Muito além do hype

Sucesso no mundo, OSGEMEOS discutem o papel do artista brasileiro em tempos de descaso governamental

Lia Hama Colaboração para Ecoa, em São Paulo Martha Cooper

Às vésperas de abrir a exposição "Segredos" na Pinacoteca de São Paulo em março, os artistas OSGEMEOS foram surpreendidos pela pandemia do novo coronavírus e tiveram que adiar a mostra até que o museu possa receber o público com segurança. A retrospectiva com curadoria do diretor-geral da Pinacoteca, Jochen Volz, terá mais de 60 trabalhos da dupla de grafiteiros paulistanos que ganhou o mundo com seu universo lúdico de personagens amarelos. A nova data de abertura não está definida.

Enquanto isso não acontece, os irmãos Gustavo e Otávio Pandolfo, 46, se engajam em ações sociais. "Dividimos nosso ateliê em dois: num lado, trabalhamos com as obras da exposição e, no outro, fazemos nossos projetos sociais. Ali montamos cestas básicas e separamos EPI (equipamento de proteção individual) para distribuir em comunidades carentes", conta Gustavo.

Uma das ações de maior impacto da dupla foi feita em parceria com o grupo têxtil Rosset: a doação de 100 mil máscaras de proteção contra a Covid-19. Com estampa criada pelos celebrados artistas, o material foi distribuído em aldeias indígenas da Amazônia, comunidades carentes do Ceará e instituições do Rio de Janeiro e de São Paulo.

Do ateliê no bairro do Cambuci, região central de São Paulo, os irmãos Pandolfo falaram a Ecoa sobre a adolescência distribuindo sopão em viadutos da cidade, o hype de suas obras no cenário internacional e o papel do artista brasileiro em tempos de crise sanitária e descaso governamental. "A gente não acredita nesse governo [do presidente Jair Bolsonaro] e estamos fazemos a nossa parte para ajudar quem precisa", diz Otávio. Na opinião d'OSGEMEOS, duas imagens de autoria deles são o triste retrato do nosso país hoje: de uma criança carente ("O Menino que Tinha Frio", abaixo, à direita) e de uma floresta em chamas ("Natureza Morta", abaixo, à esquerda). E é essa situação que eles consideram urgente mudar.

Natureza Morta e O Menino Que Tinha Frio/Divulgação Natureza Morta e O Menino Que Tinha Frio/Divulgação

Ecoa - Como surgiu a ideia da doação das máscaras de proteção?

Gustavo Pandolfo - Em março, tivemos que parar a montagem da exposição por causa da pandemia. Pensamos: o que a gente pode fazer para ajudar os outros nessa situação tão difícil? Falamos com a Pinacoteca sobre as máscaras e fomos buscar uma parceria. Foi quando entrou o grupo Rosset, que foi fundamental nessa história. Desenvolvemos a arte e eles fizeram todo o resto: a produção do tecido, a estamparia e a confecção. Diversas ONGs e instituições ajudaram na distribuição pelo país.

Como foi a escolha dos locais para a entrega das máscaras?

Gustavo - Nosso foco maior foi mandar para o Norte e para o Nordeste do Brasil, regiões muito carentes, onde os recursos demoram muito a chegar. ONGs como a Associação das Mulheres Indígenas Sateré Mawé e a Fundação Almerinda Malaquias ajudaram a distribuir em comunidades ribeirinhas e aldeias indígenas. No Nordeste, fizemos parceria com a Cufa (Central Única das Favelas) e eles distribuíram no Ceará. Em São Paulo e no Rio, uma série de outras instituições ajudaram.

De que outras ações sociais vocês participaram?

Gustavo - Distribuímos cestas básicas e EPIs. Algumas ações foram em parceria com ONGs e outras não, nós mesmos fomos entregar nas comunidades. Teve uma que a gente fez com o Rappin' Hood, outra com o Criolo, outra com o [movimento] Pimp My Carroça, do [ativista e grafiteiro] Mundano, que lida com a comunidade dos catadores de materiais recicláveis.

Vocês bancam as cestas básicas do próprio bolso ou arrecadam doações para comprá-las?

Gustavo - Bancamos 100%.

Quanto vocês gastaram?

Gustavo - A gente prefere não falar. Nunca é o suficiente se você pensar na quantidade de pessoas necessitadas no Brasil.

Divulgação Divulgação

De onde veio esse engajamento social de vocês? Quando foi a primeira vez que fizeram uma ação desse tipo?

Otávio Pandolfo - Acho que foi na adolescência, no início dos anos 90. A gente cresceu numa rua no Cambuci onde tinha uma feira. Pedíamos as sobras das barracas para os feirantes, fazíamos um sopão numas panelas industriais e saíamos distribuindo numa Variant verde metálica. A gente cortava umas garrafas PET, enchia de sopa e distribuia nos viadutos do Glicério e da Mooca.

