História recuperada

Invisibilizados no passado, pensadores negros foram essenciais para a construção da consciência racial no país

Thaís Regina Colaboração para Ecoa, de São Paulo Vilson Vicente/UOL

Você costuma pensar nas aulas de História que teve ao longo da infância e adolescência? Pode ser aquele exercício nostálgico de tentar resgatar os nomes dos professores que marcaram a forma de se perceber o mundo, mas principalmente lembrar o que foi ensinado para você sobre a fundação deste país. Muito mais do que um contrato de trabalho forçado e compulsório, a violência do regime escravocrata foi alicerce das nossas instituições e projeto de sociedade. Para que a manutenção dessas estruturas fosse possível, grandes pensadores brasileiros não tiveram seus nomes escritos nas lousas das escolas. Apesar de invisibilizadas, suas histórias foram fundamentais para a construção da consciência racial do Brasil.

"A minha geração do movimento negro [da década de 80] ajudou a derrubar o mito da democracia racial", declara a educadora e ativista carioca Janete Ribeiro, de 57 anos, "Hoje, no pós-politicas de ação afirmativa, você vê grupos de historiadores negres se organizando, iniciativas como Geledés surgindo, porque até então o movimento negro brasileiro não se preocupou com memória. Mas também, saiba que você só conhece esses sujeitos por esforço do movimento negro de referenciar seus intelectuais e construir um conhecimento próprio. É um processo muito perverso porque a partir da percepção de que Beatriz Nascimento era militante, a academia não a reconhecia. Quando a Lélia [González] falava, pareciam dois mundos que não dialogavam: academia e militância." Obras perdidas, trabalhos não validados pela elite intelectual e papéis sociais distorcidos marcam a cursiva da escrita da história da pessoa negra no Brasil — queremos relê-la.

Para fortalecer o resgate de intelectuais negras e negros de diferentes áreas de conhecimento e períodos, Ecoa conversou com especialistas e se debruçou sobre a produção de Tebas, Machado de Assis, Abdias do Nascimento, Lélia González, Beatriz Nascimento e os contemporâneos Sueli Carneiro e Mano Brown. A ideia aqui é refletir sobre a importância de seus trabalhos para o Brasil, e investigar quem tem dado continuidade aos seus legados.

Bom, consciência racial é o reconhecimento da categoria Raça, que foi criada no processo da modernidade e racializou as pessoas pretas. Consciência racial é reconhecer que estamos em um mundo racista. Para as pessoas pretas, a consciência racial é também sobre entender como elas são localizadas nesse cenário racial, como são vistas e como precisam agir frente a esse contexto

Katiúscia Ribeiro, professora e filósofa porto-alegrense

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Tebas: Um símbolo da ascensão social

"As crianças veem nos livros escolares os corpos escravizados na lavoura como se não houvesse uma história anterior à colonização e como se o corpo negro trazido fosse apenas corpo e não mente, sendo que a escravidão do Brasil contou com as melhores cabeças", diz a jornalista ludovicense Rosane Borges. "Não tinha engenheiro branco dizendo o que os escravizados tinham que fazer, o que houve foram pessoas negras que entendiam muito de arquitetura, mineração, agricultura — os livros omitem isso. A gente pensa que o escravizado era destituído de inteligência, de saber técnico, então, para o nosso imaginário, as arquiteturas das igrejas católicas mais emblemáticas de São Paulo não foram pensadas por um negro. Mas o projeto arquitetônico também era feito pelos escravizados."

Um dos brilhantes arquitetos a moldar a capital paulista foi Tebas, como era conhecido Joaquim Pinto de Oliveira. Negro e escravizado, a ornamentação da fachada do Mosteiro São Bento, Catedral da Sé e construção do Chafariz da Misericórdia (demolido em 1866) na Rua Direita quase não foram suficientes para cravar seu nome como um vanguardista da urbanização da cidade. Isso porque a existência de Tebas foi palco de disputa por muito tempo: se era lembrado por composições do grande sambista paulistano Geraldo Filme, também vigorava a ideia de que Tebas seria uma história de autonomia folclórica dos escravizados; se sua memória era reinvindicada por militantes do movimento negro, também era tratada como pouco checável. Somente quando pesquisadores e jornalistas se uniram para averiguar e produziram a primeira biografia sobre o construtor, "Tebas: um negro arquiteto na São Paulo escravocrata" (2019), que se tornou inquestionável a veracidade de sua vida.

