Afrotranscendente

Mãe Beth de Oxum é mãe de santo que atua ao mesmo tempo como radialista, gamer, batuqueira e política

Rodrigo Bertolotto De Ecoa, em São Paulo Clara Gouvêa/UOL

Fé, festa, manifestação, militância, reflexão e ação. Em seu terreiro, Mãe Beth de Oxum reúne religião, medicina popular, cultura local, uma rádio e cursos de programação e de games. A ialorixá de Olinda (PE) é um pouco de tudo.

"No candomblé, os três elementos que dão sentido à vida são a terra, a água e o ar. O ar é a comunicação. E nós precisamos nos comunicar seja pelo rádio, pelo computador, por onde der para soprar nossas palavras, afinal, tem por aí um fundamentalismo cristão intolerante nos criminalizando o tempo todo e temos que fazer esse enfrentamento", sentencia a mãe de santo de 57 anos.

Para além da resistência negra, os cultos afrobrasileiros estão tendo de lidar com sua reconstrução, depois de tanta oposição feita pelas autoridades e pelas denominações neopentecostais, que agora reúnem forças no atual governo federal. "Há um projeto político que está dominando o país e é contrário a essa brasilidade de pretos e índios. Nós vamos ter muito trabalho, começando agora e por mais de 100 anos de luta."

Beth começou como percussionista, sendo uma das mulheres pioneiras em grupos de frevo, ciranda, afoxé e outros ritmos e se apresentando pelo mundo afora. Depois tomou a tradição do coco, ritmo tradicional do Nordeste, e estabeleceu um dos pontos de cultura mais efervescentes da cidade pernambucana, o Coco da Umbigada, no bairro de Guadalupe.

O próximo passo foi virar líder espiritual. Há mais de uma década é ialorixá, e seus filhos naturais já estão na linha de sucessão do território. Atualmente, ela é uma das vozes mais aguerridas e antenadas dos valores que ela chama de "afroindígenas", sabedoria que surgiu do encontro da ancestralidade negra no continente americano.

Para este ano, a ialorixá se aventurou na política eleitoral para que a população de terreiro tenha uma representante na Câmara local. "A hora é essa para as mulheres negras ocuparem seus espaços, tá ligado? Essa elite branca não colocou sempre as mulheres negras para limpar a sujeira dela? É o que vamos fazer agora na política."

Clara Gouvêa/UOL Clara Gouvêa/UOL

Ecoa - Explica sua trajetória: como uma musicista vira líder espiritual? Sua família já frequentava terreiros?

Mãe Beth de Oxum - Aqui em Guadalupe tem terreiro pra tudo o que é lado. É uma periferia preta. E eu estou nessa fita desde criança. Minha mãe não ia, mas uma irmã me levava. O terreiro me ajudou a entender o mundo.

Quando era pequena, o problema era a polícia, porque o Estado perseguia o candomblé, assim como perseguia os capoeiristas e as rodas de samba. Tudo era motivo para prender por vadiagem. Eu cheguei a ir para delegacia por "perturbação ao sossego" porque falaram que nossos tambores incomodavam a vizinhança. O Estado brasileiro tem uma dívida histórica que não foi paga, por esse silenciamento institucional e constante de nossas crenças.

Mas as pessoas respeitavam mais. Quem era de outras religiões comia com respeito nosso acarajé ritual e nossos confeitos de Cosme e Damião. Agora tem essa história de balinha de Jesus, que é uma apropriação cultural. Hoje, está pior: a intolerância vem da população, mas é resultado desse proselitismo fundamentalista.

O bagulho está louco. Jesus virou moeda de troca, e o vizinho ficou intolerante, faz o sinal da arminha, fala em faca na caveira, esquecendo que Jesus é amor e luz. Se Jesus voltasse para a Terra, ele estaria com os oprimidos nos presídios, nas favelas, nos terreiros. Não estaria com esse papo de prosperidade, que é um caô para estimular o consumo.

Como você mescla a fé religiosa com a atuação política?

