Não é coisa de branco rico

Grupos trabalham para conscientizar a população de que mudança climática é um assunto de todos e para todos

Paula Rodrigues De Ecoa, em São Paulo Marcelo de Jesus/UOL

"Maré" e "paz" são as duas palavras escritas em uma parede no meio do maior conjunto de favelas do Rio de Janeiro, na zona norte da cidade, escolhida como pano de fundo para uma foto. A cor azul desbotada da construção denuncia que a pintura é antiga. As incontáveis marcas de bala de arma de fogo cravadas nela, porém, não deixam pistas desde quando estão por ali. "Essa imagem tem que ser mais ampla, a gente quer mostrar a nossa realidade". Foi assim que os jovens do coletivo Eco Maré justificaram para o fotógrafo a preferência pelo local do retrato.

O fotógrafo documentava a ação do grupo em um canteiro verde que construíram em uma rua dentro do Complexo. A princípio, a foto tinha como finalidade registrar o trabalho que eles desenvolvem promovendo educação ambiental dentro das favelas, por meio da revitalização de espaços públicos. A ideia dos jovens do Eco Maré, então, era quase dar um aviso de que não se pode falar sobre meio ambiente ignorando os problemas que eles vivem cotidianamente em uma favela.

Antes da Covid-19 estourar no Brasil, no começo de fevereiro de 2020, Juliana de Oliveira, moradora da Rubens Vaz, contava por telefone que, ao lado de mais seis pessoas de diferentes locais da Maré, iniciou o projeto. em 2018. À época, o Eco Maré se preocupava com um problema que parecia muito mais próximo do que a pandemia do novo coronavírus: as mudanças climáticas, as consequências nocivas que elas têm no bem-estar do favelado e como conscientizar a população do que é necessário fazer para mitigar os problemas que elas causarão em um futuro próximo.

Até se envolverem com o projeto, nunca tinham se interessado pelo tema. Até hoje, Juliana diz que não se considera uma ambientalista. Para ela, uma estudante de enfermagem e favelada pensar em luta climática era "muito coisa de branco rico."

"Eu acho que a minha voz é muito menos impactante do que a do pessoal da Zona Sul que vem para cá falar dos problemas com saneamento, lixo? De coisas que eu vivo todos os dias todos. Mas eu sei que por condição social e por serem brancas, essas pessoas têm uma voz que ecoa muito mais do que a nossa. E isso causa a impressão de que esse rolê não é para a gente", diz.

Mas não se engane. Apesar da maioria das tomadas de decisões em relação ao clima virem de pessoas brancas, historicamente são populações negras e indígenas quem sempre estiveram na linha de frente em defesa do meio ambiente, muito por possuírem ligações mais profundas com o meio em que vivem.

Marcelo de Jesus/UOL Marcelo de Jesus/UOL

Mais do que uma questão ambiental

"É muito difícil falar sobre questões ambientais para uma pessoa que não tem saneamento, sabe? Como eu vou falar: 'ah, suas ações impactam o meio ambiente', se o pessoal não tem o básico?", questiona Juliana. Ela, Alexandre Viana, Juliana Damasceno, Michele Gomes, Juliana Machado, Lorena Froz e Diego Basílio tinham isso em mente quando criaram o Eco Maré em 2018.

O projeto é fruto de um curso que ajudava a potencializar as lideranças jovens nas favelas da Maré. Ao final do período, precisavam desenvolver, apenas no papel, um trabalho que visasse solucionar algum problema da região. Juntos pensaram na questão do lixo. Nem pensavam na ligação com questões ambientais. Só observaram um problema que é comum entre várias favelas brasileiras: o descarte irregular de lixo em locais públicos. Escolheram então uma única rua para revitalizar, retirando o lixo do local e construindo um canteiro verde. Ali surgiu o Eco Maré.

Mesmo com o final do curso, os sete jovens deram continuidade à ideia. Marco zero da iniciativa, a escolhida, então, foi a rua Ivanildo Alves. O lugar completamente negligenciado pelo Estado, também foi abandonado por quem mora ali. A proximidade com confrontos armados forçou os moradores para outro canto.

Acontece que a rua é a "fronteira" para duas facções: um lado é comandado pelo Comando Vermelho (CV), o outro fica sob o domínio do Terceiro Comando Puro (TCP). A única presença constante por ali era o lixo jogado no chão e os carros abandonados. Um problema que só crescia com o passar do tempo.

