Ritualizar a vida

Luiz Antonio Simas prepara livro sobre Maracanã e crê na festa como meio de reencantar mundo pós-Covid-19

Ramiro Zwetsch Colaboração para Ecoa, em São Paulo André Rodrigues/UOL

As arquibancadas estão vazias e os gramados recebem - além do jogo pragmático e modorrento do atual futebol brasileiro - carros para uma pequena parcela da população assistir a shows devidamente protegida do coronavírus. O carnaval de 2021, diz o bom senso, não deve acontecer e os rituais espirituais também estão suspensos. Tampouco a convivência nas esquinas e o trago nas biroscas são possíveis em tempos de quarentena. O universo de Luiz Antônio Simas está em desencanto. O historiador, professor e escritor carioca de 52 anos tem 19 livros lançados e o mais recente ("O Corpo Encantado das Ruas", Civilização Brasileira), lançado em setembro de 2019, já está em sua sexta edição. "Dicionário da História Social do Samba", escrito em parceria com o compositor e pesquisador Nei Lopes e publicado em 2016, ganhou o prêmio Jabuti de livro do ano na categoria não-ficção.

"O Corpo Encantado das Ruas" reúne uma coleção de ensaios que exaltam a rua como o espaço de encontro - que, constata o autor, vem perdendo, ao longo dos anos, uma disputa para a lógica que entende as vias das grandes cidades como mero lugar de passagem. Assim, Simas recorre à história e às mitologias afro-brasileiras para exaltar a poesia das pipas que insistem em sobrevoar os céus das metrópoles, o drible de Garrincha, a catarse do Carnaval e as tradições do candomblé e da umbanda. Ao mesmo tempo, não esconde a melancolia e o desgosto ao observar o desaparecimento dos pequenos comércios, a substituição do antigo estádio Maracanã - tema de livro inédito que ele está terminando nesta quarentena - pela atual arena elitizada (e embranquecida), o avanço da perseguição aos templos de religiões afro-brasileiras e o descaso do Estado que, para citar só um exemplo, não evitou que o Museu Nacional ruísse em cinzas no incêndio de 2018.

Enquanto a pandemia avança no Brasil sem sinais consistentes de que as mortes irão finalmente cessar, ultrapassando a marca de 100 mil vítimas neste mês de agosto, Simas admite resignado que o momento requer uma abstinência de tudo que ele compreende como essência da brasilidade que o poder público historicamente perseguiu: rodas de samba, rituais em terreiros, a rua entendida na dimensão da vivência. Ao mesmo tempo que se declara pessimista quanto a uma reviravolta na compreensão da importância simbólica do espaço urbano por parte das classes média e alta, ele crê que o primeiro Carnaval pós-pandemia tem tudo para ser tão redentor quanto o de 1919 (pós-gripe espanhola).

"É um momento de esvaziamento grave, mas eu acredito que essas coisas serão recuperadas. As pandemias passam. A reconstrução dos afetos pela festa vai ocorrer", diz. "Eu não estou esperançoso em relação a 2021, mas quem sabe em 2022 a gente já possa fazer um fuzuê?"

De sua casa na Tijuca, Zona Norte do Rio, o escritor conversou com Ecoa por telefone.

Ecoa - O seu livro é uma ode às ruas. Como fica essa perspectiva depois de quase cinco meses de convivência com a pandemia?

Luiz Antonio Simas - Quando fiz o livro, eu já detectava um processo de agonia da sociabilidade que a rua constrói. Então não acho que o drama da rua tenha exatamente começado com a pandemia. Me parece que há uma disputa entre a rua vista como um ponto de encontro e a rua vista como um ponto de passagem, de circulação de mercadoria... De certa forma, a pandemia escancarou uma circunstância em que a rua como lugar de encontro vinha sendo derrotada pela rua como lugar de passagem. Eu moro em uma cidade em que a cultura de rua é muito forte, é constituinte do modo de ser do Rio de Janeiro. Eu vejo um processo em que o açougue de rua morreu, em que a quitanda é cada vez mais rara, a barbearia de rua perde espaço pra barbearia gourmetizada... Um exemplo contundente: você não tem mais loja de macumba, que era uma coisa que tinha muito aqui na região onde eu moro. A gente vai ter que, de certa maneira, reaprender a praticar a rua.

Nesse conflito entre a rua como lugar de encontro e a rua como lugar de passagem, teremos de nos contentar, pelo menos temporariamente, com ela como esse mero lugar de trânsito?

