Ciência ganha credibilidade

Para uma das responsáveis por sequenciar o genoma do novo coronavírus, pandemia revela trabalho de cientistas

Jaqueline Goes de Jesus Especial para Ecoa Arte/UOL

[Ciência e saúde]

Após a pandemia, teremos nova conduta social, como uso de máscara e cautela no contato. A exemplo da disputa que se viu por equipamentos de proteção, a logística de distribuição da vacina preocupa. Países poderosos conseguirão imunizar primeiro sua população. O mundo muda de forma permanente, não só pela pandemia de agora, mas porque outras virão.

Ecoa traz na série O Mundo Pós-Covid-19 um grupo de especialistas que, em depoimento à jornalista Mariana Castro, contam como imaginam uma civilização pós-pandemia a partir de temas como Tecnologia, Trabalho, Educação, Ciência, Alimentação, Cidades, Novas Economias, Espiritualidade, Meio Ambiente e Comportamento. Além de desenhar possíveis cenários para o que vem depois, eles falam sobre como as escolhas de agora podem contribuir para a construção de um futuro mais desejável.

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De modo geral, as pessoas não tinham muita ideia do que faz um cientista e a pandemia revelou nosso trabalho. Todos esperam por uma vacina para a Covid-19 e querem saber sobre tratamentos para a doença. Está nas mãos dos cientistas trazer essas soluções e respostas.

Empresários e governos investem demais em entretenimento, como futebol, por exemplo. Mas podemos sobreviver sem futebol, não é essencial. Respirar, sim, é essencial. Pela legislação brasileira, cientista não é uma profissão regulamentada. Não temos direitos trabalhistas como carteira assinada, previdência, férias. É um trabalho pautado em contrato, com as agências de fomento.

Recebemos auxílio (bolsa de pesquisa), com dedicação exclusiva, sem possibilidade de outro vínculo empregatício. Um estudante de mestrado recebe R$ 1500,00, e um de doutorado, R$ 2.200,00 na maior parte dos estados brasileiros. Hoje, a ciência é muito desvalorizada. Quem escolhe essa profissão não faz isso pensando em dinheiro. Há dez anos faço ciência e não alcancei sucesso financeiro ainda. A gente se acostuma a ganhar pouco.

Viemos de um momento muito bom para a ciência, com investimentos altos de governos anteriores. Fui fruto disso. Pude me especializar e estudar fora com o Ciência sem Fronteiras. Quando saí do Brasil vi a facilidade de estudar ciência em outros lugares. Na Inglaterra, se um reagente acaba, você pega um novo e continua sua pesquisa. Aqui, você espera 45 dias para ter outro no estoque. Nesse tempo dá para escrever um artigo sobre o estudo.

Tenho esperança de que no pós-pandemia essa realidade mude mas, infelizmente, não no atual governo. Nesse governo a ciência sofre ataques sérios. Pesquisadores que estavam saindo do mestrado e entrando no doutorado tiveram a vida profissional interrompida por causa de bolsas cortadas. Estamos sentindo as consequências desses erros, perdemos muito em conhecimento. Pensando nos ataques que mulheres, negros e nordestinos sofreram, ao me destacar como uma cientista que ajudou a decodificar rapidamente o genoma do coronavírus, eu evoco muitas representatividades. Sou mulher, preta e nordestina.

As mulheres também saem valorizadas no pós-crise. Não somos maioria na ciência, mas o papel feminino tem crescido, ganhado reconhecimento e visibilidade. Embora ainda haja muito preconceito na academia, nossa equipe é liderada por uma mulher. Ela promove todos que fazem parte do time. Isso tem a ver com reconhecimento e justiça.

Além da credibilidade da ciência e da valorização da mulher, no mundo pós-Covid-19 adotaremos cada vez mais os hábitos de uma nova etiqueta respiratória. Uso de máscara será normal e teremos mais cautela com nossos contatos, como abraçar e beijar as pessoas. Também teremos um comportamento diferente quando alguém não estiver se sentindo bem, com um resfriado, por exemplo. Será de bom tom ficar em casa, não ir trabalhar ou ir a qualquer lugar, para não expor os outros. Antes da pandemia não pensávamos assim.

O brasileiro gosta de confraternizar, abraçar, beijar, sair para festas e tudo que as pessoas querem é que suas vidas voltem ao normal. Existe uma tendência de retomar o status quo, principalmente para os que já pegaram a doença, que estão imunes e vão se sentir mais seguros. Mas não adianta achar que as coisas serão como antes. Não apenas por causa da Covid-19, essa não será a última pandemia. Existe a expectativa de que outras doenças de proporção mundial e mais letais atinjam a humanidade e ainda não temos conhecimento para lidar com elas.

Essa situação de confinamento vai ser longa. Antes que a vacina para a Covid-19 seja disponibilizada, teremos períodos de abertura e reclusão e essa conduta será decisiva para enfrentar a pandemia. Esse período intermitente deve durar até 2022, como apontou estudo da "Science". Teremos outros surtos, uma segunda, ou a terceira onda, ainda mais com o afrouxamento do distanciamento social. Tem gente que acha que usando máscara e álcool gel está protegido, mas a melhor proteção é ficar em casa. Sabemos que as condições sociais no Brasil muitas vezes não permitem os cuidados necessários ou mesmo o respeito às questões sanitárias básicas. Como falar para uma pessoa manter as mãos limpas se onde ela mora não tem água?

Tenho uma preocupação grande em relação à logística de distribuição da vacina, quando ela ficar pronta. A exemplo do que aconteceu com os equipamentos de proteção e respiradores, houve disputa entre países. Países com mais poder vão pensar primeiro em imunizar suas populações. Precisaríamos discutir sobre colaboração global para dar conta dessa demanda.

Outra discussão que veio à tona é sobre desacelerar. Acredito que no mundo pós-pandemia aproveitaremos a oportunidade de estabelecer outra relação com a natureza. Ultrapassamos todos os limites no uso de recursos naturais. Vimos que não é possível viver da forma como vivíamos. Por conta da Covid-19, pensamos em uma ameaça à vida a partir de um agente biológico. Mas o aquecimento global também é um risco iminente.

Ainda não tenho filhos. Mas se tiver, a educação deles será diferente da que eu tive, embora tenha o maior orgulho dela. O foco será no cuidado com o planeta. Isso deve ser tratado desde muito cedo. Precisamos entender a natureza como uma manifestação sagrada. Se eu tiver filhos, vou ensinar a eles que é preciso se curvar em respeito a natureza. E que não há nada mais importante do que isso.

  • Jaqueline Goes de Jesus

    É biomédica, mestre em Biotecnologia em Saúde e Medicina Investigativa e Doutora em Patologia Humana e Experimental. É uma das responsáveis pelo sequenciamento genético do novo coronavírus

    Imagem: Divulgação

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