Em breve, Tebas deve constar nos cadernos de arquitetura, urbanismo e de história. Curiosamente, a primeira personalidade da nossa seleção diz menos sobre o passado e mais sobre um possível futuro. A professora e filósofa Katiúscia Ribeiro reforça a ideia de que história é poder e um meio para a construção de narrativas de poder. Segundo ela, ao se negar uma história, nega-se também o pertencimento histórico de um povo. O legado de Tebas é mais que a passagem das construções de taipas para edificações de pedra na capital, mais profundo do que um símbolo da excepcional possibilidade de ascensão social, trata-se do poder dos saberes.

Tebas (1721 - 1811)

Um dos principais arquitetos da São Paulo do século 18, Joaquim Pinto de Oliveira passou a ser conhecido como Tebas, uma expressão da época dada a quem sabia fazer de tudo. Morto aos 90 anos de idade, vítima de uma gangrena, Tebas foi um homem escravizado até os 57, quando conseguiu sua alforria. Era especialista na arte de talhar pedras e teve seu trabalho muito requisitado, principalmente pelas igrejas, onde deixou sua marca. A Catedral da Sé e o Mosteiro de São Bento, por exemplo, são obras dele.

Sua participação nas obras foi reconhecida mais de 200 anos após sua morte, quando, em 2018, o IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) encontrou documentos que citavam seu nome.

No fim de 2020, uma estátua em memória a Tebas foi instalada na Praça Clóvis Bevilácqua, próxima à Sé.

Legado

  • Lumumba Afroindígena

    É um artista visual mineiro de 38 anos que busca, por meio de diferentes formatos - como pintura, escultura e grafite -, expressar críticas ao apagamento negro e indígena da história do Brasil. Suas obras estão disponíveis no Matilha Cultural, Funarte, Galeria Alma da Rua e na Casa de Cultura Chico Science. Junto com Francine Moura, Lumumba foi convidado pela Secretaria Municipal de Cultura para fazer a estátua de Tebas.

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Machado: Embranquecimento impediu problematização racial

De todas as sete personalidades negras que formaram a consciência racial brasileira, selecionadas para esta reportagem, somente uma é leitura obrigatória do ensino básico: o escritor e fundador da Academia Brasileira de Letras, Machado de Assis. "Na verdade, o Machado só foi colocado em sala de aula pelo processo de embranquecimento. Nas aulas de Literatura, ele era ensinado como "mulato", leia-se: embranquecido", pontua Katiúscia Ribeiro. "Desracializa-se Machado, apresentam-no como homem branco, negligenciando sua própria história, que foi um homem negro que passou sua vida inteira procurando a mãe, que foi tirada dele durante o processo escravocrata. Imagina se contassem esse contexto da trajetória de Machado: a gente teria uma problematização racial muito mais honesta porque trabalharia com a violência racial no país", conclui a filósofa.

Especialmente nesse caso, negar a identidade do autor é também uma forma de impedir uma compreensão mais profunda de sua obra. O racismo atravessa os personagens machadianos e suas tramas pintam um retrato cru e violento do Brasil — não à toa, Machado viveu os traumas da escravidão e o fervor abolicionista. Ainda assim, morreu antes do abandono da prática escravocrata, pois após a Abolição houve um período em que o tráfico ilegal raptou e trouxe milhares de pessoas na condição de escravizadas para o Brasil. Cristiana Ferreira Ximenes escreve na biografia "Joaquim Pereira Marinho: perfil de um contrabandista de escravos na Bahia" que "mesmo após sua entrada em vigor, a lei [que abolia o tráfico de pessoas em 1831] foi considerada letra morta, as penas imputadas aos réus não eram cumpridas, nem as multas eram pagas, e o tráfico continuava."

Em sua tese de doutorado de 2014, "Fortes laços em linhas rotas: literatos negros, racismo e cidadania na segunda metade do século XIX", Ana Flávia Magalhães Pinto se debruça sobre as trajetórias de Ferreira de Menezes, Luiz Gama, Machado de Assis, José do Patrocínio, Ignácio de Araújo Lima, Arthur Carlos e Theophilo Dias de Castro. No trabalho, ela escreve: "Cabe reconhecer ainda que o objetivo da investigação - que incialmente era tão somente promover um estudo comparativo entre as trajetórias dos indivíduos tomados como representativos de diferentes perfis de homens negros livres, letrados e atuantes na imprensa das duas cidades - foi reformulado. Conforme fui avançando na reunião e na leitura das fontes, pude perceber uma série de articulações diretas e indiretas existentes entre eles. Compartilhando espaços semelhantes, muitos deles não apenas souberam da existência um do outro, como também desenvolveram ações conjuntas. Havia fortes laços, ainda que dados em linhas rotas, a aproximá-los."