Ao mesmo tempo em que a rua é desencantada, as pessoas criam constantemente formas de praticar a cidade - muitas vezes no perrengue. É o que o Milton Santos chamava de sabedoria da escassez. Na escassez, você tem que construir alternativas. Eu acho que da classe média pra cima, as pessoas já estão se desvinculando muito da cultura de rua. São pessoas que já encaram, e a tendência é que encarem cada vez mais, a rua como um ponto de passagem. São pessoas cada vez mais blindadas pelos seus condomínios, pelas portarias, pelos porteiros eletrônicos, por grades...

A gente teve recentemente o impacto muito negativo das imagens das pessoas aglomeradas no Leblon, logo após a reabertura dos bares (em julho). Você acha que o episódio é simbólico dessa convivência artificial com a rua?

Acho. É uma convivência com a rua que não é uma prática cotidiana. Praticar a rua não é exatamente aquilo. Tem uma turma que frequenta a rua em uma dimensão que não é a da vivência, é a dimensão do simulacro. E não foi só no Leblon, que tem uma centralidade midiática, aquilo aconteceu em tudo quanto é lugar. Eu me preocupo muito nas coisas que eu escrevo e no olhar que eu me coloco em perceber ao longo da história do Rio de Janeiro, que acaba sendo a história de quase todas as grandes cidades, as tecnologias práticas da rua que são cotidianas, que são entranhadas mesmo no dia a dia da pessoa. Eu estou falando do coroa que joga um dominó na praça, daquele camarada que tem um açougue de rua e daquele sujeito que bate ponto no botequim às cinco da tarde pra tomar a cachaça dele. Essa práxis cotidiana da rua é uma vivência, não é um simulacro. A gente está tendo muito simulacro e pouca vivência.

Por falar em botequins, muitos dos mais tradicionais do Rio de Janeiro estão fechando devido à pandemia. Qual é o impacto do desaparecimento desses pequenos comércios?

Aqui no Rio de Janeiro existem bares tradicionais que já vinham claudicando. A rua da Carioca, por exemplo, passou por um processo de impacto muito pesado quando um banco comprou alguns sobrados da região. Restaurantes tradicionais como o Nova Capela já vinham agonizando há muito tempo. Biroscas passaram por um processo de gourmetização. O que a pandemia faz é aprofundar isso com uma violência simbólica gigantesca. O Almara, que era um bar frequentado por exemplo por moradores de rua da Praça da Bandeira, também fechou - o dono, inclusive, morreu com a Covid-19. Falta à cidade do Rio de Janeiro uma percepção pública de se pensar salvaguarda à cultura de rua. Nós temos aqui uma conjunção sinistra: uma prefeitura de viés pentecostal que demoniza a rua e um governo do estado que também não ajuda nem um pouco nesse sentido. Não existe a percepção da cultura de rua como um ativo simbólico pro Rio de Janeiro da maior relevância e também dentro de uma certa economia criativa da cidade. A política municipal é comprometida com a destruição dos bens simbólicos da cidade: a rua, o Carnaval, a roda de samba, a macumba...

Há uma certa sensação, por grande parte da população, de que a rua é um espaço hostil - e que não é um espaço para se ficar. A pandemia aprofundou um processo que já vinha se desenhando. Por outro lado, eu vejo gente que não tem outra maneira de viver que não seja na rua. A rua é constituinte da própria maneira de morar da pessoa. Não dá pra virar pro camarada que vende um salsichão na praça e dizer pra ele que ele tem condições de ficar enclausurado, porque ele não tem. É uma questão de necessidade, de sobrevivência

Luiz Antonio Simas

André Rodrigues/UOL André Rodrigues/UOL
André Rodrigues/UOL

E você acredita que o poder público acaba usando a tragédia da pandemia a favor desse projeto de demonização da rua?

Acredito que o poder público vê uma oportunidade de investir nisso. O simples fato de não manifestar minimamente nenhum tipo de preocupação com essa cultura de rua já é a crônica de uma morte anunciada. Se depender do prefeito, não tem Carnaval, não tem roda de samba na encruzilhada, não tem a sociabilidade que envolva a cerveja gelada e o churrasquinho. A perspectiva desses caras é cruel, de quem detesta o caldo de cultura que engendrou o Rio de Janeiro.

Aí vem a discussão sobre o Carnaval do ano que vem. O que o bom senso diz?

O bom senso diz que as escolas de samba têm de entender que elas desfilam porque existem, elas não podem existir simplesmente porque desfilam. Elas se estabeleceram como instituições construtoras de um cotidiano de sociabilidade das populações afro-cariocas. Mas elas foram tragadas, de certa maneira, pela cultura do espetáculo, do turismo e do evento. As escolas de samba estão colocadas na encruzilhada da reinvenção. Ter um Carnaval como a gente costuma ter, me parece que é impossível. Repensar algumas coisas de maneira criativa, pra que as escolas de samba inseridas em suas comunidades se fortaleçam nesse contexto, ou pelo menos elas mostrem que estão vivas, é muito relevante.