Falaram para a gente que antes até tinha um laranjão, aquelas caçambas de lixo, sabe? Mas depois de um tempo passou a ser usado nos confrontos. Uma ferramenta de coleta de lixo virou escudo no meio da guerra entre facções. Assim a gente entendeu que, dentro da favela, não dá para ignorar os problemas sociais se queremos falar de preservação do meio ambiente. Não é só um problema ambiental, é uma questão socioambiental.

Juliana de Oliveira, cofundadora do Eco Maré

Para dar início à recuperação da rua, eles envolveram a associação de moradores, os próprios moradores e contataram a COMLURB (Companhia Municipal de Limpeza Urbana). Apesar de considerar "complicado demais" conseguir conscientizar as pessoas sobre pautas ambientais, Juliana e o Eco Maré têm lá suas cartas na manga.

A principal dela tem sido relacionar as consequências da mudança climática com a saúde. Ela conta que, antes de colocar o projeto em prática na rua Ivanildo Alves, constantemente mostravam aos vizinhos como o lixo jogado na rua ia parar no valão que existe por lá e como os surtos de dengue na região estavam também relacionados ao descarte irregular de objetos que viravam foco da doença. Também escutavam muito o que os moradores tinham a dizer, em vez de chegar até eles com soluções prontas.

Assim, o Eco Maré atua revitalizando lugares que foram impactados negativamente pelo lixo, além de promover rodas de conversa sobre assuntos ambientais em favelas. E sempre compartilhando informações entre os moradores. "A gente é da região, né? O bom é que a gente mora no local. A gente tem o mesmo linguajar, a gente fala igual. Tem um pertencimento territorial. Por ser do território, nós conseguimos entender melhor quais são as prioridades dessas pessoas," diz Juliana.

Às vezes as pessoas vêm de fora e querem ajudar a fazer, mas a população não está interagindo. No nosso projeto é assim: a minha mãe vai, meu primo, meu vizinho, os colegas de escola. Todo mundo está ali fazendo, e sentindo que foi uma construção coletiva. Hoje em dia as senhorinhas ficaram lá sentadas na praça, ocupando o espaço, regando as plantas, brigando com as crianças que deixam o local sujo, sabe? Eu não quero mudar o mundo, eu quero que a minha favela entenda que é importante mudar o mundo preservando esses espaços que são nossos.

Juliana de Oliveira, cofundadora do Eco Maré

Marcelo de Jesus/UOL Marcelo de Jesus/UOL

O que eu tenho a ver com isso?

Agora, se você está aí, do outro lado da tela, lendo tudo isso e pensando: "Mas qual exatamente é o problema? O que o lixo tem a ver com isso? O clima sempre mudou na Terra. Por que falar disso agora?". De fato, mudança climática existe desde que tudo isso aqui era pasto — literalmente. Cientistas afirmam que o surgimento de plantas terrestres ou até mesmo a divisão dos continentes (a pangeia, muitos milhões de anos atrás) causou um aumento da temperatura média global. O clima está mudando e isso não é uma novidade. Mas sabe o que é? Nós. Nunca antes na história deste planeta Terra houve tanta gente fazendo tanta coisa ao mesmo tempo por aqui.

"Nunca, que se tenha registro, o clima do planeta se modificou em todas as regiões na mesma direção. Tivemos eventos ao longo da história, em que você tinha determinadas regiões passando por um fenômeno localizado, mas agora nós temos total clareza que o clima está mudando em todas as regiões ao mesmo tempo", explica o cientista e ambientalista Carlos Rittl.

As ondas intensas de calor no Nordeste e os períodos de chuvas fortes no Sudeste brasileiro nos últimos anos, por exemplo, são dois dos muitos sinais de que algo está fora do normal. E isso tem acontecido ao redor do globo: das queimadas no Ártico e uma temperatura recorde de 38ºC (isso mesmo!) à maior frequência e intensidade de furacões, que inundam cidades inteiras.

E, apesar de todo mundo estar no mesmo barco, quando se trata de sentir na pele as consequências dessas mudanças no clima, são os negros, os pobres, as mulheres e os indígenas, por exemplo, que serão impactos desproporcionalmente pelos inúmeros problemas previstos pelos cientistas.

