Alicerce

Pandemia escancara crise de moradia no Brasil, mas produzir casa adequada para todos é possível -- e urgente

Wellington Ramalhoso Colaboração para Ecoa, em São Paulo Inês Bonduki/Folhapress

Se ainda restava alguma dúvida, a pandemia da Covid-19 deixa claro que uma casa com condições dignas é fundamental para a saúde e a defesa da vida.

A crise atual deveria, segundo lideranças comunitárias e pesquisadores, sensibilizar a sociedade e governos do país para que a produção de moradias adequadas e o saneamento básico nas cidades brasileiras se tornassem, finalmente, prioridades. Um conjunto de medidas e políticas, que incluísse a participação de quem vive o problema diariamente, poderia contornar a crise econômica.

O novo coronavírus tornou mais alarmante a falta de acesso ao saneamento e a casas com condições que permitam o isolamento social e a prevenção adequada. Estamos falando de precariedades de favelas e cortiços e da crescente população nas ruas. Em São Paulo, dados divulgados nesta semana pela Prefeitura sugerem que as mortes por Covid-19 crescem em áreas com habitações piores. Estudos mostram ainda que, entre a população negra — que representa 75% dos mais pobres no país — a doença tem sido mais letal.

Redes de solidariedade e medidas emergenciais minimizam os impactos do avanço da doença em áreas mais vulneráveis, mas como o país chegou a esta situação e o que pode ser feito para se refazer cidades mais dignas?

Estado confinado

Aglomerações como as favelas são resultados da ausência ou tibieza do Estado e da incapacidade ou impossibilidade de o mercado de produzir cidades com estrutura ao longo da história. "As favelas são respostas que os setores trabalhadores mais empobrecidos dão à falta de política do estado e do mercado para garantir direitos fundamentais à cidade, à habitação, à infraestrutura", afirma o geógrafo Jailson de Souza, fundador da organização Observatório de Favelas, que tem sede na favela da Maré, no Rio de Janeiro, e pesquisador da Universidade Federal Fluminense.

"A terra urbanizada bem localizada e dotada de infraestrutura tornou-se cada vez mais inacessível ao trabalhador", explica o arquiteto e urbanista Renato Pequeno, coordenador do Laboratório de Estudos da Habitação, da Universidade Federal do Ceará. Com esse valor da terra crescente, restou a uma boa parte da população a ocupação e a autoconstrução. "Na ausência de políticas públicas, a população toma a frente e busca resolver, à sua maneira, o problema habitacional", diz ele.

A questão é que, apesar de moradia ser um direito constitucional, os trabalhadores brasileiros nunca tiveram o custo para um teto incluído como parte dos salários, explica a arquiteta e urbanista Raquel Rolnik, professora da USP e ex-relatora especial do Conselho de Direitos Humanos da ONU (Organização das Nações Unidas) para o Direito à Moradia Adequada.

"Nem nunca tivemos políticas públicas que contemplassem isso. O resultado é a autoprodução da moradia pelas pessoas nas piores condições, sem recursos privados e sem investimento por parte dos governos em infraestrutura", diz ela.

Pedro Ladeira/Folhapress Pedro Ladeira/Folhapress

O advogado e mestrando em urbanismo na FAU-USP (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo) Edilson Mineiro, assessor jurídico da UMM (União dos Movimentos de Moradia), explica que o custo de moradia é hoje inviável a uma grande parte da população. "A habitação mais barata exige uma renda superior a quatro salários mínimos. O déficit habitacional está concentrado em quem ganha até três salários mínimos. Não existe programa de mercado que seja acessível à população de baixa renda", diz ele.

Depois de governos enfraquecerem ou paralisarem programas nos últimos anos, quem acompanha a situação de perto chama a atenção para a necessidade de o poder público sair de seu confinamento e retomar políticas de habitação. "O debate sobre habitação ficou muito prejudicado pela noção de que o estado tem que limitar sua forma de intervenção à saúde, à educação e à segurança. Isso esconde o fato de que outras políticas precisam da presença do poder público. No fundo, a gente tem que rediscutir o papel do estado", diz Mineiro.

Lalo de Almeida/Folhapress Lalo de Almeida/Folhapress

Investimento flutuante

Ao longo do século passado e do começo deste, o país investiu em programas de moradia, mas de forma inconstante. O investimento no mais recente programa habitacional de grande porte, o Minha Casa, Minha Vida, veio minguando desde a crise política e econômica iniciada em 2014 e que levou à queda da ex-presidente Dilma Rousseff.