Em um dos capítulos do seu livro, você escreve sobre ocasiões em que o poder público tenta cancelar ou alterar o mês do carnaval. Você acha que o estado pode usar dessa situação, pra tentar matar de vez o Carnaval do Rio?

Não, matar de vez não, até porque quem faz o Carnaval não é o Estado. As duas vezes que tentaram alterar o Carnaval, não conseguiram. Eu acho que a dinâmica é a cidade que vai implementar. O Estado pode tentar violar e esvaziar - e eu acho muito provável -, mas a dinâmica é diferente.

Ao mesmo tempo, há quem sustente que nem o Carnaval de 2020 devia ter acontecido...

Isso aí é besteira, bobagem. Como você ia prever lá atrás que a coisa ia explodir dessa maneira? Você tem uma referência excepcional como o [médico] Dráuzio Varella que não apostou que a coisa ia dar esse contorno. É inexequível. É um exercício absurdo de você, dentro do que está acontecendo no presente, começar a emitir julgamentos sobre o que deveria ter sido feito antes. É um discurso domesticador, que demoniza.

As escolas de samba estão inseridas em um imaginário, em uma dimensão simbólica da cidade que é muito importante e tem que ser redimensionada. Como fazer isso? Eu não tenho a fórmula. Isso aí vai surgir nas próprias comunidades, é uma solução que a cultura do Carnaval vai ter que encontrar

Luiz Antonio Simas

André Rodrigues/UOL André Rodrigues/UOL

E o futebol? Faz sentido a volta do futebol nesse contexto?

Não deveria voltar, mas voltou. A gente já vinha tendo um processo de ataque ao futebol mais popular e orgânico, que também não é de hoje. A pandemia aprofundou situações que já vêm se desenhando. Eu acho uma irresponsabilidade voltar agora, não tem nenhum sentido. Mas é negócio. É a lógica do negócio, não tem jeito. Nesse momento, com toda sinceridade, eu estou completamente desvinculado do ponto de vista afetivo com o futebol. Eu amo e estudo o futebol, mas deixa isso passar pra ver como vai ficar porque agora eu acho de uma insensatez colossal o que está acontecendo com o futebol no Brasil.

Sobre essa insensatez, você intitula o capítulo dedicado ao Maracanã como "Um Assassinato", em referência à arena que se ergueu no lugar do antigo estádio. Estendendo essa analogia, dá pra chamar esse retorno do futebol em meio à pandemia de "genocídio"?

Eu acho. O futebol é um sintoma do país e a destruição do Maracanã é um sintoma do futebol. Esse futebol gerencial, empresarial, do estádio visto como shopping center, essa "macdonaldização" do futebol, que está presente no assassinato do Maracanã, é muito coerente com essa volta do futebol agora dessa maneira absurda. É um assassinato que vem em uma perspectiva de elitização da vida, da cidade.

Você está escrevendo um livro sobre o Maracanã, né?

Ele está praticamente concluído. Estamos esperando passar a pandemia pra entrar na fase de produção e lançamento. Penso no Maracanã inserido em um contexto mais amplo, sua construção inserida naquele momento da história do Brasil: o final da Era Vargas, a redemocratização do governo Dutra, a realização da Copa de 1950. Era um contexto que cruzava muito, no Rio de Janeiro, com a consolidação das escolas de samba e o crescimento da umbanda no campo da religiosidade. É uma história do Brasil a partir do Maracanã.

Já passamos dos 100 mil mortos pelo coronavírus e, no meio artístico, uma das mortes mais sentidas foi a do Aldir Blanc. Como você vê a simbologia da partida dele nesse contexto, sem plano de saúde e totalmente desamparado pelo Estado?

Na minha opinião, era o maior letrista da história da música brasileira. A lírica urbana carioca, essa lírica da rua, isso tudo que a gente está discutindo aqui, é uma lírica que tem no Aldir o maior representante. E a morte dele naquele contexto é um descalabro. A gente tem um governo cujo único projeto pra cultura parece ser a destruição. É um Brasil oficial que odeia a brasilidade - esse caldo de cultura que nos forjou. É muito simbólico que o Aldir tenha morrido nas circunstâncias em que morreu: vitimado pela Covid-19, um sujeito que deveria estar rico por todas as canções que fez e cujo tratamento dependeu de campanha na internet por ele não ter plano de saúde. Se a gente está debatendo o esvaziamento do sentido da rua e a sociabilidade que a rua constrói, é muito sintomático que o maior poeta da rua tenha morrido nesse contexto.