Em 2019, o relator especial da ONU (Organização das Nações Unidas), Philip Alston levantou o debate sobre um possível futuro com um "apartheid climático", em que "os ricos pagam para escapar do superaquecimento, da fome e do conflito, enquanto o resto do mundo sofre", como disse o especialista na ocasião.

"E é por isso que falamos sobre justiça climática hoje. O próprio conceito e os estudos ao redor dele propõe não avançar na discussão climática sem considerar que diferentes pessoas são atingidas de diferentes formas pela mudança no clima", explica Andréia Coutinho, ambientalista e coordenadora de comunicação do ICS (Instituto Clima e Sociedade).

O termo "justiça climática" é uma variação mais recente de "justiça ambiental". Conhecido como o "pai da justiça ambiental", o sociólogo norte-americano Robert D. Bullard criou o conceito quando passou a investigar danos causados pela poluição em minorias sociais. Ele propunha que as decisões tomadas em relação ao meio ambiente deveriam possuir uma maior participação social, empoderamento das comunidades e colaboração entre setores públicos e privado.

"O problema é que em grandes reuniões sobre clima, a maioria é composta por homens brancos. Então, quem está decidido o meu futuro não é uma pessoa negra, não é um representante de uma comunidade quilombola. Isso é gravíssimo. Isso significa que o debate está sendo parcial, que as soluções tomadas podem não contemplar as minorias sociais porque não são essas pessoas que estão tomando decisões", completa.

Assim, em 2019, durante a Conferência do Clima (COP-25) realizada em Madri , então, Andréia organizou uma mesa para falar sobre justiça climática, promovendo o debate sobre como as mudanças climáticas têm atravessado questões de raça, gênero e de classe A ideia era falar sobre alguns pontos como: "estamos em uma conferência que vai ter resultado para quem? Essas medidas vão impactar quem? E quem está decidindo isso?", ela conta.

"Como mulher negra percebo que a gente está lutando contra o racismo, contra o genocídio da população negra, contra violência, lutando também por representatividade, por educação, lutando para sobreviver...Tem tantas batalhas que às vezes a gente pensa: 'mas eu vou me meter com mais uma luta? A gente luta tanto o tempo todo e eu vou me importar com mais uma coisa?' Só que o que não é falado para a gente é que a pauta do clima atravessa todas as outras lutas que as pessoas negras, periferias, indígenas e quilombolas estão travando", diz Andréia Coutinho, ambientalista e coordenadora de comunicação do ICS

Fernando Moraes/UOL

A quebrada sustentável

Amanda Costa nunca pensou em pautas ambientais como prioridade até ir para a COP 23, em 2017, na Alemanha, até surgir uma oportunidade de se inscrever para uma bolsa que escolheria um representante da ACM (Associação Cristã de Moços) no evento da ONU. Ela não pensou nem uma vez. "Toda pauta ambiental está ligada com todas as outras áreas da vida. Ela atravessa todas essas questões religiosas, sociais, raciais, né?", comenta sobre sua chegada ao ativismo pelo meio ambiente.

"Sempre achei que para falar dessas coisas eu tinha que ser rica, branca e usar terninho, sabe?", conta rindo. "Apesar de ser muito privilegiada só por eu ter um pai e morar em São Paulo, eu sou uma menina preta da periferia. Quando eu ia imaginar que estaria em uma conferência da ONU?"

Ela credita essa concepção de que falar sobre meio ambiente não é para todos a duas coisas: a falta de representatividade e todo esse discurso que, segundo ela, ainda é "muito gourmet". Para tentar reverter a ideia que está no imaginário brasileiro de que falar sobre questões ambientais é coisa de branco rico, ela criou um projeto que dialoga especialmente com a quebrada em que vive. Assim, em 2019, o Perifa Sustentável nasceu.

Aos poucos a paulistana vem tentando dialogar com vizinhos, em escolas do bairro, em palestras, encontros e até nas redes sociais do projeto sobre a importância de se pensar em clima.

Porque a gente precisa traduzir esse discurso. Não pode ficar só entre uma parcela privilegiada da sociedade, como acontece hoje. As reuniões que eu vou, só tem gente branca que pertence a uma camada da sociedade que pode ir a um restaurante vegano que custa três vezes mais do que o PF da padaria da minha esquina, entende?