Ao investir na sua presença na imprensa, pois o autor nunca deixou de publicar nos jornais da época, e no marco da criação da Academia Brasileira de Letras, Machado não somente se movia por ímpeto criativo, mas também por uma estratégia de resistência do seu nome frente ao tempo — o negro não pode ser ignorado. Suas obras, por sua vez, consagram novos caminhos para a literatura brasileira, sem tentar uma mímica de um modelo europeu, mas criando através da palavra escrita uma reflexão profunda e artística sobre a sociedade que o cerca e, consequentemente, sobre a formação do Brasil.

Machado de Assis (1839 - 1908)

Homem negro e nascido no Morro do Livramento, no Rio de Janeiro, Machado de Assis teve seu primeiro poema, "Ela", publicado aos 16 anos, no jornal Marmota Fluminense.

A partir daí, Machado passou a trabalhar em diversos veículos da imprensa carioca e em diversas funções. Foi contista, cronista, jornalista, poeta, romancista e teatrólogo. Seu primeiro livro, a tradução de "Queda que as Mulheres têm pelos Tolos", foi publicado em 1862. Já as principais obras, "Memórias Póstumas de Brás Cubas" e "Dom Casmurro", são de 1881 e 1899, respectivamente.

Machado de Assis foi fundador da Academia Brasileira de Letras, que hoje não conta com nenhum autor negro entre seus membros. O escritor morreu em setembro de 1908, aos 69 anos, vítima de um câncer.

Legado

  • Conceição Evaristo

    A autora mineira chama de escrevivências a escrita a partir e fundamentalmente embasada na experiência vivida pelo negro no Brasil. Evaristo tem dois romances publicados, "Ponciá Vivêncio" e "Becos da Memória", além de uma produção de contos e poemas. Em 2018, a doutora em literatura enviou sua candidatura à Academia Brasileira de Letras e foi negada.

Folhapress

Abdias: Um articulador cultural e político

Da arte à política, Abdias do Nascimento representa a transformação das gerações modernas do movimento negro organizado. Ao entender que a luta preta no Brasil é múltipla e, assim como sua violência, pode atravessar as mais diversas áreas, Nascimento não poupou investidas. Da Frente Negra Brasileira ao Teatro Experimental do Negro, do jornal Quilombo ao cargo de senador da República, Abdias foi uma das vozes que convocou representatividade. No meio de tantas palavras de ordem como "representatividade importa", vale revisitar a incansável trajetória de Nascimento para perguntar: importa por quê?

Primeiro, é preciso acessar o imaginário coletivo. A jornalista Rosane Borges pontua que tradicionalmente pessoas negras figuram espaços bem específicos nos jornais: no caderno de celebridades, como artistas e futebolistas, e nas páginas policiais. "Tradicionalmente o negro sempre transitou nesses dois extremos, ambos partindo do essencialismo e do exotismo. Com isso, cria-se no imaginário das pessoas a ideia de que o negro é bom nisso, mais: só pode ser bom nisso", explica Borges, "Não se vê cientistas negras, escritoras negras, produtoras de cinema negras. Esse reducionismo da representação é danoso. Mídia é fundamental para manter esse tipo de estereótipo e, por outro lado, também para abrir espectros de representação."

Borges refere-se ao jornalismo, mas esses estereótipos reducionistas encontram-se em todas as áreas, inclusive nas artes cênicas. Ainda que a prática do "blackface" não fosse comum no Brasil e o negro tivesse em grande número nos elencos, como escreve o mestre em sociologia Márcio José de Macedo em sua tese "Abdias do Nascimento: a trajetória de um negro revoltado (1914-1968)", os papeis designados aos atores e atrizes afrodescendentes eram de personagens escravizados, empregados domésticos, caricatos e sem profundidade emocional ou psicológica, negros sem família, amigos e sem quereres, ou seja, personagens em posição de subalternização associada com desumanização. Perante isso, Abdias criou o Teatro Experimental do Negro. Dali, saíram grandes nomes da dramaturgia brasileira, como Ruth de Souza e Milton Gonçalves.