Gustavo - Nessa época, também fazíamos uns workshops sobre a cultura hip hop em comunidades. Lembro de a gente ir na Casa do Hip Hop, em Diadema. Era divertido porque passávamos o dia desenhando com as crianças, contando a história do grafite e mostrando filmes importantes sobre o tema, como o "Style Wars" (documentário dirigido por Tony Silver, de 1983). Fizemos uma apostila de xerox com um abecedário desenhado por nós para ensinar os meninos a fazerem desenhos de letras.

Vocês frequentaram oficinas de arte quando crianças?

Gustavo - Na primeira vez em que fomos à Pinacoteca, com 9 anos, participamos de um workshop. Nossa mãe inscreveu a gente num curso elaborado pelo Paulo Portella, que foi muito importante para nós. Dava para desenvolver um projeto de desenho conjunto ou pintar com spray a parede da Pinacoteca. Conseguir spray naquela época era quase impossível e lá tinha tubos de várias cores. A gente ficou maluco. Nessa exposição que vamos fazer na Pinacoteca, queremos desenvolver um workshop para retribuir isso para as novas gerações. Também queremos criar apostilas contando a história do hip hop e a chegada no Brasil.

Vocês fizeram parte dessa história, iam aos encontros na estação de metrô São Bento nos anos 80, berço da cultura hip hop no Brasil. Como isso se refletiu na formação de vocês?

Gustavo - Começamos a ir na São Bento com 12, 13 anos. Ali a gente foi entendendo a cultura hip hop como uma forma de se manifestar culturalmente e socialmente. Era todo mundo misturado, uma só nação. Tinha uma coisa de aprender, dividir com o outro, viver aquilo da forma mais intensa possível. Naquela época, nos anos 80, era o final da ditadura militar. Existia muita perseguição a movimentos que aconteciam na rua. No Cambuci, a gente também dançava break, ouvia hip hop e fazia grafite. Nossos amigos de infância eram japoneses, negros, latinos, descendentes de italianos, espanhóis. A força do hip hop uniu todos nós até hoje. Viramos irmãos.

Muitos continuam nessa vida até hoje. Vocês fizeram muitos grafites nessa quarentena?

Gustavo - A gente tem respeitado a quarentena e não foi para a rua pintar, até para não incentivar essa coisa de sair e ter contato com outras pessoas nesse momento em que é importante manter o isolamento.

Quantas vezes vocês tiveram os grafites apagados pela prefeitura?

Gustavo - Muitos. Todo final de semana apagam algum.

Otávio - Parece que a prefeitura aproveitou a quarentena para apagar o trabalho de artistas de rua. É triste porque tem tantas coisas mais importantes para cuidar na cidade, tantas pessoas que moram na rua, passando fome e frio. E eles se preocupam em apagar o trabalho de um artista que foi pintar para alegrar o dia a dia de quem mora ali. É essa coisa maluca de São Paulo. E isso não é de agora.

Varia de acordo com quem assume o cargo de prefeito de São Paulo?

Gustavo - Não, é tudo igual. Nunca deixaram de apagar nossos trabalhos.

The Playground/Cortesia dos artistas The Playground/Cortesia dos artistas

Qual grafite vocês têm mais orgulho de ter feito?

Gustavo - É difícil falar. Às vezes a gente vai pintar debaixo de um viaduto, num lugar onde mora uma família, e aquele trabalho tem muito significado para eles. Ou chega um menino com uma caixa de engraxar sapatos e pede para a gente enfeitá-la. Ver o sorriso dele depois é muito gratificante.

O que essa exposição na Pinacoteca significa para vocês?

Otávio - É um dos projetos mais importantes que a gente já fez. Pelo fato de a gente ser daqui de São Paulo, de ter crescido no Cambuci. Vai ser uma retrospectiva da nossa história, já estamos nesse barco há mais de 30 anos.

Gustavo - O trabalho conta a história da nossa vida, que passa pelo grafite, mas também pela ilustração, pelas esculturas e instalações. Não estamos sozinhos ali. É como se estivéssemos junto com todos os que estão fazendo isso ou que acreditam nesse universo. Porque tem muita gente talentosíssima que não tem oportunidade. É uma chance das galerias, dos curadores e dos críticos enxergarem que tem muita gente boa do lado de fora. É preciso abrir as portas para essas pessoas, dar oportunidades. Esse nome "Segredos" e o fato de ser uma retrospectiva é legal para mostrar a quem está começando como chegamos até aqui. Pensamos muito em dividir qual foi o caminho das pedras, sabe?

Se fosse para dar conselhos a um moleque que está dando os primeiros passos na carreira artística, quais seriam?

Gustavo - Acreditar que é possível, andar pelo caminho certo, nunca passar por cima de ninguém. No trabalho, tentar somar, crescer e dividir com o próximo as coisas boas.

Otávio - Se você plantar o bem, vai colher o bem. Se você plantar o mal, vai colher o mal.

Vocês têm um lado espiritual muito forte e falam de um universo paralelo chamado Tritrez, de onde vem boa parte da inspiração de vocês. Acessaram muito esse lugar na quarentena?