Amanda da Cruz Costa, criadora do Perifa Sustentável

Logo começou a aplicar o discurso em casa. Quando virou vegetariana, foi explicar para os pais como a produção de carne afeta o meio ambiente. Segundo o Observatório do Clima, em 2018, 25% das emissões de GEE (Gases de Efeito Estufa) foram da agropecuária. Munida de dados, tentou convencer os pais. Amanda conta o que ouviu como resposta: "Quando eu tinha a sua idade, eu não podia comer carne porque não tinha dinheiro para comprar, agora você vem dizer que eu não posso comer carne porque afeta o meio ambiente? Se toca!"

"Aí eu vi que é muito complexo porque a gente tem toda uma sociedade capitalista que fala que consumismo é legal, o que cria um sentimento de que para eu evoluir, eu preciso consumir, eu preciso ter um estilo de vida luxuoso", diz. Assim, decidiu dar dois passos para atrás e tentar entender quais seriam os melhores caminhos para abordar o tema.

Ela conta que, quando vai a escolas ou dá palestras, gosta de escutar primeiro quais problemas as pessoas julgam mais necessários. Depois propõem um exercício simples: pede para que elas tentem imaginar um mundo ideal. E deixa a criatividade dos ouvintes fluir. "Depois, falo que há um tempinho uma galera fez isso também, pensou em um mundo ideal e criou uma agenda para pensar em um futuro mais sustentável, olhando para a econômica, o meio ambiente e as questões sociais."

"Uma coisa que eu sinto é que o conceito de coletividade é muito mais forte do que o individual nas favelas. Quando o assunto é mudança climática, a gente faz muito isso de pensar em ações individuais, né? 'Você precisa parar de fazer tal coisa, precisa parar de andar de carro, parar de comer carne?' O que é tudo válido, mas a favela é coletiva, as soluções aqui não são no individual. Chegar com essa ideia que vamos salvar o planeta sozinhos, vai fracassar na favela", diz Juliana de Oliveira, cofundadora do Eco Maré

Fernando Moraes/UOL Fernando Moraes/UOL

Pressão social é essencial

A tal agenda pensada por uma galera que ela cita é o documento criado por chefes de Estado membros da ONU (Organização das Nações Unidas) chamada de Agenda 2030. Em 2015, ao fim das negociações em Nova York, foi apresentado 17 Objetivos de Desenvolvimentos Sustentáveis (ODS), que devem ser atingidos em um período estabelecido, que começou em 2016 e acaba em 2030. Acabar com a pobreza e a fome, promover o desenvolvimento econômico sustentável, alcançar igualdade de gênero e assegurar água e saneamento para todos são alguns dos objetivos.

A ideia de criar um documento, porém, é anterior. Já em 2012, na Conferência Rio+20, realizada no Brasil, ficou estabelecido que os países deveriam construir juntos um compromisso de um futuro mais sustentável para todos.

Carlos Rittl explica que boa parte dos resultados apresentados como proposta na Agenda 2030 vem de cobranças da sociedade civil. "Sempre existe uma pressão social muito forte em torno dessas conferências, o que impõe pressão nos engravatados, em quem toma as decisões, que só tem o contato com o mundo real quando essa pressão é exercida."

Para ele, essas conferências, assim como as conferências do clima e eventos que ocorreram em solo brasileiro como a Rio+20 e a Eco-92, realizada em 1992 no Rio de Janeiro, reacendem a discussão sobre a importância de colocar a pauta ambiental no centro do debate no Brasil.

São nesses eventos que as decisões em grande escala são tomadas, onde países se comprometem — ou não — a pensar em soluções para tentar frear o avanço das mudanças climáticas. Na COP 21, por exemplo, que ocorreu em dezembro de 2015 em Paris, chefes de 195 Estados assinaram o Acordo de Paris, documento em que ficou estabelecido o compromisso de cada um para mitigar emissões de gases de efeito estufa (GEE), mantendo o aumento da temperatura da terra abaixo de 2°C em comparação aos níveis pré-industriais.

À época, os países tinham até outubro daquele ano para apresentar suas próprias NDCs (Pretendida Contribuição Nacionalmente Determinada, em tradução para o português). Nelas, cada um determina quais ações pretendem adotar até 2030 para contribuir com a redução de poluentes que podem agravar a situação do clima global. O Brasil se comprometeu a até lá acabar com desmatamento ilegal, reflorestar 12 milhões de hectares para uso diverso, entre outros.

"Movimentos como esse permitem que a pauta ambiental tenha mais adesão de pessoas discutindo, debatendo o tema e depois levando para o dia a dia. Mas a defesa pelo meio ambiente no Brasil, ela é muito antiga, principalmente entre indígenas e quilombolas," diz o cientista.

