A voz do morro

'Segurança pública na favela é lógica do fuzil': 'sobrevivedor' cria agência com experiência ganhada na feira

Carlos Minuano Colaboração para Ecoa, de Iranduba (AM) LUCAS LANDAU

Sou nascido e criado no Complexo do Alemão, venho de uma realidade de extrema pobreza, comecei a trabalhar bem jovem e a favela é a minha grande escola de vida, hoje todos os meus movimentos são para tentar levar novas possibilidade e perspectivas para esse espaço

Passei por vários projetos sociais da favela, aprendi muito e ao mesmo tempo observava coisas que poderiam ser feitas para melhorar ainda mais essas atuações, foi por aí que tive insights para também criar outras iniciativas.

Comecei a trabalhar aos 13 anos em uma feira de rua que acontecia no principal acesso à favela. Mas eu não era feirante, ficava no pé do morro oferecendo serviço braçal aos mais velhos para carregar suas compras em busca de algum trocado.

Isso me transformou num comunicador. A comunicação é uma ferramenta central em todos os meus processos. Primeiro porque precisei perder minha vergonha de falar em público e de me posicionar. E também porque quem aceitava essa ajuda eram as pessoas que moravam em regiões mais distantes da favela. Ou seja, nesse caminhar com as pessoas eu pude conhecer melhor a favela, locais com esgoto a céu aberto e outros mais estruturados, até com árvores, áreas com barracos de madeira e outras partes com casas legais, enfim, as várias realidades que formam a comunidade. E o mais importante: ter amizade com essa velha guarda, a ancestralidade viva do complexo do Alemão, que foi de uma riqueza enorme.

Filho das redes sociais

Ativista, gestor de projetos sociais, consultor, empreendedor e influenciador, Raull Santiago, hoje com 33 anos, continua no mesmo lugar em que sempre viveu: no Complexo do Alemão, com esposa e quatro crianças. Apesar dos problemas locais, que não são poucos, ele mantém com o território uma relação de afeto. "Vejo esse lugar como se fosse um grande coração, os becos e vielas da favela são as muitas artérias que bombeiam ele."

Projetado pelas iniciativas que criou, Santiago já viajou pelo Brasil e pelo mundo, falando sobre a realidade da favela, para onde sempre retorna. No Complexo do Alemão compartilha o que vai aprendendo pelo caminho, com a esperança de inspirar crianças e jovens a também construir novas possibilidades, que garantam sonhos e direitos.

"Só tenho o ensino médio completo", conta. Mas, reconhece o valor educacional da escola padrão em sua vida. "Tive professores esforçados". E revela ser um colecionador de cursos de extensão. Um deles foi o de comunicação crítica no Complexo da Maré. "Me deu ferramentas importantes". Ele se considera resultado de todas essas experiências, mas se diz moldado pela educação orgânica que recebeu da favela, das pessoas que fazem os movimentos sociais e constroem novos caminhos.

"Sou também filho das redes sociais", acrescenta. "Tento usar essa ferramenta para mostrar a favela com um olhar crítico sobre as desigualdades que existem nesse espaço e o que pode ser feito em relação a isso, mas sempre mostrando um lugar cheio de potência", ressalta o ativista.

CREATORS ACADEMY/@helenaalbaa CREATORS ACADEMY/@helenaalbaa

Do morro para a Amazônia

Sem curso superior, Santiago circula por universidades falando dos saberes das periferias e da sua trajetória pessoal atravessada por diferentes mundos.

"Enquanto parte da sociedade desconhece a favela, o morro desce todos os dias para a sociedade para que ela funcione", compara o ativista.

"É quem sai mais cedo, pega ônibus lotado para abrir as portas, acender as luzes, e também são as últimas a saírem para novamente pegar transporte cheio e às vezes nem conseguir entrar em casa, porque está ocorrendo um tiroteio, uma operação policial."

Santiago conversou com Ecoa num lugar bem longe da favela carioca onde vive. A entrevista foi às margens do Rio Negro, na comunidade ribeirinha de Tumbira, localizada em uma RDS (Reserva de Desenvolvimento Sustentável), a quatro horas de barco de Manaus (AM).

A reportagem acompanhou a primeira edição do Creators Academy, projeto idealizado por ele e pela empreendedora social Kamila Camilo, que levou dezenas de influenciadores para uma imersão de uma semana na Amazônia em julho. A ideia nasceu em 2021, na COP26, da qual ambos participaram, em Glasgow, na Escócia.

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'Segurança pública na favela segue a lógica da mira do fuzil.'

