Yoga ancestral

Mulheres negras criam rede de apoio durante a pandemia e mostram que cuidar de si é algo para todos

Paula Rodrigues De Ecoa, em São Paulo

"Nos meus retiros espirituais / descubro certas coisas tão normais...", eram os versos de Gilberto Gil que ecoavam baixinho do outro lado da tela do computador. A música servia de trilha sonora para acompanhar a voz suave da capixaba Tayla Candido, uma jovem com black volumoso e sorriso de ponta a ponta que toda semana tem dado aula online de yoga para um grupo de mulheres negras espalhadas pelo Brasil.

"Deite no chão de barriga para cima, feche os olhos, respire e relaxe" era o pedido que ela fazia já ao final da prática enquanto Gil continuava com seu sotaque baiano cantando ao fundo. Nos aproximadamente 15 minutos que ficamos nessa posição, Tayla nos guiava para que entrássemos em um relaxamento profundo. "Se permita relaxar, desligar a mente", ela dizia. Em outros momentos, pedia para que, ainda deitadas nessa posição conhecida como savasana, pensássemos na potência da nossa existência.

Assistir a um grupo de mulheres negras tirando um tempo para pensar apenas em si e desligar do resto era uma cena nova. Historicamente, são elas que estão na posição de cuidadoras, mas raramente são cuidadas por outros ou destinam um tempo para cuidar de si. Como disse a autora norte americana bell hooks em "Vivendo de Amor" (1993): "Numa sociedade racista e machista, a mulher negra não aprende a reconhecer que sua vida interior é importante."

Para ela, o sistema escravocrata criou mecanismos que tornaram difícil o crescimento espiritual da população negra, o que dura até hoje. Porém, "falo de condições difíceis, não impossíveis", ela completa. Voltando, então, para o yoga: a prática tem sido usada por mulheres negras justamente para se contrapor a esse cenário, servindo como ferramenta para promover momentos de cuidado, reflexão e relaxamento para elas.

"Nós, mulheres negras, somos expostas a muita coisa o tempo todo. Eu decidi começar yoga e isso tem sido o meu remédio nesses últimos quatro meses. Esse é um momento que a gente tira para não pensar em tudo que está acontecendo ao redor: as notícias, a falta de dinheiro, o trabalho cancelado por causa da pandemia. A gente precisa aprender a começar a cuidar da gente, do nosso interior", conta a atriz Sol Menezes, que voltou a praticar por causa desse grupo destinado ao autocuidado de mulheres negras criado logo quando a quarentena começou no país em março deste ano.

Assim como ela, muitas outras mulheres negras contaram que o yoga foi a forma que encontraram para se reconectar com sua ancestralidade e partir dela conseguiram criar uma rede de apoio e cuidado. Também afirmaram que pela primeira se viram representadas e confortáveis dentro desse universo que por muitas vezes permeia o imaginário brasileiro sendo uma prática elitista e até mesmo considerada "coisa de branco", como algumas já ouviram falar ou assim já definiram — mesmo que historicamente não sejam essas suas origens. Há quem crave que a prática nasceu no Egito antigo, enquanto outros defendem a origem indiana.

A yoga do ubuntu

O grupo de que essas mulheres fazem parte chama-se Ubuntu Yoga. Tem só quatro meses de existência, mas a filosofia que o move é ancestral. O filósofo sul-africano Mogobe B. Ramose define a ética do ubuntu como a fundação e o edifício da filosofia africana. Atribui "ubuntu" à ideia europeia "da liberdade, de que indivíduos têm o poder da livre escolha" e à ideia africana de "comunidade, de que pessoas dependem de outras pessoas para serem pessoas". Assim, ele utiliza os dois significados para desenvolver a ética de ubuntu, em que a tradição africana continua fiel a si mesma, mas que possa ser aplicada num mundo dominado pela ciência e a tecnologia europeias.