Eduardo Anizelli/Folhapress Eduardo Anizelli/Folhapress

Minha casa é a floresta

A quilombola Maria do Socorro Silva é uma dessas pessoas. Tem dedicado a vida toda a defender o meio em que vive, em Barcarena, no Pará. Ainda nova, viu o chamado "progresso", como ela diz ironicamente, chegar na comunidade quilombola de Burajuba, onde reside. Foi assim que a disputa pela terra começou. Primeiro, em 1970, avistaram um barco chegar com homens brancos, uns com cabelos grisalhos e outros vermelhos. Carregavam aparelhos que hoje ela diz saber que eram para topografia. Mapearam o local, asfaltaram, construíram uma empresa. "Ninguém pediu licença para gente. Depois de um tempo, em 1983, começaram mais obras aqui", rememora.

O espaço que dona Maria define como "amplo, com 5 km de distância entre uma casa e outra", agora não existe mais por completo. Parte das famílias saíram de lá por causa da chegada de empresas estrangeiras e da demarcação de terra realizada pelo governo do Estado do Pará. A dor maior, porém, sofreu com o afastamento de quem ela considerava amigo.

"Afastaram nossos amigos da fauna e da flora. A gente antes convivia com leão, com tatu, com vaca? A gente se adaptava a eles e eles a nós. As frutas também não dão mais como antigamente, nossas árvores estão fracas. Eu sempre dividi o espaço com o mato e os bichos, mas com chumbo e alumínio eu não consigo."

Vítima de racismo ambiental — ou seja, uma forma de racismo que atinge o território em que pessoas não brancas residem, seja por meio de políticas públicas ou obras de empresas — passou a denunciar junto com a Cainquiama (Associação dos Caboclos, Indígenas e Quilombolas da Amazônia) as empresas estrangeiras que se estabeleceram na região. A luta mais recente começou quando, em 2009, passaram a denunciar a Hydro Alunorte, empresa norueguesa de refinaria de alumínio, dizendo que a mineradora teria despejado ilegalmente dejetos nos rios de Bacarena. Em 2018, a cidade foi invadida por uma lama avermelhada que meses depois um laudo do Instituto Evandro Chagas (IEC) apontaria como sendo vazamento de barragem de rejeitos de bauxita da empresa norueguesa.

Maria do Socorro, então, ficou conhecida como a mulher mais ameaçada do Brasil. Dois líderes da Associação dos Caboclos, Indígenas e Quilombolas da Amazônia (Cainquiama) foram mortos em 2018 e 2017. A Hydro Alunorte negou tanto a responsabilidade pelo vazamento quanto pela morte dos dois homens. Em nota, afirmou que "condena firmemente qualquer ação dessa natureza e repudia qualquer tipo de associação entre suas atividades e ações contra moradores e comunidades de Barcarena."

Atual presidente a organização, Maria diz que o medo da morte ainda é uma constante. Mas é maior sua força para defender a comunidade quilombola onde nasceu e foi criada.

"Ter medo eu tenho. Não quero morrer. Mas acontece que eu tenho uma família doente, já vi muitos morrendo. E isso eu não vou perdoar. Esse chão é meu, é nosso, é dos quilombolas, dos indígenas. Essa floresta é minha identidade. Eu não quero trocar minha identidade. Eu sou quilombola e minha casa é na floresta. Só aqui."

Maria do Socorro Silva, líder quilombola

Quando se olha para a questão das populações indígenas e quilombolas, elas têm procurado manter o ambiente sadio justamente para que elas possam viver com qualidade, harmonia e com a garantia de que sua cultura se manterá viva. Como relembra o antropólogo Dagoberto José Fonseca.

Por isso, ele acredita ser um erro incalculável dizer que pautas ambientais sejam assunto de populações brancas. "Pelo contrário, foi o branco que só acordou agora para as questões do meio ambiente. Isso está colocado há séculos em comunidades tradicionais." E cita como exemplo o candomblé, religião de matriz africana criada por negros escravizados no Brasil, que tem na natureza a base para exercer suas crenças e rituais.

Como diz o dito popular iorubá: Kosi ewe kosi orixá. "Sem folha não há Orixá".

