Legados e riquezas

Neca Setubal acredita que pandemia pode ter aproximado a elite nacional da filantropia

Rodrigo Bertolloto De Ecoa, em São Paulo Bruno Santos/Folhapress

Em uma realidade hiperpolarizada, Maria Alice Setubal, 69, é daquelas pessoas difíceis de rotular. Mas há quem tente. Quando vai falar com empresários, ela tem que ouvir que é "idealista" e "ongueira". Por outro lado, parte da esquerda já a tachou como "agente do mercado financeiro".

Herdeira do Itaú, ela não gosta de ser chamada de banqueira, afinal, só veio a ter um cargo três anos atrás no maior banco da América Latina: foi chamada para fazer parte do comitê de diversidade de lá, por ter uma extensa experiência com inclusão social em sua carreira como educadora e filantropa.

Neca, como é conhecida, é doutora em psicologia da educação e mestre em ciências políticas. Misturando esses elementos, ela participou de duas campanhas de Marina Silva (2010 e 2014), ajudou no programa de governo de Fernando Haddad (2012) e foi fundadora do partido Rede Sustentabilidade (2015). "Só volto para a política na próxima encarnação", brinca, depois dos ataques que recebeu durante essas corridas eleitorais.

Atualmente, é presidente dos conselhos de duas entidades da área social. Uma é a Fundação Tide Setubal, que fundou em 2006 para fomentar projetos de desenvolvimento em periferias. A outra é o Gife (sigla para Grupo de Institutos, Fundações e Empresas), entidade que reúne os maiores investidores sociais do Brasil.

Para ela, a pandemia pode ter servido como uma virada da elite brasileira em direção à filantropia. "Eu percebo que algumas empresas e pessoas passaram a ter uma maior sensibilidade diante das desigualdades do país. Há uma demanda para ajudar", afirma.

Filha do empresário e político Olavo Setubal (1923-2008), que foi prefeito indicado de São Paulo (1975-1979) e ministro das Relações Exteriores (1985-1986), ela diz que "na mesa de casa se discutiam só dois temas: política e economia".

Neca fundou e dirigiu o Cenpec, centro de pesquisa que atua há mais de 33 anos na melhoria da educação pública do país e que editou o livro "Cortes e Recortes da Terra Paulista", que garantiu a ela o prêmio Jabuti em 2006 na categoria "didático e paradidático".

Crítica do atual governo federal, Neca diz que vários empresários não querem doar para a política pública direta por desconfiança, preferindo um modelo com fundos públicos e privados tendo um comitê de especialistas gerindo os recursos.

Neca sabe que só com ações de empresários e ativistas não vão se resolver os inúmeros problemas do país. "Os sistemas, os partidos e os políticos estão muito desacreditados. Precisamos fortemente reconstruir isso. Só com políticas públicas vamos resolver porque a escala do Brasil é muito grande. Nós não somos o Uruguai."

Leia abaixo a entrevista de Neca Setubal a Ecoa sobre filantropia, política e futuro.

Ecoa - A pandemia pode ter mudado a postura da elite brasileira em relação à filantropia?

Neca Setubal - É uma grata surpresa o montante de doações feitas ao longo da pandemia. Não é o padrão. Em geral, pelas nossas estatísticas, a média é de R$ 1,3 bilhão por ano. Os R$ 6 bilhões atuais mostram um esforço das fundações, institutos, empresas, pessoas físicas e famílias. Como todos foram atingidos, embora de formas completamente diferentes e até opostas, as pessoas se sentiram mais responsáveis pela situação. Eu percebo que algumas empresas e pessoas passaram a ter uma maior sensibilidade diante das desigualdades do país. Há uma demanda para ajudar.