É levando essa cosmovisão africana ao dia a dia por meio da prática do yoga que o grupo composto por cerca de 30 mulheres tem funcionado. Até mesmo o motivo dele ter sido criado tem mais a ver com a coletividade dessas pessoas do que com a yoga em si. "O yoga foi quase como uma desculpa, sabe? Uma ferramenta para ajudar outras pessoas", me contava Tati Cassiano, que é dançarina, modelo, instrutora de yoga e, principalmente, baiana, característica que ela diz ser a mais importante e explicativa de todas.

Ela segue contando a história da criação do grupo com uma espontaneidade de quem parecia me conhecer há tempos: "Aí, menina, imagina: estourou a quarentena", diz, fazendo uma pausa grande como se a frase dita fosse autoexplicativa. E talvez seja. Para além do medo causado pela crise sanitária, a falta de reserva de dinheiro, o cancelamento de vários trabalhos, as dúvidas e incertezas sobre como conseguiria se sustentar durante esse período são sentimentos compartilhados por muitos brasileiros e brasileiras.

"No segundo dia da quarentena, eu decidi que ia viver um dia de cada vez para não surtar. E o que ia me ajudar? O yoga. Só que eu participo de um grupo de casting só com pessoas negras, e lá comecei a ver muitos relatos das meninas todas desesperadas, com falta de grana, falando que estavam tendo crise de ansiedade, com medo. Eu chorei muito no dia que li o que elas estavam falando lá. Ali eu pensei: a gente precisa usar as ferramentas que a gente tem para mudar as coisas. Não são só as coisas grandiosas que têm capacidade de mudar o mundo, ações pequenas também são potentes."

Logo mandou uma mensagem falando que queria dar uma aula de yoga para elas, para apresentar alguns recursos por meio da prática que poderiam ajudá-las. Cerca de 40 mulheres mostraram interesse. O problema é que nem todas conseguiriam estar presentes no horário que Tati tinha disponível para a aula. Por isso, a baiana chamou Tayla para entrar nessa e dar aula em outro horário. Meio que sem perceber, criaram um grupo que virou uma rede de apoio.

"Eu e a Tayla fizemos a mesma formação de yoga com a Micheline Berry, mas em turmas diferentes. A gente se encontrava em algumas reuniões de Zoom por causa disso, se seguia nas redes sociais. Por causa do grupo, passamos a ter mais contato. Encontrar a Tayla na minha tela de computador foi tão bom, olhar para aquela mulher negra instrutora e me identificar, sabe? Quando a gente começou a conversar, percebi que ela também tinha várias das minhas inseguranças, a dúvida de me colocar como professora de yoga ela também tinha. Me ver ali nela foi transformador", diz.

Primeiras vezes

Foi nessa definição dada por Tati que eu pensava enquanto observava Tayla no começo da aula. Normalmente, a prática começa às 10h. Cerca de seis mulheres entraram na sala de Zoom dessa vez, todas com roupas confortáveis e em cima de um tapetinho ou um pano colorido, prontas para dedicarem a próxima hora à prática do yoga. Tayla dá bom dia para quem vai chegando e pergunta se estamos bem.

Ouve um: "mais ou menos, mas está fluindo" de uma aluna que aparece no vídeo preparando o ambiente para a aula. A instrutora, então, responde dizendo que vai ficar tudo bem e que "estamos aqui", uma maneira de confortá-la. Depois, se apresenta e me apresenta — eu, a repórter que estava ali para saber como é ser uma mulher negra, tendo aula com uma instrutora negra e rodeada, mesmo que virtualmente, por colegas negras. Tudo pela primeira vez.

Antes de começar a produzir esta reportagem, não conhecia nenhuma instrutora negra. Já havia praticado yoga por um breve período em 2018 e num momento em 2019, mas em turmas com instrutoras e alunas brancas. Estava curiosa para entender na prática as diferenças que muitas meninas negras com quem conversei anteriormente tinham compartilhado. Logo no começo, em vez de ir direto para a aula, Tayla pede a palavra. Quer falar sobre autonomia com as meninas que estão ali na chamada de vídeo. Ela conta que uma aluna a procurou para dizer que estava praticando todos os dias, mesmo sem o auxílio da instrutora. A conquista foi celebrada por Tayla.

