Política de não-violência

Uma compreensão da interdependência global, manifestada agora de forma aguda na pandemia, traz à tona esse tipo de obrigação global. Na minha opinião, uma ética e uma política de não-violência devem ter caráter global, reformulando a fronteira como um local de relacionamento, controverso e crucial (...)

Seria importante entender a distribuição de alimentos, o desmatamento e os cuidados com a saúde não apenas à luz da ideia de interdependência global, mas também em relação aos direitos dos migrantes de atravessar fronteiras e pedir asilo ou residência.

Na maioria das vezes, temos boas razões para entender a dependência como uma condição de exploração, mas, quando reformulada como interdependência, pode se tornar uma ética e política global comprometida com a igualdade social.

  • Judith Butler

    Trechos de entrevista da filósofa e professora norte-americana de Literatura Comparada para o site The Nation

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Um corpo diferente

A pandemia vai mudar a maneira como lidamos com o nosso corpo. Nosso corpo se tornou uma ameaça para nós próprios. A segunda consequência é a transformação da maneira como pensamos no futuro, nossa consciência do tempo.

De repente, não sabemos como será o amanhã.

  • Achille Mbembe

    Trecho de entrevista do filósofo e teórico político camaronês para o jornal "Folha de S. Paulo"

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Intelectuais de retaguarda

A revista "The Economist" mostrava no início deste ano que as epidemias tendem a ser menos letais em países democráticos devido à livre circulação de informação. Mas, como as democracias estão cada vez mais vulneráveis às "fake news", teremos de imaginar soluções democráticas assentes na democracia participativa no nível dos bairros e das comunidades e na educação cívica orientada para a solidariedade e a cooperação, não para o empreendedorismo e a competitividade a todo custo (...)

Por muitas razões, tenho defendido que o tempo dos intelectuais de vanguarda acabou. Os intelectuais devem aceitar-se como intelectuais de retaguarda, devem estar atentos às necessidades e às aspirações dos cidadãos comuns e saber partir delas para teorizar. De outro modo, os cidadãos estarão indefesos perante os únicos que sabem falar sua linguagem e entender suas inquietações. Em muitos países, esses são os pastores evangélicos conservadores ou os imãs do islamismo radical, apologistas da dominação capitalista, colonialista e patriarcal.

  • Boaventura de Sousa Santos

    Trecho escrito pelo Professor e filósofo português no livro "A Cruel Pedagogia do Vírus", de Boaventura de Sousa Santos (editora Boitempo)

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Renascimento

Para mim e para toda a humanidade, este é um momento de virada. Para mim, porque você chega e vai mudar tudo o que há. Para a humanidade, porque a pandemia escancara que é impossível seguirmos existindo no mundo da mesma forma.

Nasce uma criança. Eu renasço no parto. Nascerá um mundo novo? Não posso dizer que sim, mas, com você, posso ter o tanto de fé necessária para continuar a trabalhar por ele.

  • Taliria Petrone

    Trecho escrito pela política e ativista no livro "(Re)Nascer em Tempos de Pandemia", de Talíria Petrone (editora Boitempo)

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Uma revolução humana

O vírus não derrotará o capitalismo. A revolução viral não ocorrerá. Nenhum vírus é capaz de fazer a revolução. O vírus nos isola e nos individualiza. Não gera nenhum sentimento forte de coletividade. De alguma forma, cada um se importa apenas com sua própria sobrevivência.

A solidariedade de manter distâncias mútuas não é uma solidariedade que nos permite sonhar com uma sociedade diferente, mais pacífica e justa. Não podemos deixar a revolução nas mãos do vírus. Vamos torcer para que após o vírus venha uma revolução humana.

Somos nós, as pessoas dotadas de razão, que temos que repensar e restringir radicalmente o capitalismo destrutivo, e também nossa mobilidade ilimitada e destrutiva, para nos salvar, salvar o clima e nosso belo planeta.

  • Byung-Chul Han

    Ensaio publicado pelo filósofo sul-coreano em vários jornais, incluindo "El País"

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Não é página em branco

O que me impressiona primeiro é a tremenda cooperação, em escala global, de nossos cientistas, e o progresso muito rápido que eles estão fazendo, por exemplo, para encontrar o código genético desse vírus e pesquisar uma vacina e tratamento. Não é a globalização que cria vírus. A peste negra no século 14 matou metade da população europeia, e a globalização não teve nada a ver com isso.

O mundo de antes nunca volta. Tente agora voltar um pouco para a década de 1970. Mas, por outro lado, você nunca começa do zero. A história nunca é uma página em branco. Quem acredita que tudo continuará igual está errado. Quem acredita que tudo vai mudar também está enganado.

  • André Comte-Sponville

    Trecho de entrevista do filósofo francês para o jornal belga "L'Echo"

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