Eu acabei sendo incluída em grupos de WhatsApp de empresários que querem atuar mais fortemente, por exemplo, em políticas de inclusão. Eles estão mais interessados em saber sobre racismo estrutural e querem agir. São alguns sinais que mostram que vai haver alguma mudança de chave. A extensão e a profundidade disso ainda vamos enxergar. Não vai mudar tudo de um dia para o outro. Mas a pandemia acelerou o processo. Eu sou otimista. Acho que houve uma ampliação da conscientização das elites.

Esse aumento das doações tem a ver também com a falta de ação mais forte por parte do governo federal durante a pandemia?

A pandemia deu visibilidade que o governo não está fazendo. Ou, se fez, não foi o suficiente. Os empresários perceberam que não ia dar certo se eles não assumissem isso. Os motivos são vários. Pode ser o medo de uma convulsão social. Outros se sentiram moralmente responsáveis. Ou acordaram para essa questão. Ou porque os grandes fundos internacionais estão pressionando para que as empresas daqui mostrem, de uma forma muito transparente, o que estão fazendo na área ambiental, social e de governança. Os motivos são diversos, e cada empresário se identifica com uma dessas causas.

Mas houve uma mudança importante. No Brasil, o governo aparece sempre como aquele que vai resolver tudo. Essa visão existe nas classes baixas, pedindo planos sociais, e nas altas, querendo subsídios. Agora se percebeu que a sociedade civil tem um papel fundamental e precisa se mexer

Não é só a elite que não confia no governo, seja no Brasil como no mundo. Os sistemas, os partidos e os políticos estão muito desacreditados. Precisamos fortemente reconstruir isso. Só com políticas públicas vamos resolver porque a escala do Brasil é muito grande. Nós não somos o Uruguai.

O grande ponto aqui é a reconstrução da confiança, passo a passo, com ações muito claras. Em um país como o Brasil é muito difícil construir essa confiança porque as instituições estão impregnadas de desigualdades, e a sensação de injustiça é real. É preciso virar esse jogo. Com desigualdade e racismo, isso não vai acontecer.

Por que a elite brasileira não tem uma cultura da filantropia como em outros países? O modelo norte-americano de filantropia pode ser seguido por aqui?

Aqui teria que ser um modelo diferente, porque deve se articular com as políticas públicas. Os estudiosos fazem severas críticas ao modelo norte-americano de filantropia porque seria uma privatização das escolhas do que seria melhor para os programas sociais. É o grande filantropo que escolhe. Isso é ainda mais forte nos EUA, onde as fortunas são enormes, como as de um Bill Gates ou um George Soros.

É bom lembrar que também é uma questão de imposto de renda, que lá é maior. Doar garante uma isenção, e o milionário escolhe para onde esse dinheiro vai. Será que uma pessoa sozinha faz a melhor escolha de um montante que tem um tremendo impacto? O modelo brasileiro quase não tem subsídio, só um pouco por meio da lei Rouanet e outras. Não dá para comparar.

Em relação à filantropia, dá para diferenciar o tipo de rico que contribui mais?

Você tem um componente religioso muito grande. Especialmente na cultura judaica é muito forte. Mas isso acontece também com evangélicos e católicos. As religiões dialogam muito com a doação. Na filantropia mais progressista, eu falo que são sempre os mesmos, mas agora o grupo ficou maior. Entraram muitos novos atores.

No Brasil, assim como na América Latina, as maiores fundações são empresariais. Elas carregam a marca da empresa, e isso já dificulta trabalhar com temas mais contemporâneos. Algumas vão, mas com muito mais cuidado. É muito difícil, por exemplo, ver apoio para egressos do sistema prisional, soropositivos, transsexuais. Já a filantropia nos Estados Unidos apoia muito a questão da segurança pública, com programas para ajudar ex-detentos em sua nova vida fora da prisão. No Brasil, é muito recente essa área. Percebe-se uma forte restrição em temas mais progressistas. Também não se vê uma fundação que vá à frente em defesa da democracia, fazer posicionamentos políticos.