E ela fala isso por experiência própria. A primeira vez que deu aula para uma turma foi por causa do grupo criado por Tati. Mais do que isso: apesar de praticar yoga há quatro anos, foi só na formação intensiva de 20 dias em janeiro deste ano que teve uma instrutora. Até então, durante todos esses anos, utilizava aulas disponíveis gratuitamente no YouTube como guia.

A motivação para entrar nesse universo veio por causa de outras mulheres pretas que ela seguia e que começaram a divulgar nas redes. Uma delas é Juliana Luna, que pratica yoga há mais de dez anos e é instrutora desde 2018. Tayla escreveu para Juliana para contar que queria começar, mas que não tinha equipamentos para isso.

"Ela me falou que não tinha tapete, que não tinha não sei o que lá que a prática pede. E eu falei para ela só precisava do corpo e da mente para começar", conta Juliana. Na mesma hora, Tayla pegou uma toalha que tinha em casa, estendeu no chão e fez sua primeira aula com auxílio de um vídeo de 15 minutos. Quando terminou, mandou uma foto para Juliana e disse: "Fiz yoga pela primeira vez."

A atitude de mandar foto para Juliana se estendeu por muito tempo. Tayla usou como tática de incentivo: combinou que ao final de cada prática mandaria um registro para que isso virasse um compromisso entre as duas. "Yoga significa união. Para mim, não é sobre aquelas poses bonitas no Instagram ou quanto tempo eu consigo ficar de cabeça para baixo. Ou se o meu tapetinho é de tal marca. É você ter a consciência de que toda a sua experiência é uma ponte entre você, as outras pessoas, os nossos ancestrais e as forças da natureza", diz Juliana.

Inspira, expira

São muitos os tipos de yoga. Patanjali, que viveu no século 2 a.C estruturou a prática em oito passos: as abstinências, as regras da vida, as posições do corpo, chamadas de asanas, o controle da respiração, o controle das percepções sensoriais orgânicas, a concentração, a meditação e a identificação. Atualmente existem muitas linhas como o Hatha, Ashtanga, Kemética, Vinyasa, entre outras. Cada uma com sua peculiaridade. A Vinyasa, por exemplo, que é a prática dada por Tayla, é mais fluída e dinâmica, atrelando os movimentos do corpo à respiração.

Durante a aula ela vai explicando melhor enquanto dá as instruções. Inspira, reproduz um movimento. Expira e reproduz outro.

"A prática do yoga, na verdade, é uma filosofia", é o que me explica Mônica Augusto, atriz, dançarina e professora de yoga no Yoga Para Todos, que seria uma "escola nada convencional", como se autodefinem. O projeto tem como objetivo levar a prática para todos os tipos de corpos: magros, gordos, pretos, brancos, periféricos, com deficiência e por aí vai.

Ela ainda explica que um dos principais pontos para conseguir alcançar essa serenidade por meio do yoga, é com a respiração correta. Tayla já havia falado o mesmo. As duas batem na tecla: praticar yoga pode nos ajudar a reaprender a respirar direito, com consciência. O que pode parecer sem sentido, mas não é. E também não costuma ser nada simples.

Durante a aula, a instrutora nos relembra a todo o tempo de respirar pelo diafragma e não pelo peito. "A gente acha que a respiração correta está aqui no peito, só que isso não nos dá uma respiração completa, oxigenando nosso corpo e nosso cérebro de forma correta. Isso nos faz acionar o nosso sistema nervoso simpático que é responsável por ações extremas e emergenciais: luta ou fuga, congela ou sai correndo", Tayla explica. É por isso que quando você está ansiosa ou ansioso, a respiração fica ofegante e a sua capacidade de tomar decisões, debilitada.

"Só que quando você respira corretamente, o seu sistema nervoso parassimpático que é ativado. E ele é responsável pelo aprendizado, pela calma, por você conseguir observar o que está acontecendo com mais tranquilidade, sabe?", completa.

Para Aline Inocencio, instrutora que também faz parte do grupo Ubuntu Yoga, foi exatamente esse ponto que a pegou quando começou a praticar aos 17 anos. Estava em um momento de extrema mudança: tinha completado o ensino médio, o time de basquete da escola acabou e ela não conseguia parar de pensar no futuro, em como ficaria a vida dela, uma mulher negra e periférica.