Na tese, Macedo escreve: "O TEN foi muito mais do que um grupo teatral composto só por negros. Além da parte artística - com várias peças centradas na temática racial -, organizou concursos de beleza e artes plásticas, promoveu intensa atuação político-social através de convenções, conferências, congressos, seminários, cursos de alfabetização e iniciação artístico cultural para negros, editou um jornal intitulado Quilombo e alguns livros. Entre 1944 e 1968, período de existência do grupo, consta em torno de cinquenta e uma atividades realizadas."

O TEN e o periódico Quilombo denunciavam o racismo da sociedade brasileira, ainda sem a perspectiva de que se tratava (e ainda se trata) de um problema estrutural do país. As investidas dos grupos articulados por Nascimento deram muita visibilidade às pessoas negras na política e no jornalismo.

Abdias do Nascimento (1914 - 2011)

Nascido em Franca, no interior de São Paulo, em 1914, Abdias do Nascimento foi economista, ator e um dos principais militantes da luta contra a discriminação racial no Brasil.

Abdias fundou o Teatro Experimental do Negro, primeira companhia teatral do país a destacar artistas negros e a cultura afro-brasileira. No final da década de 1960, fundou o Museu de Arte Negra. Porém, com o AI-5, Abdias foi impedido de exercer a militância e se exilou nos Estados Unidos, onde deu aulas em universidades.

Participou da fundação do Movimento Negro Unificado e do PDT. Com a reabertura política, Abdias candidatou-se a deputado federal. Também foi senador por dois mandatos na década de 1990. Em 2010, chegou a ser indicado para o Prêmio Nobel da Paz. Morreu no ano seguinte, pouco após completar 97 anos.

Legado

  • Léa Garcia

    É atriz que marcou presença nas décadas de 70, 80 e 90 em palcos, televisões e telas de cinema. Sua formação veio do Teatro Experimental do Negro e sua primeira peça foi Rapsódia Negra (1952), dirigida por Abdias do Nascimento. Depois, veio a peça e filme Orfeu Negro, em que Léa ganhou maior projeção. O longa-metragem, dirigido por Marcel Camus, rendeu para Garcia o segundo lugar na Palma de Ouro, em Cannes, e assim, a atriz caiu nas graças de TV Tupi a Globo. Outro marco da carreira foi o papel de Rosa em A Escrava Isaura (1976), segundo ela um dos mais difíceis de sua trajetória. Só quatro anos depois, em Marina (1980), novela de Wilson Aguiar Filho, Léa Garcia escapa de personagens em posição de subalternidade, interpretando uma professora de classe média. Garcia abre caminho para o protagonismo de mulheres negras nas artes cênicas, com atuações que movem o enredo e personagens com profundidade emocional e psicológica.

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Lélia: Interseccionalidade no centro do debate

"A gente tá falando das noções de consciência e de memória", escreve Lélia Gonzalez na Revista Ciências Sociais Hoje, de 1984, em um texto intitulado "Racismo e sexismo na cultura brasileira". "Como consciência a gente entende o lugar do desconhecimento, do encobrimento, da alienação, do esquecimento e até do saber. É por aí que o discurso ideológico se faz presente. Já a memória, a gente considera como o não-saber que conhece, esse lugar de inscrições que restituem uma história que não foi escrita, o lugar da emergência da verdade, dessa verdade que se estrutura como ficção. Consciência exclui o que memória inclui. Daí, na medida em que é o lugar da rejeição, consciência se expressa como discurso dominante (ou efeitos desse discurso) numa dada cultura, ocultando memória, mediante a imposição do que ela, consciência, afirma como a verdade. Mas a memória tem suas astúcias, seu jogo de cintura: por isso, ela fala através das mancadas do discurso da consciência."

Fundadora do Movimento Negro Unificado, Lélia é uma das mais brilhantes pensadoras brasileiras sobre identidade, racismo, antirracismo e igualdade de gênero. Em uma época em que as figuras icônicas do movimento negro eram homens, Lélia traz um olhar com interseccionalidade e dispara que nenhum feminismo é verdadeiramente feminista se ignora a questão de raça e classe. Este olhar de militância integrado, anti-imperialista e ciente das mazelas do colonialismo chama-se Amefricanidade. O conceito passa pela visão da América para além de sua unidade geográfica, mas também da perspectiva histórica, no que tange a ainda atual ação imperialista, dinâmica de apagamento e resistência cultural, cujas práticas são em sua maioria negras e indígenas.