Bruno Santos/Folhapress Bruno Santos/Folhapress

Tem também a cultura da eficiência, com as fundações empresariais buscando projetos, por exemplo, com alunos acima da média para investir neles e mostrar no final do ano que atingiu suas metas. Isso não está deixando para trás quem mais precisa, que são os alunos abaixo da média?

As pessoas gostam de ilhas de excelência, e temos várias em escolas, em redes, em vários setores. É muito mais difícil achar apoio para aqueles com mais dificuldade, com menor nível de aprendizagem, com maior vulnerabilidade. Demora mais tempo, exige mais recurso, é mais complexo. Nesse caso, tanto os políticos quanto os empresários estão dando mais de seu recurso, que tem um limite, para quem pressiona menos, para uma camada que nem tem voz. E, no final do ano, as fundações têm que prestar contas em um relatório.

Muitas fundações e empresas não sabiam atuar na área social. No início dos anos 1990, elas precisaram muito das organizações intermediárias, das ONGs mais robustas para desenvolver seus projetos. Com o tempo, essas fundações foram formando seus próprios quadros. Isso é mais fácil para elas, porque controlam seus funcionários, controlam os números, não precisam gastar horas dialogando, fazendo concessão. Você atua nos projetos do seu jeito, mais empresarial, mais focado. Além do mais, às vezes a ONG tinha um nome tão famoso que aparecia mais que a marca das empresas.

Até pouco tempo, o Brasil, como um todo, não enxergava a desigualdade. Com isso, de 20% a 30% das crianças não saíram do nível abaixo do adequado de aprendizagem. Isso é gravíssimo. As organizações perderam capilaridade das necessidades e deixaram de inovar muito, perderam essa escuta, esse olhar. A ênfase na eficiência mudou um pouco com a pandemia, e a minha esperança é que continue assim. Temos que prestigiar mais a equidade e não a eficiência, e trazer todos para o mesmo patamar.

Na pandemia, as empresas perceberam que não chegariam no ponto se não existissem essas organizações de base ou intermediária, que de alguma forma eles tinham deixado de apoiar. As fundações voltaram a fazer articulações e parcerias com organizações de base. Voltou a capilaridade, que eu espero que continue, para não perder essa conexão das fundações com o campo social.

Houve também mais parcerias horizontais entre as fundações de empresas. Sempre tinha um discurso de "precisamos fazer mais coisas juntos" entre as fundações, e isso acabou acontecendo agora na pandemia. E não acontecia por essa mesma lógica que as fundações deixaram de atuar com as ONGs: porque é mais cansativo, custoso, burocrático, um cede daqui e outro, de lá, faz reunião, chama todo mundo. Era essa a lógica da eficiência e do curto prazo.

Mas a pandemia mostrou que, se as fundações não fizessem os projetos juntos, o impacto seria zero, cada um trazendo uma migalha porque o problema era muito grande. Eram necessárias parcerias horizontais e verticais, juntar esforços, para ir mais rápido. A agilidade e a desburocratização é possível e tem um bom resultado, sem perder transparência e controle. Um precisava do outro para ter mais impacto e precisava da ONG para chegar nos territórios. Foi o oposto da lógica anterior. Essa inversão pode ser boa e deve continuar.

Uma das constatações da pandemia é que o ensino à distância aumentou ainda mais as desigualdades dentro do ensino no Brasil. Dá para diminuir esse abismo se considerássemos a banda larga como um direito do cidadão? Como vê essa questão?

Não está certa a falta de uma política pública na área. A gente só vai conseguir alguma escala com algum acordo com as empresas de telecomunicação. A boa banda larga simplesmente não existe nas periferias. As pessoas não conseguem carregar um vídeo. Com várias pessoas em uma casa, a internet cai.

Ações pontuais podem ser feitas, como a da Cufa [Central Única das Favelas, em acordo com a Tim para levar banda larga para 2 milhões de pessoas em bairros carentes]. Esse acordo surgiu da necessidade das pessoas da favela, mas vai depender de política pública para ter uma escala nacional.