"Quando fiz yoga pela primeira vez, naquele momento eu pude ficar lá, sem ansiedade, sem pensar no futuro. Eu consegui ficar presente. O yoga tem isso, ela te puxa pro momento presente, ela te conecta com você mesma e te ajuda a deixar a mente mais limpa para pensar melhor por causa dessa respiração", explica ela, que também é professora de educação física, jogadora de basquete e modelo. Até dentro do esporte isso mudou. "No basquete eu tenho que ter tomadas de decisões rápidas, né? E conforme eu ia fazendo yoga, eu via que o meu desenvolvimento dentro da quadra, a minha consciência corporal mudava bastante. A minha resistência também. Eu usava a respiração do yoga para me ajudar a ficar mais focada nas jogadas."

Durante a quarentena, todas as mulheres que falam nessa entrevista observaram aumentar o número de gente procurando pelo yoga. A suspeita é de que essas pessoas estejam buscando novas formas de ter algum acalanto e conseguir usufruir dessas ferramentas que a prática proporciona para aguentarem melhor o momento de caos em suas vidas e no mundo como um todo.

"Estou achando tão importante que nesses últimos meses mais gente preta tem se interessado a aprender mais sobre yoga. Sobre essas práticas de respiração para se acalmar. Tô conhecendo muita gente preta que é praticante, que dá aula. Para além da melhora individual na saúde dessas pessoas, tem o ganho coletivo, né? A gente se fortalece enquanto comunidade para trazer outras discussões dentro do universo do yoga, que aqui no Brasil costuma ser muito branco e elitizado", diz Mônica.

A yoga como cura

Por causa desses benefícios, em 2017, o SUS (Sistema Único de Saúde) incorporou o yoga como uma das Práticas Integrativas e Complementares (PICS), que o Ministério da Saúde define como "tratamentos que utilizam recursos terapêuticos, baseados em conhecimentos tradicionais, voltados para prevenir diversas doenças". No mesmo ano foram dadas 35 mil sessões da prática pelo Brasil.

Quando Sol Menezzes disse, na abertura desta reportagem, que o yoga tem sido o remédio que ela encontrou durante a quarentena, ela não estava brincando. Além do suco verde diário, ela tem praticado três vezes na semana com três professoras diferentes. Quando pergunto o motivo de tanta prática, ela diz que tem entendido cada vez mais o que apenas parar por alguns minutos pode trazer de benefícios.

"Não adianta fazer máscara de argila no rosto e ficar se cobrando o dia inteiro", ela diz em um vídeo que postou nas redes sociais e bateu milhares visualizações. "Ah, eu vi muitas pessoas postando que estavam se autocuidando fazendo skincare. Ok, eu acho incrível cuidar da pele. Mas e a mente? E a sua espiritualidade? Não é só skincare que é autocuidado, não."

Ela voltou a praticar em março por causa do grupo Ubuntu Yoga. Anteriormente, já teve aulas particulares e com instrutoras brancas. A falta de interesse na prática vinha desse imaginário de que yoga é coisa de branco. "Você já parou para pesquisar 'yoga' na Internet?", ela questiona. De fato, em uma busca rápida por imagens relacionadas ao termo, só umas cinco fotos são de mulheres negras na primeira página. "Como é que eu vou olhar e achar que isso é para mim, uma mulher negra? E além disso, os papos durante a prática me afastavam também. A instrutora branca falava de 'ai, vamos mentalizar a paz mundial'... Sério, amiga?"

Independente da vertente do yoga que cada uma segue, todas possuem uma característica comum: não estão descoladas da realidade. Apesar de sempre tentarem encontrar esse estado de serenidade, não é sempre que conseguem desligar os pensamentos e focar na respiração, ignorando o mundo lá fora. Quando George Floyd foi assassinado e João Pedro também, as mulheres do Ubuntu Yoga sofreram juntas. Tati conta que falava para elas que aquele era o momento de esquecer o namastê e focar no jeito que elas achavam certo para sentir toda a raiva que tinham.

Onde está a professora?