O Movimento Negro Unificado marca a geração mais contundente da história do movimento negro organizado do Brasil. Seu surgimento foi uma resposta ao assassinato de Robson Silveira da Luz, um homem negro torturado até a morte no 44º Distrito de Guainases; anunciou-se uma manifestação no dia 7 de julho de 1978, que reuniu 2 mil pessoas nas escadarias do Teatro Municipal em São Paulo, e mobilizou apoio de diversos coletivos negros a nível nacional. "Assim, no contexto de rearticulação do movimento negro, aconteceu uma reunião em São Paulo, no dia 18 de junho de 1978, com diversos grupos e entidades negras (CECAN, GrupoAfro-Latino América, Câmara do Comércio Afro-Brasileiro, Jornal Abertura, Jornal Capoeira e Grupo de Atletas e Grupo de Artistas Negros)", escreve o doutor em história Petrônio Domingues em sua tese "Movimento negro brasileiro: alguns apontamentos históricos": "Nesta reunião, decidiu-se criar o Movimento Unificado Contra a Discriminação Racial (MUCDR)."

"No Programa de Ação, de 1982, o MNU defendia as seguintes reivindicações "mínimas": desmistificação da democracia racial brasileira; organização política da população negra; transformação do Movimento Negro em movimento de massas; formação de um amplo leque de alianças na luta contra o racismo e a exploração do trabalhador; organização para enfrentar a violência policial; organização nos sindicatos e partidos políticos; luta pela introdução da História da África e do Negro no Brasil nos currículos escolares, bem como a busca pelo apoio internacional contra o racismo no país", escreve Domingues.

Foi com o MNU que pela primeira vez o movimento negro organizado começa a ver a mestiçagem como uma política de embranquecimento da população e deixa de apoiá-la, abandona o termo "homem de cor", adota a nomenclatura "negro" e passa a valorizar a cultura afrobrasileira, em um esforço de construção identitária. É nesse momento em que há a passagem do Dia da Consciência Negra para o dia 20 de novembro, deixando de homenagear a Lei Áurea e passando a reverenciar Zumbi dos Palmares — a capoeira, o samba, o candomblé e a umbanda são enaltecidos. Para a erradicação do racismo, aposta-se na via política, logo passam a ser empregados gritos de ordem como "Negro no poder". Ao lado de militantes como Hamilton Cardoso, Lélia foi fundamental para essa transformação de postura do movimento e compreensão das dimensões do racismo no Brasil.

A força de Lélia ultrapassou as fronteiras brasileiras e continua a ter ressonância muito tempos após morte. "Eu aprendo mais com a Lélia González do que vocês comigo", afirmou a ativista Angela Davis durante sua passagem pelo Brasil no ano passado.

Lélia González (1935 - 1994)

Nascida em 1934, Lélia González foi historiadora e filósofa, mas também se aprofundou nos estudos da comunicação social, psicanálise e cultura afrobrasileira.

Irmã de Jaime de Almeida, jogador do Flamengo na década de 1940, ela chegou a trabalhar como empregada doméstica e babá para diretores do clube, mas abriu mão do emprego para dar continuidade aos seus estudos.

Participou da fundação do Movimento Negro Unificado em 1978, nas escadarias do Theatro Municipal, em São Paulo, do Instituto de Pesquisas das Culturas Negras, do Coletivo de Mulheres Negras N'Zinga e do Olodum, em Salvador.

Lélia morreu em julho de 1994, aos 59 anos, vítima de problemas cardiorrespiratórios.

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  • Azoilda Loretto da Trindade

    Foi uma educadora, pesquisadora e ativista antirracista. Além de refletir no seu mestrado sobre o racismo no cotidiano escolar e em seu doutorado sobre a construção da imagem da mulher negra na mídia, Azoilda também foi coordenadora pedagógica do projeto A Cor da Cultura, o qual tem a proposta de criação de conteúdo para uma educação antirracista. Nesse projeto, Azoilda escreveu sobre os valores civilizatórios afrobrasileiros, que são circularidade, religiosidade, corporeidade, musicalidade, memória, ancestralidade, cooperativismo, oralidade, energia vital e ludicidade. A também educadora e ativista Janete Ribeiro foi companheira de luta de Azoilda e hoje trabalha para manter seu legado vivo e para que haja continuidade do seu pensamento sobre educação.