A internet foi mais um fator de agravar desigualdades. Isso me angustia muito, porque as pesquisas mostram que mais de 5 milhões de alunos não receberam nada de aula durante a pandemia. Um negócio totalmente diferente das escolas privadas. Nas públicas foi muito precarizado. E não sabemos quando vai terminar essa pandemia. Não sabemos se em 2021 vai ser normal. Provavelmente não desde o começo. É dramático. Mostra que o Brasil precisa valorizar muito mais a educação.

Como vê a atuação do governo federal nisso tudo? E as tentativas de tirar o orçamento da educação para criar o programa Renda Brasil?

Quantas vezes o Paulo Guedes [ministro da Economia] explicitamente quis tirar o dinheiro da educação? Nos bastidores, deve ser o tempo todo. Tirar dinheiro do Fundeb [Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica] é um absurdo. Existe neste governo uma grande desresponsabilização do Estado nas políticas públicas. E uma atribuição às famílias por essa responsabilidade. É muito claro que a Damares Alves [ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos], agora mais do que nunca, quer implantar o homeschooling, porque aí a responsabilidade não é do Estado, é da família. É um retrocesso enorme em um país como o Brasil. Porque não são os alternativos que eu conheço que vão adotar isso. A população das periferias é que vai ser atingida.

A gente não tem uma política de educação. Parece até que eu estou inventando, que é exagero. Mas foi o próprio ministro [Milton Ribeiro] que falou que não é responsabilidade do MEC. Como assim? Ainda bem que tem um Conselho Nacional de Educação que dá alguma normativa. Fica cada governador, cada prefeito por si. É inacreditável. É desesperador. Uma fragmentação muito grande. As fundações que atuam fortemente na educação se uniram, criaram plataformas, criaram materiais e estão fazendo articulações com secretários municipais e estaduais.

Todas as empresas, inclusive os bancos, têm também esse papel muito grande diante da questão racial. Tem que haver uma inclusão e uma intencionalidade. Tem que ter uma política, porque deixar tudo como está não vai chegar lá. Sempre foi uma justificativa do setor corporativo que a gente quer incluir, mas não aparece candidato. Se for buscar só na FGV ou só no Insper, não vai encontrar as pessoas negras mesmo. Isso vai mudando, ainda timidamente, mas já vai mudando com programas para trainees, para empreendedores, e apoiando pesquisas que mostram os resultados benéficos das cotas.

Neca Setubal

Bruno Santos/Folhapress Bruno Santos/Folhapress

Como os bancos podem contribuir para que diminuam as mazelas do Brasil, principalmente a desigualdade social e a crise ambiental?

Houve uma iniciativa bem interessante dos bancos em relação à Amazônia. Eles estão se movimentando para serem atores que se responsabilizem. Isso é um passo importante. Os bancos grandes são signatários dos Princípios do Equador, para não financiar projetos que deterioram o meio ambiente e a biodiversidade. Pela primeira vez, os bancos e outras grandes empresas estão se posicionando publicamente, de alguma forma se contrapondo ao governo. Tem um canal de interlocução com o Hamilton Mourão [vice-presidente], mas não com o ministro do Meio Ambiente [Ricardo Salles]. Esses empresários estão atuando tanto internamente quanto em fóruns internacionais, como a ONU. São novas sinalizações, mais amplas. É muito importante essa adesão.

Outro ponto é a questão dos micros e pequenos empreendedores conseguirem empréstimos. Na Amazônia, isso vai acontecer, e os bancos estão se comprometendo. O sistema financeiro tem que olhar com outros procedimentos para os pequenos. Se impor a todos os mesmos regramentos, os pequenos não vão alcançar o crédito. Não é fácil, mas é preciso aprender a como se chega, se estabelece uma relação de confiança, uma série de passos para que aconteça de uma forma mais efetiva e sem ter uma alta inadimplência para que essa iniciativa não seja desperdiçada.