Em determinado momento da conversa, Mônica começa a listar tudo que ela é: mulher, negra, gorda, que fala alto, explosiva, boca suja, inflada e louca. Muito louca. A dúvida que sempre rondou a cabeça dela era uma só: "Como é que alguém assim pode ser professora de yoga?", ela diz ter se questionado. Por sentir que nunca se encaixou direito nesse mundo, acabou não assumindo nem para si mesma que ensinar poderia ser uma opção.

O racismo e a gordofobia de terceiros contribuíram muito para dificultar ainda mais esse momento. "Abri meu estúdio e muitas pessoas chegavam lá e ou me falavam 'nossa, você é professora de yoga?' ou me perguntavam: 'cadê a professora de yoga?. Isso porque as pessoas esperam que praticantes e instrutores de yoga estejam dentro do padrão magra e branca", conta.

Daria para gastar todas as linhas dessa reportagem descrevendo situações de racismo vividas por essas mulheres dentro desse espaço que no Brasil. Uma delas foi compartilhada pela personal trainer paulistana Aline Inocencio: durante a formação para ser instrutora, um professor disse que ela aprecia uma "Ganesha raivosa" por causa do cabelo black que tinha amassado e ficado desarrumado durante a prática.

"Todos os meus colegas brancos riram disso, e eu não sabia o que falar. Uma aluna minha esses dias disse que sentia o mesmo desconforto porque às vezes deitava no chão durante a aula e as pessoas ficam olhando e comentando do cabelo dela que ficava bagunçado quando levantava", conta.

São episódios como esses que acabaram minando a confiança das mulheres com quem conversei. A Tati Cassiano, por exemplo, que além de ter feito a formação de instrutora de yoga, tem experiência com a capoeira e com circo, que frequentava constantemente aulas abertas de expressões corporais no Farol da Barra, que ensinava tecido, que, inclusive, fez curso de anatomia aplicada a atividades circenses pela Santa Casa, até o começo dessa quarentena, não se sentia qualificada para começar a dar aulas.

Acessando a ancestralidade

O mestre de yoga Yirser Ra Hotep tem dedicado anos de sua vida estudando e levantando provas de que a yoga não nasceu na Índia, mas sim no Egito antigo, em uma região anteriormente conhecida como Kemet. Entre muitas idas ao país, ele passou a observar que os desenhos das pirâmides se assemelhavam a posturas do yoga. Assim, nos anos 1970, foi o responsável junto ao mestre instrutor Dr. Asar Ha-pi a documentar a prática do yoga kemética, popularizada como yoga africana.

De fato, sentados no chão, com os braços e pernas abertos para as laterais, os praticantes realizam posturas que remetem às figuras representadas nas pirâmides. "O yoga kemética não está no lugar de sobrepor as outras práticas. O yoga por si só tem muitas vertentes. Não existe motivo para comparação entre o yoga indiana e o yoga africana. São manifestações de povos que criam e recriam seu modo de viver. O yoga kemética está mais para esse lugar de ascensão espiritual, de livrar nossos traumas, de quebrar medos e sofrimentos", explica Karimá Serene, instrutora de yoga, que pratica há 15 anos.

"O yoga no geral já tinha me chamado a atenção porque era uma prática que me tocava e eu não conseguia dizer o porquê. Mas eu me sentia isolada porque era uma ambiente totalmente branco, não tinha nenhum tipo de acolhimento do instrutor. Mas sempre me tocou, mesmo a prática das vertentes indianas. Depois comecei a entrar em contato com amigos que tiveram a oportunidade de viajar para fora e ter contato com o yoga africana, que não existia no Brasil ainda. Saber que existia um yoga africana me chamou muito a atenção, porque se ela é africana ela diz sobre nós, a população negra", conta Karimá.

Ela conseguiu realizar a formação nessa vertente em dezembro 2019, quando Rosa Natalino trouxe pela primeira vez um curso de formação de yoga kemética para o Brasil com o mestre Yirser, o único com certificação para dar aulas de formação do método que ele criou pela escola Yoga Skills, em Chicago. "Uma das coisas que mais me marcou na formação é que éramos uma turma de 12 pessoas. Todos pretos estudando para serem instrutores de yoga kemética", conta Karimá. O curso foi dado na Kasa de Maat, fundada por Rosa que tem como principal objetivo resgatar práticas holísticas ancestrais africanas.