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Beatriz: Uma vida interrompida cedo demais

Cabelo black power e um cigarro na mão direita. Maria Beatriz Nascimento desenha o cigarro no ar enquanto gesticula por trás do microfone de uma mesa de debate dentro de uma sala de uma universidade. Trata-se da Conferência Historiografia do Quilombo e as imagens estão registradas no documentário Ôrí (1989), roteirizado pela ativista Beatriz Nascimento e dirigido por Raquel Gerber. O filme é o trabalho mais conhecido da historiadora e reflete sobre a intensidade da herança cultural africana no Brasil, um resultado óbvio (porém por muitos anos encoberto) da resistência dos negros e negras da diáspora.

Beatriz abre a obra dizendo que "somos Atlânticas", como se a partir do resultado do encontro violento da diáspora se edifique o negro e a negra brasileiros. É essa cultura em constante adaptação que fundamenta a identidade brasileira, logo é preciso reconhecer os quilombos não só como rotas de fuga, mas como uma tecnologia de organização social alternativa à sociedade supremacista branca. Como uma tecnologia, ela também se atualiza e, segundo Nascimento, está presente nas escolas de samba e terreiros de fé de matriz africana, como umbanda e candomblé — quilombos vivos, potentes e contemporâneos. Além disso, a pensadora estende sua interpretação de quilombo a nível subjetivo: cada pessoa negra alinhada à causa antirracista é em si seu quilombo e pode escolher viver em resistência.

Ao longo da entrevista a Ecoa, a filósofa Katiúscia Ribeiro questiona: "Se você só apresenta chicote, tronco e navio, o que você direciona sobre essas pessoas [negras]?" As ideias de subalternização, descartabilidade e passividade incomodavam também Beatriz. Essa inquietude a levou a pesquisar sobre quilombos na graduação. Em sua tese de doutorado, "Palavras sobre uma historiadora transatlântica — estudo da trajetória intelectual de Maria Beatriz Nascimento", Wagner Vinhas Batista escreve: "No estudo do quilombo, ela propunha repensar o papel do negro na historiografia nacional e, fundamentalmente, reconhecer o seu lugar de homem livre que lutou por sua liberdade. Também havia uma clara possibilidade de estudar fenômenos sociais contemporâneos - urbanos e rurais - cujas origens estariam ligadas às antigas formas de organização social do negro no Brasil Colônia."

Beatriz teve sua vida interrompida ainda jovem, porém deixou uma série de textos e pesquisas com foco no protagonismo negro para construção da nação brasileira, o olhar crítico para a historiografia do país e a urgência de pensar a continuidade da resistência preta. Ao ler Ratts e Batista, pesquisadores que se debruçaram sobre a vida de Nascimento, até a profundidade dos conflitos de Beatriz ao se perceber uma pensadora negra — diante do paradoxo de ser uma intelectual militante, ser ativista dentro de instituições coloniais — parece de alguma forma uma mensagem: subverta todos os espaços, não se pode abrir mão do antirracismo.

Beatriz Nascimento (1942 - 1995)

Maria Beatriz do Nascimento foi uma sergipana, nascida em 1942 em família com 10 irmãos. Retirante, mudou-se com os parentes para o Rio de Janeiro, onde estudou e formou-se em História pela UFRJ.

Dava aulas em escolas públicas, mas também participava ativamente da militância negra da capital fluminense. Seu trabalho mais conhecido foi o documentário Ôrí, de 1989.

Beatriz foi assassinada em 1995, aos 52 anos, pelo companheiro de uma amiga que era vítima de violência doméstica. Na época, a historiadora estava cursando o mestrado em comunicação social, também pela UFRJ.

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  • Adelia Sampaio

    É roteirista, produtora audiovisual e diretora de cinema; carrega também o título de ter sido a primeira mulher negra a dirigir um longa-metragem no Brasil. A cineasta mineira teve o período mais movimentado de sua carreira durante a ditadura militar. O primeiro filme, Amor Maldito (1984), que conta a história de amor entre duas mulheres e suas traumáticas consequências dentro de uma sociedade conservadora, foi distribuído como uma pornochanchada para poder ser exibido. Entre ficções e documentários, a produção de Adélia busca histórias avessas à norma, as quais fatalmente são as histórias mais brasileiras. Ao focar nas questões que vive e observa, Adélia se debruça sobre a violência da sociedade brasileira de forma mais localizada no tempo e abre caminho para que mais mulheres negras escrevam seus papeis na história.