"Apesar de todas as críticas que a gente tem ao programa, ele foi, durante anos, a única política habitacional em vigor no país. No lugar dele não temos nada. Isso, junto à crise econômica, agravou a situação da moradia de 2014 para cá. Aumentou a população de rua enormemente e veio também a superocupação nas áreas autoconstruídas. A pandemia coloca tudo isso a nu", analisa Raquel Rolnik.

Os dados dos últimos anos indicam que o problema do déficit habitacional cresceu 7% em apenas dez anos, de 2007 a 2017, tendo atingido 7,78 milhões de unidades habitacionais em 2017.

Nos confrontamos com uma situação em que, para uma boa parte da população, é impossível ficar em casa. Porque, para começo de conversa, tem que ter casa. Em segundo [lugar], tem que ter casa onde dá para ficar

Raquel Rolnik, professora da USP e ex-relatora especial do Conselho de Direitos Humanos da ONU

A moradia no Brasil em 2020

  • 8 milhões de famílias

    24 milhões de pessoas (12% da população) não têm casa adequada

  • 35 milhões de pessoas

    16% da população não têm abastecimento regular de água

  • 100 milhões de pessoas

    47% da população não têm coleta de esgoto

  • Fontes:

    FGV com Abrainc e Instituto Trata Brasil

Defesa da vida

Se os déficits são grandes, se a pandemia aprofunda uma crise econômica que se arrasta há praticamente seis anos e se não há sinais de que o poder público terá recursos em abundância para mudar o cenário, como voltar a produzir moradia e infraestrutura nas cidades?

Um ponto básico é que o investimento em construção e saneamento tem o potencial de induzir o aquecimento da economia. Outra premissa é que uma parte mais ampla da sociedade precisa afastar a indiferença ao problema e assumir que a precariedade da vida dos mais vulneráveis é problema de todos, algo que a disseminação do coronavírus poderia despertar.

"Ter uma situação sanitária boa em sua casa não livra você do problema enquanto perdurarem situações precárias a seu lado. Urbanizar favelas e dar condições sanitárias adequadas é o caminho mais curto para melhorar a saúde coletiva", argumenta o professor Pablo Benetti, coordenador do Laboratório de Habitação e Forma Urbana da FAU-UFRJ (Faculdade de Arquitetura Urbana da Universidade Federal do Rio de Janeiro).

Em São Paulo, Edilson Mineiro viu a pandemia abrir os olhos de representantes da elite econômica para a gravidade do problema. "A UMM participa de uma rede de ajuda nos bairros periféricos. Os doadores estão percebendo que eles têm um papel importante a jogar. A gente precisaria sair dessa crise com um sistema de política urbana estruturado. Isso pode acontecer se essas pessoas que têm poder de interferir nas decisões mantiverem essa articulação", conta o assessor jurídico do movimento.

"A questão dos recursos não é a quantidade. É a prioridade de uso. No pós-pandemia, esta é a questão que estará colocada: vamos usar os recursos públicos, escassos ou abundantes, para compensar as grandes corporações ou eles serão dirigidos para aquilo que é prioritário, que é assegurar condições de proteção e defesa da vida para quem mais precisa?", projeta Raquel Rolnik.

Lalo de Almeida/Folhapress Lalo de Almeida/Folhapress

O que não fazer

Ao considerar as opções a adotar, também é preciso saber o que evitar. Especialistas consideram que as soluções não podem ser impostas de fora para dentro. Projetos caros vinculados a interesses de políticos e empresários, descolados da realidade e sujeitos a esquemas de corrupção, devem ser rejeitados.

Isto também quer dizer que deve ser evitado o "bota abaixo", ou seja, as remoções arbitrárias de moradores de comunidades. Significa ainda diminuir a dependência de programas de construção de conjuntos habitacionais de grande porte, tocados por empreiteiras, como os que foram erguidos em vários momentos e lugares, principalmente nas periferias, desde a ditadura militar.

Julio Cesar Guimarães/UOL Julio Cesar Guimarães/UOL

"Baixar de Marte com um projeto desenhado a partir do nada, sem contato estreito com o território, como muitas vezes foi feito, é um erro absurdo", diz Raquel Rolnik.

Um exemplo negativo citado por ambos é o conjunto de intervenções do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) em favelas do Rio de Janeiro no período da Copa do Mundo de 2014 e das Olimpíadas de 2016.

Um caso emblemático da época, também lembrado por Jailson de Souza, foi o teleférico instalado no Complexo do Alemão.