O candomblé utiliza muitas plantas, muitas ervas, por exemplo. Para indígenas, uma árvore ou um rio significam ancestralidade. Quando você mata um desses ecossistemsa, você está matando eles. Por isso os Krenak sofrem até hoje com a morte do Rio Doce. Você atinge o futuro da mesma forma que atinge o passado. Quando se é branco, as consequências dessas mudanças climáticas vêm mais no individual, no seu pequeno núcleo de amigos e familiares. Mas para pessoas não brancas, especialmente os quilombolas e os indígenas, o aquecimento global pode atingir e ameaçar uma cultura ancestral inteira.

Dagoberto José Fonseca, antropólogo

Mathilde Missioneiro/Folhapress

A cosmovisão indígena

"Esse pacote chamado de humanidade vai sendo deslocado de maneira absoluta desse organismo que é a Terra, vivendo numa abstração civilizatória que suprime a diversidade, nega a pluralidade das formas de vida, de existência e de hábitos", diz em "O Amanhã Não Está a Venda", o escritor e líder indígena Ailton Krenak. Pouco tempo depois de ter começado a quarentena no Brasil, conversamos por telefone.

Ao final da ligação, ele me narrava o trajeto da borboleta amarela que observava voar por entre os galhos de uma árvore. Dizia que queria fazer uma quarentena da fala, em que só o silêncio reflexivo existiria. Antes disso, porém, me contava sobre sua relação com o meio em que vive e a relação de muitos povos nativos com o mundo.

"A noção de meio ambiente ou de natureza que eu aprendi desde sempre é um pouco diferente do que as pessoas entendem como meio ambiente e natureza. Eu não me vejo separado de nada, de nenhum evento que acontece com esse planeta. Nós somos uma parte dele. Eu entendo que tudo que acontece com a terra acontece com o nosso corpo, com a nossa saúde", diz um dos principais nomes da luta ambiental no país.

Durante a conversa, Ailton desejava algo parecido com o que escreveu em seu último livro: que o momento da pandemia pudesse servir como um alarme geral para que todo mundo escute o que os povos tradicionais falam e denunciam há anos.

Ouvir e prestar atenção nessa cosmovisão indígena é o conselho que ele dá para quem está hoje dentro da luta contra as mudanças climáticas. Em números, para se ter uma ideia, a população indígena vive e cuida de 25% da terra em âmbito global, onde 80% da biodiversidade do planeta mora, segundo dados do Banco Mundial.

"Os indígenas desempenham um serviço gratuito para cada um de nós, simplesmente por usarem de forma sustentável as áreas que são deles, e que agora estão sob ataque, assim como seus direitos e suas vidas. O conhecimento científico empírico dos indígenas, que mostra importância inclusive da nossa própria capacidade de enfrentamento dos desafios das mudanças climáticas. Esse conhecimento é muito importante para a gente enfrentar a crise climática, por isso conhecimento indígena, o conhecimento tradicional precisa estar no mesmo patamar que o conhecimento científico", diz Carlos Rittl, cientista e ambientalista.

Muita gente acha que o debate sobre aquecimento global é coisa de gente branca rica porque não temos costume de ver pessoas não brancas ganhando espaço pra falar sobre. Mas nós existimos e os povos tradicionais sempre estiveram na linha de frente dessa luta climática. Todo mundo pode se apropriar desse discurso em defesa do meio ambiente. A gente precisa de todo mundo. É do nosso futuro e bem-estar que estamos falando.

Amanda da Cruz Costa, criadora do Perifa Sustentável

Mudanças climáticas: um assunto de todos

Apesar de não serem os maiores culpados pela maioria das emissões que poluem o meio ambiente — segundo um estudo publicado pela Oxfam, em 2015, 10% dos ricos no mundo são os responsáveis pela metade das emissões poluentes —, as populações vulneráveis possuem um papel fundamental nessa luta contra o aquecimento global.

O cientista Carlos Rittl relembra que os negros, os pobres, as mulheres, os indígenas e quilombolas são a maioria da população brasileira, e isso também significa poder de compra, por exemplo, e capacidade de pressionar especialmente as empresas das quais se consome os produtos, a pensarem soluções sustentáveis que contribuam com a redução dos danos no meio ambiente.

"Além disso, todos nós somos eleitores. A gente tem que se questionar: como os governos locais estão abordando essa questão das mudanças climáticas? O que os candidatos propõem em relação à preservação do meio ambiente?", opina Carlos Rittl.

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