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Sueli: Reflexões para combater o epistemicídio

Todas as entrevistas da reportagem partiram de um conceito muito trabalhado e refletido por Sueli Carneiro: epistemicídio. Trata-se de uma série de práticas de apagamento e descrédito de tudo que não é hegemônico. Segundo Boaventura de Souza Santos, epistemicídio é a outra face do genocídio. Intolerância cultural, religiosa, não validação dos saberes técnicos. A filósofa brasileira, por sua vez, apropria-se desse conceito e o utiliza como denúncia da constituição do Brasil em sua história total e em sua jornada pela igualdade de gênero. O olhar de Sueli, assim como de Lélia González, é um olhar profundamente interseccional: raça e gênero estiveram no centro da sua pesquisa e reflexão.

Segundo a filósofa Katiúscia Ribeiro, o epistemicídio é o agente organizador da consciência racial no Brasil. "Nós não ensinamos Abdias do Nascimento, que foi senador da República; não contamos que o Movimento Negro Unificado se organiza em plena ditadura militar; não mencionamos que Lélia, uma mulher negra incansável, constrói uma narrativa de como mulheres negras se organizam, bem como Beatriz Nascimento. Como se pode negligenciar a história política negra deste país?", provoca Katiúscia, "Essas pessoas são fundamentais porque promovem uma consciência racial honesta, na qual precisamos reconhecer o racismo sem negligenciar as fissuras e violências que ele promoveu sobre nós. Não tem como construir uma consciência racial negando o racismo. Como boa filósofa, te digo que precisamos problematizar o problema para solucioná-lo."

Para isso, Sueli criou o Geledés Instituto Mulher Negra, coletivo de mulheres negras em 1988. Ativo até hoje, Geledés é um portal de combate ao epistemicídio, promovendo reflexões por meio do jornalismo e resgate histórico pela comunicação. "Educação é importante porque ela é uma atualizadora e mantenedora desses imaginários que circulam e atravessam o tempo e sustentam nossa visão de mundo sobre o outro", diz a jornalista Rosane Borges. Katiúscia completa dizendo que é fundamental também que paralelamente se reconheçam outros modelos educacionais e outros espaços de ensino, como terreiros, quilombos, os quais também são espaços que podem ajudar na construção e preservação dos saberes ameaçados pela estrutura racista. Dentro e fora da academia, Carneiro escreveu uma vasta quantidade de artigos, teses e livros. Seus temas gravitam em torno de feminismos possíveis, identidade negra no Brasil e luta de classes.

Em seus 70 anos de vida, mais de metade deles dedicado à militância, Sueli Carneiro tinha um objetivo: enegrecer o movimento feminista.

Sueli Carneiro (1950)

Aparecida Sueli Carneiro nasceu em São Paulo, em junho de 1950. Durante a ditadura militar, entrou no curso de Filosofia na USP e se aproximou dos movimentos negros, principalmente por meio do Centro de Cultura e Arte Negra, e feministas.

Fundou em 1988 o Geledés Instituto da Mulher Negra, a primeira organização negra e feminista independente de São Paulo.

Discreta, evita dar entrevistas. Afirma à "Revista Cult", em 2017, que "tudo que formulei já está escrito". Prefere deixar esse espaço para outras autoras que bebem de sua produção, como Djamila Ribeiro e Bianca Santana, colunista de Ecoa.

Seu livro mais recente, "Escritos de uma Vida", foi publicado em 2018 e reúne diversos textos da filósofa.

Legado

  • Winnie Bueno

    Nas remadas contra o epistemicídio, as formas alternativas de se pensar educação libertadora têm se tornado cada vez mais relevantes. Destaca-se atualmente a autora e pesquisadora Winnie Bueno pela forma sagaz com que se apropriou da internet. Bueno é idealizadora da WinnieTeca, sistema que faz a ponte entre pessoas negras que precisam ou querem um livro e pessoas que estão dispostas a fazer doações; a plataforma conecta as duas pessoas e estimula a troca de conhecimento. Winnie tem um livro publicado, "Imagens de controle: um conceito do pensamento de Patricia Hill Collins", no qual se debruça sobre a dinâmica de poder a partir dos estereótipos impostos sobre mulheres negras.