Gustavo - Sim, porque ficamos muito tempo dentro de nós mesmos nesse período. A gente fecha os olhos, assiste a uma espécie de filme em Tritrez e materializa esse filme através dos nossos desenhos, das nossas pinturas e dos nossos grafites. Esse universo paralelo no qual a gente acredita é muito grande, é enorme. Às vezes sentimos que o tempo aqui na Terra não é suficiente para podermos materializar tudo o que a gente enxerga dentro dele. Então, para nós, o importante é estar produzindo sempre e materializar isso que está na nossa cabeça.

Vocês praticam meditação?

Gustavo - Para nós, o estado meditativo é quando a gente está contornando nossos desenhos. É o nosso momento de meditação, quando a gente se desliga de tudo ao redor.

Que tipo de reflexões esse período de isolamento provocou em vocês?

Gustavo - A gente está sempre buscando novas ideias, novas inspirações para poder dividir com as pessoas de uma forma positiva. Transformar toda essa negatividade que a gente vê no dia a dia em algo lúdico, que dê alguma esperança para alguém, que faça a pessoa sonhar. Quando você pinta a lateral de um prédio, está dividindo com o mundo o seu trabalho. No nosso caso, a gente sempre procurou transmitir uma coisa positiva porque achamos que a arte tem esse poder de modificar: seja por meio da dança, da música ou da pintura.

Qual o significado da cor amarela dos personagens de vocês?

Gustavo - É uma cor que a gente acha super universal, é muito espiritual. Tem um lance da identidade: se você tem uma característica no seu trabalho, quem olha a identifica. Era uma preocupação que a gente tinha muito no início, quando começamos a pintar. A gente discutia isso com nossos amigos grafiteiros: o Speto, o Vitché, o Binho e o Tinho. Era essa busca de ter um estilo, uma autenticidade no trabalho. Nós olhávamos os livros de grafite norte-americanos e tentávamos entender os estilos das letras e dos personagens. A gente queria descobrir o nosso, ter uma identidade que as pessoas pudessem bater o olho e sacar. Não só pelo traço, mas pela cor também. Então o amarelo serviu para isso.

Sem título/Cortesia dos artistas Sem título/Cortesia dos artistas
Cortesia dos artistas

Tem uma obra de vocês em San Diego, nos EUA, que diz: "Don't believe the hype". Vocês viraram artistas celebrados no mundo inteiro, com desenhos em telões da Times Square, em Nova York, na fachada da Tate Modern, em Londres, no porco inflável do Roger Waters. Como sentem esse hype todo?

Gustavo - Essa frase foi inspirada na música do Public Enemy, grupo que revolucionou a cena do hip hop.

Otávio - Essa preocupação de "Ah, um dia a gente vai ter um Instagram com um monte de likes. Um dia, vamos expor na Tate Modern. Um dia, vamos expor na Pinacoteca", isso nunca existiu. A gente começou a desenhar com 3, 4 anos e sempre enxergou o desenho como uma forma de se comunicar: primeiro entre a gente, depois com a família e com os amigos. A única preocupação que a gente tinha era de ter um estilo. As coisas foram acontecendo porque entramos muito de cabeça nesse nosso universo paralelo. E quisemos mostrá-lo para as pessoas: "Ó, esse mundo que a gente vive é assim". Quando mostramos, muita gente se identificou com ele. Aí começaram a surgir os convites, bastante coisa fora do Brasil. Porque o jeito que a gente estava fazendo era único, muito diferente do que os caras estavam fazendo no exterior. Isso chamou a atenção.

Tem alguma exposição de vocês rolando fora do Brasil?

Gustavo - Tem uma que deve abrir em setembro, em Nova York. Estamos com outra em Seul, mas a gente não foi por causa do coronavírus. Também não pretendemos ir para Nova York.

Como vocês veem as políticas do governo do presidente Jair Bolsonaro?

Otávio - Acho que é o momento dos artistas, mais do que nunca, se unirem porque a gente sabe que, do lado deles, não existe preocupação com a arte. Temos que mostrar a força da cultura e da arte no Brasil e não deixar isso morrer. É lógico que a gente não acredita nesse governo - do que ele é feito e do jeito que eles pensam - e estamos fazendo a nossa parte. O que a gente puder fazer para mudar para melhor esse país - em termos culturais ou sociais, em fazer o bem para o próximo - nós vamos fazer.

Se fosse para fazer um grafite sobre o Brasil hoje, como ele seria?

Otávio - A gente poderia representar o Brasil de várias maneiras, como já fizemos, mas a maioria das representações foram apagadas pelo cinza da prefeitura de São Paulo, ato que representa muito o nosso Brasil. Tem duas imagens que fizemos - "Natureza Morta" e "O Menino Que Tinha Frio" - que falam sobre o Brasil hoje. Infelizmente elas foram apagadas, mas temos fotos delas. Existe no nosso grafite a história de amor que a gente tem pela nossa cidade, pelo nosso país e, ao mesmo tempo, a tristeza que sentimos de ver como ele é mal tratado, desprezado, abandonado, mal governado. A gente acredita na mudança através da arte e da educação e não nesse boicote à cultura imposto pelo governo. A arte muda.

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