Falando em raça, seus antepassados foram barões do café em um país escravocrata. Essa sua origem influenciou em sua escolha na carreira de trabalhar no campo social, na filantropia e na educação dos mais pobres?

Eu tenho pensado já há algum tempo e nessa pandemia a gente fica mais reflexiva. A gente vai ressignificando o passado ao longo da vida, o que te impactou ontem pode ser que não te impacte hoje. Não é só trauma, que você vai superando e enxergando outros pontos.

Mas, de bate pronto, eu vou te dizer que não foi isso, não foi um olhar de reparação que me fez ter essa conexão com a questão dos negros. Cada vez vou lendo mais, aprendendo mais, estou sendo muito chamada para fazer essa fala por conta que a Fundação Tide Setúbal tem 50% de colaboradores negros. Isso me faz cada vez mais ficar dentro do tema. Hoje eu vejo uma live que só tem gente branca já me dá uma coisa esquisita.

Diria que foi desde sempre, porque eu fui fazer Ciências Sociais na USP na década de 1970. Desde sempre o que mais me puxou foi essa identificação das desigualdades, porque eu estava em outro lugar e eu enxergava isso. Sempre tive essa empatia, sempre me responsabilizei por isso. Eu criei o Cenpec, e lá teve um projeto de sucesso, com apoio da Unicef [Fundo das Nações Unidas para a Infância] que foi o "Raízes e Asas", no começo da década de 1990. Com ele, eu viajei o Brasil inteiro, priorizando as regiões mais pobres do Norte e Nordeste, porque muitas secretarias de Estado usaram esse material. Era dormir em aldeia indígena, ir no meio do mato de Goiás ver aquela professorinha da zona rural.

Fui construindo isso sem perceber, ia integrando a negritude brasileira no meu ser, sem uma intencionalidade. Foi muito mais pela questão socioeconômica. Quando em 2005 criei a Fundação Tide Setubal, eu já trouxe esse olhar de chegar junto e de acreditar na potência das periferias. Como eu tinha essa experiência, conhecia essas iniciativas incríveis no Brasil profundo. Ao trazer essa crença na periferia, na escuta e no fazer junto, somaram-se muitos colaboradores negros deste o começo da fundação. Houve um crescimento muito orgânico, depois foi se tornando mais consciente e mais intencional, nos conselhos, nas gerências

Voltando para a família, nunca foi o passado que me puxou para minhas escolhas. Talvez devido a meu pai, que se dizia um liberal e respeitava muito os diferentes posicionamentos. Ele negava o lado quatrocentão dele. Ele desqualificava essa turma. Para ele, era uma gente que não sabia nada. Era até aflitivo porque muitas pessoas se sentiam ofendidas com isso. Ele rompeu com isso. Esse olhar quatrocentão eu não tive na minha formação.

Outro ponto são essas diferentes camadas de ressignificar o passado. Já passei por vários momentos de culpa. Hoje, penso que trago uma riqueza muito além da financeira da minha herança familiar. Eu tive um pai super liberal, que não só incentivou como se orgulhava do meu caminho. Minha mãe morreu muito cedo, eu tinha 26 anos. Ela trazia esse olhar muito forte de sensibilidade, das artes, da centralidade do ser humano, do amor ao outro. Hoje, consigo trazer esse legado familiar junto com toda a experiência que eu tive ao longo da minha vida. Vejo com mais clareza a forma como misturei essas influências. Eu construo esse meu olhar hoje, mesmo sobre a questão do racismo, de me considerar uma pessoa militante do antirracismo por conta de toda a minha história.

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Que reflexões você tira da participação nas campanhas políticas de Marina Silva em 2010 e 2014? Não volta mais a atuar em corridas eleitorais?

Eu brinco que só volto para a política na próxima encarnação. Eu gosto muito, mas pra mim é algo superado. Não adianta, porque colou: eu sou a banqueira, a exploradora das pessoas, dos pobres, dos oprimidos. E vai voltar. E aí vou ouvir de novo dos amigos petistas: "Neca não liga, viu?". Isso no privado. Porque no público poucos vão dizer que não é bem assim. E tudo bem. É a sociedade.