"O PAC do Alemão custou R$ 1 bilhão e foi um verdadeiro fracasso. A população do Alemão, cuja maioria não tem acesso a saneamento, não foi ouvida. O governo estadual, em parceria com o municipal e federal, preferiu fazer um teleférico de R$ 300 milhões que não atendia as necessidades maiores dos moradores. Ele foi abandonado logo a seguir porque não era sustentável. É um absurdo esse desperdício de recursos públicos", comenta o fundador do Observatório de Favelas.

Temos que acabar com as intervenções decididas longe das favelas por grupos econômicos e políticos que visam apenas o interesse próprio e a própria sobrevivência. Favelas podem ser modificadas, melhoradas, transformadas desde que quem mora nestes locais tenha protagonismo na decisão

Pablo Benetti, Coordenador do Laboratório de Habitação e Forma Urbana da FAU-UFRJ (Faculdade de Arquitetura Urbana da Universidade Federal do Rio de Janeiro)

Participação popular

Quem está de fora pode apresentar ideias, mas sem barrar a participação de quem vive o problema. Ou seja, quem não tem moradia adequada deve ser ouvido e ajudar a elaborar alternativas.

"Estamos entendendo durante a pandemia que as comunidades mais organizadas são os lugares onde mais se consegue montar redes de solidariedade e proteção. Isto dá uma lição muito grande. Só com a população organizada e pensando as próprias demandas é que políticas e projetos bem desenhados ocorrerão", avalia Rolnik.

Nesse sentido, Edilson Mineiro e os movimentos sociais apontam os mutirões por autogestão, feitos pelas próprias comunidades, como opção que se fortalece em tempos de recursos escassos. "O papel do estado que a gente defende não é do estado provedor absoluto, que no Brasil favoreceu interesses privados e grandes corporações. O movimento de moradia defende há mais de 40 anos a ideia de que as pessoas podem construir as próprias casas, desde que o poder público dê condições mínimas, como terrenos e a assessoria técnica de arquitetos e engenheiros."

Em sua pesquisa de mestrado, Mineiro apurou que, ao longo dos últimos 40 anos, mais de cem mil casas ou apartamentos foram feitos em mutirão e autogestão no Brasil. "É uma experiência relevante. Em termos de programas alternativos, o mutirão em autogestão é o mais consistente. Ele surgiu justamente numa época de crise fiscal no país, nos anos 1980. Pela impossibilidade da construção de grandes conjuntos, passou-se a construir pequenos conjuntos em que a mão de obra das pessoas ajudava a baratear o custo", explica.

Neste modelo, o produto também tende a ganhar na qualidade final. "Normalmente são projetos de melhor qualidade, e o custo é menor. Com os mesmos recursos destinados a uma construtora para se construir um apartamento de 35 metros quadrados, é possível construir outro de 60 metros quadrados", diz Mineiro.

Rubens Chaves/Folhapress Rubens Chaves/Folhapress

Outras alternativas

Nem só de novas construções uma política habitacional deve viver. Destinar imóveis vazios, principalmente os situados em regiões centrais e com infraestrutura, a quem não tem e promover o aluguel social são outras medidas que podem ser adotadas.

Em São Paulo e outras cidades, as prefeituras vêm mapeando imóveis ociosos, mas ainda faltam programas mais efetivos para fazer valer a função social da propriedade, prevista em lei. O aluguel social, mais usado em emergências para abrigar famílias desalojadas, poderia ser disseminado em escala maior e servir de alternativa ao velho sonho da casa própria.

Para o professor Renato Pequeno, da Federal do Ceará, é essencial o poder público se fazer presente nas comunidades mesmo depois de intervenções urbanísticas, desenvolvendo programas, por exemplo, de geração de emprego e renda e impedindo que os moradores fiquem à mercê do crime e de milícias. "O enfrentamento da questão habitacional deve ser pensado em um amplo processo de planejamento que considere questões como a pobreza, a informalidade, a fome, a violência, a educação e a saúde."

Na avaliação de Jailson de Souza, não se pode ter otimismo com eventuais medidas do governo Jair Bolsonaro, e haveria necessidade de uma ação maior de estados e prefeituras. "Certamente esse governo é ainda mais refratário aos interesses da população do que foi o governo militar. Vai ser necessário fazer investimento em habitação, em saneamento, e isso pode beneficiar a favela, mas não por um projeto estratégico do governo de garantir direitos de moradores dos espaços mais populares da cidade. Confio mais na perspectiva dos governos estaduais e municipais", diz ele.

João Wainer/Folhapress João Wainer/Folhapress
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