"Depois da invasão colonial, escravidão e a ditadura; a guerra as drogas é a atual ferramenta de controle violento de corpos negros e periféricos no Brasil", desabafa Santiago. "Segurança pública na favela segue a lógica policial da mira do fuzil."

"Drogas estão em todos os espaços, mas a guerra só acontece em territórios e com populações específicas", observa o ativista, que criou um projeto para debater o tema, a partir de uma perspectiva periférica e favelada.

O "Movimentos: drogas, juventude e favela", segundo Raull, busca provocar reflexões sobre o que são drogas, qual o objetivo das atuais políticas e como elas criminalizam a favela.

A busca pela voz da favela fez Santiago se envolver na criação também de outras ações, como o Perifa Connection, uma plataforma de narrativas periféricas — uma das organizações envolvidas no projeto Creators Academy, que, junto com o Instituto Ayika e ISC (Instituto Clima e Sociedade) levou influenciadores para uma imersão na Amazônia. Os criadores possuem uma coluna na Folha.

As questões ambientais estão na base do Favelas e ODS (Objetivos de Desenvolvimento Sustentável), projeto recém-criado por ele, que leva o debate sobre meio ambiente e clima para o Complexo do Alemão e outras periferias.

O trabalho vem dando frutos. Em 2020, ele foi convidado pela Global Goals, sediada em Londres, para falar sobre urgência climática global em uma campanha com 20 ativistas do mundo todo. No mesmo ano, foi indicado pela revista Wired como uma das 50 pessoas mais criativas do Brasil.

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Parça de Luciano Huck

"Não somos empreendedores, somos 'sobrevivedores'. Na favela, empreender significa sobreviver, isso quando a ideia dá certo", pondera Raull Santiago. No caso dele, deu certo.

Além das tantas atividades na favela, é integrante da Anistia Internacional do Brasil, consultor do Instituto Nubank, e embaixador da água mineral Ama da Ambev, produto que tem o lucro revertido para projetos sociais de acesso à água no semiárido brasileiro.

Há uns quatro anos, Santiago diz que seu trabalho começou a alcançar outras bolhas, e hoje é amigo de famosos, como Luciano Huck e Paolla Oliveira.

Recentemente, assinou com a Mind, agência de influenciadores dos sócios Preta Gil, Fátima Pissarra e Carlos Scappini. Entretanto, garante só fazer publicidade de produtos relacionados a causas que defende.

Olhando pelo retrovisor, o ativista faz um balanço da própria trajetória. O começo foi no Ocupa Alemão, movimento de protesto à violência do programa das UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora), criado em 2008.

Denunciando violações, o ativista entrou de sola na disputa de narrativas sobre a favela, provocando a sociedade sobre a leitura estereotipada que se fazia sobre o Complexo do Alemão. "Isso me deu diferentes níveis de visibilidade, muitos quiseram me conhecer, outros começaram a me ameaçar."

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Inteligência Favelada

"Quer saber como é a aceitação do seu produto na favela? Vamos lá ver". A conversa com empresários terminou com a visita de 20 executivos de uma grande empresa ao Complexo do Alemão, guiada por Santiago. "Deu tão certo que depois mandaram uma turma de trainees."

Com a visibilidade em alta, o ativista passou a ser procurado por profissionais interessados em informações de aceitação de produtos nas periferias. A oportunidade de ocupar um novo espaço estava batendo à porta.

O insight de Santiago está correto. Se um produto passa uma imagem menos racista, mais diversa, a marca cresce e se posiciona melhor em rankings de empresas que se preocupam com diversidade e ESG (Environmental, Social and Corporate Governance, que em português significa práticas ambientais, sociais e de governança).

O ativista criou então a Agência Brecha - Hub de inteligência favelada para consultoria sobre mercado e favela, da qual hoje é o CEO. Ele trabalha com mais cinco pessoas, e um deles é Tiago Purificação, 34, diretor de talentos e logística da empresa.

"Minha primeira atuação com o Raull foi durante a pandemia, quando distribuímos cestas básicas e kits de higiene", conta "Me fez aprender muito sobre coletividade e favela."

Durante a pandemia da covid-19, no início de 2020, o coletivo Papo Reto, outra iniciativa fundada por Santiago, junto com os projetos Vozes da Comunidade e Mulheres em Ação no Complexo do Alemão, coordenou um gabinete de crise que ajudou em torno de 75 mil pessoas com cerca de R$ 11 milhões, levantados ao longo de oito meses a partir de doações de dinheiro e de cestas básicas.

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