Eu só pude ganhar com minha participação na política. Não é virar o rosto para oferecer a outra face. Eu aprendi muito. Em 2010, embora eu tenha apanhado também, como a Marina era café com leite, e ninguém imagina que ela teria 20%, teve alguns falando, mas foi mais isolado. Como eu aguentei em 2014? Vocês não me conhecem, eu fui educada de um jeito que não tem isso de desistir no meio. Você entrou, você aguenta e vai até o fim

Desde 2010 foi um período muito político da minha vida, as campanhas, a construção da Rede. Na campanha, você vive aquilo 24 horas, com a adrenalina lá em cima, o que é ótimo. Você nem percebe. É muito louco. Você vai apanhando e vai tocando. É como se fosse um trator. Depois, entrei em uma estafa, deu aquele branco, eu fiquei paralisada. Teve um processo terapêutico ao longo de 2015 para eu ir desfazendo o tamanho da surra. Mas superado isso, o ressentimento é zero com PT, com Dilma, com ninguém.

O único que eu tenho um pouco é com o João Santana [marqueteiro da campanha de Lula e Dilma], porque ele foi muito perverso e, portanto, acertou muito do ponto de vista deles, na forma como ele me atingiu diretamente e muito mais a Marina.

Pra mim é tranquilo, já sentei junto com vários deles ao longo desse tempo. Ao contrário, foi um enorme aprendizado. Eu gosto de política. Eu não consigo deixar de apoiar. Não mais candidatos, porque isso é sempre jogado para a mídia, mas apoio movimentos, organizações, jovens. Dentro da sociedade civil, continuo acompanhando, sendo procurada. E essa experiência me trouxe essa lente da política. Eu não consigo olhar alguma questão da sociedade civil e da filantropia sem a lente da política. Como a questão do racismo, já integrou meu olhar. E isso abriu muitos mundos.

Admiro muito os políticos. Infelizmente, são poucos os políticos sérios e honestos. Eles trabalham 24 horas por dia. Acaba a vida privada, família, porque tem que ficar fazendo conversas, articulando no Congresso, no seu Estado para não perder voto. Precisa entender de muitos assuntos diferentes minimamente. Admiro muito esses novos políticos que estão buscando e conseguindo ter voz.

O espaço da política é o espaço do poder. E tem que saber lidar com o poder. Por isso, estou apoiando muito os movimentos de mulheres. Elas trazem um novo olhar para a política, mesmo as de partidos mais conservadores. Para saber ocupar o poder, precisa ser forte e enfrentar toda a desqualificação machista. Tem que saber lidar. Você ouve os depoimentos dessas mulheres políticas e é de chorar de tristeza, porque o tempo todo estão falando que você é bonita, está usando uma roupa bonita. Isso é uma forma de desqualificar seu discurso, não dar voz.

O feminino traz uma conscientização dos problemas reais, porque a mulher está à frente da casa, dos filhos, das compras, do dia a dia. Ela traz muito fortemente as questões concretas. Em casa, ela traz a política. O homem, não. Separa, fala "trabalho é trabalho". A mulher traz tudo junto. Ela tem esse olhar mais sistêmico, porque a vida não é por caixotinhos, ela traz a vida dentro da política.

Lidar com a política não é uma coisa ruim. É ruim quando os políticos pensam no poder pelo poder, da corrupção, dessa mistura do público e do privado que nós temos no país hoje. Mas o poder pode ser incrivelmente benéfico para a sociedade como um todo, afinal, só pelo poder você vai construir uma sociedade mais justa.

Nesse contexto, quando você foi criticada em 2014, o jornalista Gilberto Dimenstein te defendeu falando que você poderia ter sido uma dondoca, mas era uma importante educadora. Como viu essa fala?