Marcelo Pretto/Divulgação

Brown: um poeta emblemático

Cantor e compositor paulistano, Pedro Paulo encontrou no rap uma forma de refletir sobre a construção da identidade negra no Brasil, as injustiças de classe, a violência policial e o racismo estrutural que sonda sua comunidade. Junto com KL Jay, Edi Rock e Ice Blue, o rapper fundou o Racionais MC's — o grupo mais emblemático da história do rap nacional. Os discos do Racionais entregam um resgate negro em todos os âmbitos, seja na inventividade lírica de Brown, seja na riqueza e maestria de samples do produtor musical e DJ KL Jay.

O segundo disco, Sobrevivendo no Inferno (1997), consolidou o grupo como referência do estilo, apesar da baixa circulação em rádios e uma relação complexa com jornalistas culturais, à época área dominada por uma elite branca avessa ao rap. No livro "Rap e política: percepções da vida social brasileira", Roberto Camargos explica essa espinhosa relação com a crítica musical, que não era uma exclusividade do Racionais. De qualquer forma, Sobrevivendo no Inferno já conta com composições densas e que denunciam as estruturas injustas do Brasil em alta complexidade, como "Diário de um Detento" que narra o terror de um homem preso no dia do Massacre do Carandiru.

O quarto álbum e clássico do grupo, Nada Como Um Dia Após Outro Dia (2002) tem, além das grandes qualidades musicais, uma profunda reflexão emocional, psicológica e prática sobre o que é ser negro no Brasil. Brown escreve sobre diversos personagens de forma onisciente, carrega suas rimas com orgulho preto, sem negar os dramas e danos causados pela vivência do racismo.

Nas décadas de existência, o grupo já foi impedido de realizar shows e acusado pela imprensa de fazer apologia ao crime, mas hoje se consagra como um marco da música brasileira. Brown mostrou um outro lado no trabalho solo, Boogie Naipe: quem é Pedro Paulo para criar imagens maiores que as reações ao racismo e falar sobre amores, desilusões e viver a noite paulistana. Quando a educadora Janete Ribeiro diz que a escola do século 21 tem que criar suas próprias imagens, pode-se concluir que também os pensadores negros do século 21 têm que criar novas imagens. Brown é um dos grandes líderes negros do Brasil: sério, entende a urgência de Racionais MC's, mas também a importância de falar do poder do amor preto e criar possibilidades no imaginário dos jovens negros para além do racismo. Afinal, é com erros e acertos, dores e glórias, que se faz o humano em toda sua pluriversalidade de ser.

Mano Brown (1970)

Batizado em 1970 como Pedro Paulo Soares Pereira, foi com o nome de Mano Brown que o jovem negro da região do Capão Redondo, zona sul de São Paulo, tornou-se a principal voz do rap brasileiro ao lado de Edi Rock, Ice Blue e KL Jay.

Pedro Paulo começou a ter contato com o rap nos encontros entre artistas no Metrô São Bento, berço do hip hop em São Paulo, onde também surgiram nomes como Thaíde e Rapin Hood.

Em 1990, o Racionais MC's lançou seu primeiro álbum, Holocausto Urbano, que tinha como destaque a música Pânico na Zona Sul.
Foi com o álbum Sobrevivendo no Inferno, de 1997, que o grupo alcançou notoriedade também entre a classe média -- o disco está na 14ª posição no ranking dos maiores álbuns de música brasileira da revista "Rolling Stone" e, desde 2018, é leitura obrigatória no vestibular da Unicamp.

Legado

  • Abebe Bikila

    Como é mais conhecido, BK é cantor e compositor carioca. Logo em seu disco de estreia, Castelos & Ruínas (2016), BK apresenta uma complexa crítica ao racismo, desigualdade social e truculência policial, tudo isso costurado pela sua própria vulnerabilidade emocional. Os álbuns que seguiram na sequência mantiveram a postura política contundente e de afirmação preta: Gigantes (2018) e O Líder em Movimento (2020). Além das composições, o orgulho negro é trabalhado tanto na cultura de samples, sempre presente no rap, quanto no impacto visual; a capa do disco Gigantes, por exemplo, foi feita pelo artista visual Maxwell Alexandre e o processo de gravação de O Líder em Movimento foi documentado pelo jornalista musical e artista visual João Victor Medeiros. É especialmente interessante a investida do documentário já que o disco mais recente se aprofunda na denúncia do epistemicídio, do racismo estrutural e buscar fortalecer a autoestima por meio da consciência racial, do resgate e do registro.

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