Rosa só descobriu a existência do yoga africana quando tinha 40 anos. Já estava envolvida no universo da prática, procurando entender e se especializar em yoga para tratar problemas como ansiedade e depressão. Quando frequentou uma palestra sobre a kemética que nunca havia praticado, ouviu falar de uma África que até então ela nem sabia da existência.

"Os instrutores falavam desse continente grandioso e rico, que é berço da matemática, da filosofia. Eu sabia da África do sofrimento, que foi escravizada por séculos. Eles falavam dessas dores e traumas que carregamos desse período, mas também da grandiosidade que carregamos no nosso DNA como herança de milhares de séculos atrás. Pelo yoga, entendi que os horrores que nossos ancestrais foram obrigados a passar não fazem parte da História da África, e sim da europeia", conta.

Mas ela relembra: em qualquer vertente do yoga é possível se conectar com essas raízes. Rosa afirma que seria impossível pensar em um yoga indiana sem a contribuição de algum povo africano que por milhares e milhares de anos têm caminhado pelo mundo, recriando novas culturas.

Durante a aula que Tayla dá, por exemplo, a conexão com a ancestralidade é sempre presente. De olhos fechados e pés bem cravados no chão, Tayla pedia para pensarmos em nossos ancestrais: nossos pais, nossas mães, avós, avôs e até mesmo quem não conhecíamos ou não sabíamos os nomes. Ali, podíamos pensar no que consideramos como ancestrais.

"As pessoas acham que ancestralidade está ligada só com a nossa linhagem. Mas essa é só uma parte de como ela se expressa. Ancestralidade se expressa também como uma sabedoria interna. Um fio de conexão entre tudo aquilo que já viveu antes de você e tudo aquilo que vive nesse momento. As árvores, por exemplo elas podem ser nossas ancestrais", explica Juliana Luna. Meus pensamentos pulavam, então, da minha mãe para meu pai e, de alguma forma, especificamente para a terra da roça do meu avô, no interior da Bahia.

Construção e reconstrução

"Eu fico muito emocionada no final das aulas", confessa Tayla, que em seguida dá espaço para que as meninas que acabaram de praticar possam falar sobre como elas estão se sentindo. "Gente, fiquem a vontade, esse momento é como se a gente estivesse tomando um açaí na rua e batendo um papo."

Duas delas que estão na sala de Zoom decidem agradecer a Tayla e a yoga que, segundo os relatos, têm as ajudado a aguentar o peso dos problemas durante a quarentena. "Quero falar que a yoga está me ajudando muito a respirar, sabe? São tempos bem difíceis, e o yoga tem me reconstruído. O yoga me ajuda a me sentir mais confortável dentro de mim. E eu agradeço. Muito obrigada," uma delas diz.

Assim também me despeço das mulheres que aos poucos ficavam offline para dar continuidade ao dia a dia. Tayla me convida, então, a retornar à aula na semana seguinte. Me relembra da playlist que montou com as músicas que tocaram durante a prática, caso eu queira praticar sozinha em casa.

Dias depois, uma mensagem Tati Cassiano chega no WhatsApp. "Amore, o nome do meu projeto com as meninas é Ubuntu Yoga", dizia. Acontece que durante a entrevista, ela ainda estava inquieta tentando encontrar um nome de que gostasse para o grupo. Temporariamente ele tinha sido definido como "Yoga Black Girls". Compartilho que estava escrevendo justamente sobre elas para esta reportagem.

"Que coincidência!", digo.

"Não, viada, isso é ancestralidade falando, conectando", ela responde.

Agora que você já conheceu a história das mulheres e suas conexões ancestrais por meio do yoga, Ecoa convida a fazer uma nova leitura. Desta vez, das imagens distribuídas ao longo desta reportagem. A cada posição a instrutora Tayla Candido constrói uma prática básica de yoga e ajuda a levar uma experiência diferente para os leitores da plataforma.

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