Não concordo com o que Gilberto falou, embora eu entenda totalmente o contexto. E essa é a fala geral de todo mundo. Porque eu tive essa educação que fez ser o que eu sou hoje. Até na política. Meu pai foi político, e tenho um pouco desse DNA. Na mesa de casa se discutia só dois temas: política e economia.

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Marina Silva se apresentou como uma terceira via na histórica polarização entre PSDB e PT, mas quem se aproveitou essa brecha foi Jair Bolsonaro, pela via da direita. Como viu essa situação?

A Marina foi absolutamente visionária em 2010 e 2014. Ela viu que as instituições estavam degringolando. Ela viu a importância das redes sociais, que as pessoas queriam ser atores políticos. E a Rede tentou se constituir nesse formato, mas foi muito aquém do potencial.

Ela tentou fazer isso de uma forma institucionalizada, pela Rede. Tem mil histórias, eu sei de parte delas, porque não deu certo. Ela vislumbrou esse mundo, mas quem viu também foi o Bolsonaro, porque a extrema direita tinha visualizado isso antes. Marina não conseguiu amadurecer essa ideia, e o outro lado veio muito forte. Ela ficava muito sozinha, e o outro lado tinha uma estrutura, não só interna como no mundo.

A Marina falava uma coisa que tinha muito sentido e foi muito criticada. Ela falava que não ia para esquerda ou para direita, mas para frente. É isso que a gente não conseguiu construir no campo progressista, que, ao contrário, está infelizmente superfragmentado. Bolsonaro não veio como uma terceira via, ela era uma via lateral da direita, mais à direita ainda.

E eu não acredito em uma terceira via. Eu acredito em algo diferente, tem que ter um olhar local, da questão de pertencimento, junto com a mundialização. E aí você usa esses dois componentes para ir para frente.

Por que continuar? O que te motiva? E o que está vislumbrando no futuro próximo?

Fiz várias reflexões ao longo desses meses. Primeiro, um passo para trás: em 2018, eu, como muita gente, fiquei arrasada e muito imobilizada. Fiquei sofrendo um processo de ficar lendo tudo desse Bolsonaro. Fui ficando tão intoxicada que até voltei a fazer terapia. Foi aquela coisa compulsiva. Um horror, e eu me sentia de alguma forma culpada porque o mercado, o empresariado, sem personalizar, tinha apoiado o Bolsonaro. Foi um processo muito ruim, mas eu consegui elaborar, superar e me distanciar do Bolsonaro, para não ficar paralisada.

Na pandemia, em um primeiro momento, também me intoxiquei de notícias. Lia tudo. Foi um processo pelo qual muita gente passou. Enquanto fundação, a gente começou rapidamente a atuar, ansiosa na tentativa de salvar o mundo. Foi um momento de querer fazer muita coisa, mas achando que tudo estava indo para o abismo.

Quanto mais você lê sobre Bolsonaro e a pandemia, mais fica te imobilizando a cabeça. Então, também fiz esse movimento de me distanciar um pouco. Tem essa coisa que eu tenho às vezes de onipotência, as fundações têm, os filantropos têm. Como se você fosse resolver tudo. Você vai resolver naquele seu pedacinho, e essa é a sua contribuição. Me move muito a possibilidade que tenho, por ser quem eu sou e ter o que tenho, a possibilidade de fazer a diferença. Isso é muito gratificante.

É pensar em deixar legados, para os meus filhos, para os meus netos e algumas pessoas. Não vai mudar tudo de um dia para o outro. E a gente tem que ter essa humildade de entender isso, mas entender o seu papel. Menos onipotência e mais humildade, me torna mais potente e esperançosa. É um período da história que estamos vivendo, vamos contribuir o melhor que a gente pode.

Tudo isso vai passar. Não só a pandemia, mas também essa visão de extrema direita superconservadora. Não sei se vai demorar mais ou menos. Espero que seja menos.

Neca Setubal

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