Aqui, a gente não separa festa de militância, não separa os ritmos das ideias. Teve um tempo, lá atrás, os mais velhos contam que a humanidade era extremamente triste, sem brilho nos olhos, e os tambores foram trazidos pelas divindades para o mundo. A celebração tem valores civilizatórios. Sem festa, a gente não se sustenta. Uma sociedade sem festa, só voltada para o trabalho, é uma estrutura doente, e o trabalho vira um grande fardo. Nossos ritmos surgiram do trabalho alegre, quebrando coco nasceu esse nosso batuque. Sem alegria você fica anestesiada, não reage a nada, fica sem emoção e vai engolindo tudo o que dizem por aí.

A gente tem que olhar o terreiro como um espaço sagrado, colaborativo, comunitário, que agrega a diversidade. Junto com as aldeias indígenas, os terreiros são os espaços mais revolucionários do Brasil, com espiritualidade, ancestralidade e comunidade se juntando em algo novo. Esse ato de receber o diverso, o diferente e acolher é o que mais precisamos nesse país. Os terreiros são uma tecnologia de inclusão, todos somos irmãs, mães, pais...

E, olha, eu faço política da hora que eu acordo até a que eu durmo. Mas agora estou atrás da representação do nosso território lá dentro da política, porque de lá somos muito atacados. O bonde está na pista. A hora é essa para as mulheres negras ocuparem seus espaços, tá ligado? Essa elite branca não colocou sempre as mulheres negras para limpar a sujeira dela? É o que vamos fazer agora na política. Vamos ocupar geral.

Está na hora do pau comer. Temos que fazer esse embate grandioso. Temos que quebrar esse paradigma de que o conhecimento é propriedade de uma classe social. Temos que rodar essa chave e controlar as tecnologias.

Mãe Beth de Oxum

Clara Gouvêa/UOL

O que as religiões de matriz africana podem colaborar para uma sabedoria popular brasileira?

Nossa compreensão da natureza é uma grande contribuição, ainda mais em uma época em que ela está sendo tão devastada. A água é nosso ancestral mais velho. É a água doce que germina o grão, ela que compõe o sêmen, o útero, tudo o que dá vida. Para nós, até o charco de barro é sagrado.

Outra coisa: sem folha não tem orixá. Não tem vida. Cada planta tem um significado, uma aplicação específica. A folha é o básico das nossas crenças. Com a folha, a gente se banha, se limpa, se alimenta, se cura, se religa. A energia das folhas ajuda nas nossas rezas e até na hora de dormir, colocando algumas embaixo da esteira.

Sem a mata, a gente não existe enquanto povo. Deus se materializa na natureza. É nosso equilíbrio. É a nossa riqueza. Não é um uso, é uma relação. O vento é nossa mãe. Essa ideia não cabe na caixinha fundamentalista. O oceano é a força de Iemanjá, mas os evangélicos não conseguem entender. Outro dia uma vereadora evangélica de Recife chamada Michele Collins fez um evento para "quebrar a maldição de Iemanjá" na praia de Boa Viagem. Metemos um processo nela e não deu em nada. Dá para entender o rolê desse povo? Se aparece uma mancha de petróleo na areia, não falam nada. Se fazemos homenagem para Iemanjá na praia, eles vêm nos criminalizar.

Sua atuação é diferente também porque é uma mãe de santo que administra uma rádio comunitária e tem um terreiro que dá cursos de programação e games. Como somou tudo isso?

Exu é comunicação, é o mensageiro. Ele é o átomo do movimento. Já Ogum é tecnologia, o cara do fogo, das ferramentas. Eles nos inspiram nesse caminho, para que nossa voz seja ouvida e nossa cultura seja conhecida. Por isso, a gente está ensinando programação para a negrada desde 2004, porque antes era coisa só de gente de dinheiro. Hoje, dois filhos de santo meus são desenvolvedores de games, doutores em ciência da computação e estão criando jogos com a temática nossa, ressignificando nossos orixás.

Eu sou educadora e sei da importância de aprender e repassar tudo. Aqui a gente faz uma oficina de cabeamento e logo está ensinando, fazendo tutorial. Estamos abertos para a sociedade, ao contrário das escolas do bairro, que receberam computadores e tablets e deixaram tudo nas caixas, em um depósito junto com água sanitária. A gente propôs fazer algo em conjunto, mas foi recusado.

Precisamos hackear esse processo todo, criar nossas rádios, nossas TVs, nossos games. Temos que virar esse jogo, porque seis famílias dominam a comunicação no país e sublocam as concessões para esses pastores, fora as estações que os evangélicos vão ganhando do governo por influência política, se aliando com o que há de mais tosco e atrasado no país.

Fizemos uma oficina sobre rádio comunitária, recebemos o equipamento e percebemos o poder que ela tinha. Somos a única estação que toca os ritmos típicos de Pernambuco. Tem algo de doentio em uma rádio que não toca a música de sua cidade, de seu povo. Aqui nós temos a obrigação de mostrar essa tradição de 300 anos do maracatu, de 200 anos do coco, de mais de 100 anos do frevo. A gente até fala no ar: "Rádio Amnésia, a rádio que esqueceu do seu dinheiro". É brincadeira, mas é verdade. Aqui não tem jabá.

Clara Gouvêa/UOL Clara Gouvêa/UOL

Você se vê como exemplo da luta das mulheres, em especial das mulheres negras, por mais espaço?

Nossa própria rádio é prova disso. Tem muito mais mulheres que homens trabalhando. Precisamos mostrar que a mulher nordestina tem que ter sua voz e tem que ser protagonista, afinal, cada vez mais somos arrimos de família e profissionais. Nos cursos de programação, software livre, webdesign e games também temos maioria de mulheres.

Eu sempre meti as caras. A percussão não era lugar de mulher, mas eu fui abrindo portas. Hoje, muita menina está nos batuques, liderando. Só de pensar que as mulheres da geração anterior à minha eram proibidas de estudar. Isso aconteceu com minhas tias e minha mãe, que depois de aposentada foi fazer faculdade de direito porque enfiou na cabeça que queria ser juíza para ajudar nossa população. O curioso é que hoje as universidades estão dentro dos terreiros, nos ajudando nos cursos ou pesquisando aqui nossas plantas, nossos rituais.

O terreiro era o escape para as mulheres para atingir outros saberes. O terreiro é uma escola. Mas só se aprende com a vivência. Não tem como entender as religiões de matriz africana abrindo um livro. Tem que estar de corpo presente. Desde a África, o matriarcado no terreiro é importante. Aqui, o feminino é protegido e reverenciado.

Como vê a representação dos negros na política? Acha que cota de candidatos e de verba eleitoral vai ajudar em uma maior presença?

Acho que tem de ter mais pretos, mas que defendam nossas raízes. Porque há um projeto político que está dominando o país e é contrário a essa brasilidade de pretos e índios. Nós vamos ter muito trabalho, começando agora e por mais de 100 anos de luta.

Os territórios negros são mostrados na TV como lugares de violência e não como lugares de cultura, porque não é interessante para a elite brasileira transmitir a força que essa população tem. O perigo aqui é outro, porque somos uma potência. Nós somos a prova de que outra sociedade é possível, outro povo é possível. Estamos fazendo nossa parte.

O planeta está doente com esse patriarcado no poder. A mãe terra está convulsionada com o que o [Donald] Trump, o [Boris] Johnson e o [Jair] Bolsonaro estão fazendo. Por isso, é importante mudar o gênero e a raça da política. Para sair desse caos vai ser um puta desafio. E como disse Martin Luther King, o que me preocupa não é o barulho dos maus, mas o silêncio dos bons.

Mãe Beth de Oxum

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    As histórias e pessoas apresentadas todos os dias a você por Ecoa surgem em um processo que não se limita à pratica jornalística tradicional. Além de encontros com especialistas de áreas fundamentais para a compreensão do nosso tempo, repórteres e editores têm uma troca diária de inspiração com um grupo de profissionais muito especial, todos com atuação de impacto no campo social, e que formam a nossa Curadoria. Esta reportagem, por exemplo, nasceu de uma conexão proposta por Flavio Bassi, curador de Ecoa.

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Ecoa propõe durante o mês de outubro um ciclo temático de reportagens e entrevistas sobre Re_construção. A proposta é falar sobre pessoas e ideias que oferecem diferentes maneiras de ver e lidar com nosso mundo e sociedade durante e após a pandemia.

Ao longo de três semanas nos aprofundaremos em debates que vão da necessidade de se falar (e agir) sobre as populações mais vulnerabilizadas, a luta antirracista, os saberes ancestrais e seus ensinamentos e, é claro, o mundo dos negócios e o futuro do trabalho.

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