Ao mesmo tempo, entre esses mais 100 mil mortos, a maioria é dos mais pobres e certamente há muitos personagens desconhecidos do grande público que são figuras importantes nas escolas de samba, nos terreiros. A história do Aldir Blanc, pelo menos, é contada. Qual é a perda que se tem com essas vidas que se foram e não terão suas histórias narradas como a do Aldir foi?

Eu acho terrível. Eu imagino, por exemplo, a época da gripe espanhola. A gripe espanhola poderia ter matado Pixinguinha, Donga, João da Baiana, Nelson Cavaquinho, Cartola, Ismael Silva... Seria uma catástrofe, mas nós não saberíamos, não teríamos a dimensão do que perdemos. É provável que muita gente boa, que iria fazer muita coisa interessante, tenha morrido com a gripe espanhola. Quantos saberes não se perderam ali? Isso, de fato, me apavora. Nessa luta entre a memória e a lembrança, a estatística é irmã do esquecimento. E vêm mais mortes por aí.

O samba é uma cultura muito fundamentada na oralidade. O velho no samba é uma biblioteca, pô, um depositário de saber, histórias e memórias que foram construídas por aquela sociedade. É isso que você falou: o Aldir [Blanc] é um marco simbólico. Mas quantas vidas, saberes e histórias estão ficando pra trás por conta disso?

Luiz Antonio Simas

O carnaval que sucede a gripe espanhola, em 1919, é um dos maiores da história. A gente está em uma realidade em que não sabemos quanto tempo a pandemia vai durar e é muito provável que gente ainda conviva com o vírus durante o ano que vem inteiro. Em 2022, a Copa do Mundo acontece excepcionalmente em novembro e dezembro, e a final será depois das eleições para presidente no Brasil. Você acha que o carnaval de 2023, dependendo dos resultados das eleições e da Copa de 2022, pode ser tão histórico quanto o de 1909?

Os laços que já uniram mais o país à seleção brasileira se tornaram menos afetivos. Na Copa do Mundo de 1958, você tinha o auge de um discurso que tentou pensar a identidade nacional brasileira em cima do futebol. Mas nesse processo de desencanto do futebol, esse elo com a seleção arrefeceu. Eu suspeito que o primeiro Carnaval pós-pandemia tem tudo pra ser uma espécie de Carnaval pós-gripe espanhola mesmo. Agora, se ele vier acompanhado de uma melhoria do quadro político, que nos tire do obscurantismo minimamente que seja e que venha acompanhado dessa pulsão do encontro (e a Copa do Mundo pelo menos tem isso, a pulsão de estar junto, de assistir ao jogo), pode ser uma coisa impactante. Você está prevendo o Carnaval de 2023, eu espero que a gente possa fazer uma esbórnia antes. A gripe espanhola atingiu muito o Rio de Janeiro, o presidente da república, o Rodrigues Alves, morre; há relatos de cadáveres empilhados porque não havia covas suficiente. E o Carnaval foi uma loucura, a ponto de as pessoas se fantasiarem de espanholas. Eu não estou esperançoso em relação a 2021, mas quem sabe em 2022 a gente já possa fazer um fuzuê?

No seu livro, você chama os carros de "monstros sobre rodas". E a gente está assistindo agora a um fenômeno que é o entretenimento dentro do carro: drive-in para assistir filmes e shows. No Allianz Parque (em São Paulo), por exemplo, o gramado é tomado por carros para as pessoas assistirem a shows. Como você percebe esse fenômeno?

No imaginário brasileiro, construiu-se também a imagem do culto ao automóvel. No governo Kubitscheck, quando vem as montadoras pro Brasil, isso vem acompanhado de um discurso que elevava a posse do carro a um projeto ligado ao status. O carro virou um protagonista da cidade. Eu estou olhando pela janela enquanto converso contigo e vejo uma rua onde o privilégio é do carro - a calçada pra passar alguém é mínima. Essa valorização excessiva do automóvel vem acompanhada de uma depreciação violenta do transporte público. As pessoas não atentam para isso, mas muito do descalabro do transporte público brasileiro vem acompanhado de um imaginário de valorização excessiva do automóvel. Tem sujeito indo a shopping center de carro, é um negócio medonho. O shopping já é um horror pra mim, está inserido em um contexto ligado à morte do comércio de rua e das sociabilidades que esses comércios engendravam na cidade. Então eu acho que essas cenas em que as pessoas assistem a um show ou passeiam em um shopping dentro de um carro são simbólicas do processo de perda da sociabilidade. A gente está vivendo em caixotes: é do caixote do apartamento pro caixote do carro, do caixote do carro você vai pro caixote do shopping, do caixote do shopping você vai pro caixote do trabalho. É um horror.

Como professor, você se adaptou ao ensino à distância?

Eu gosto muito de uma educação que parte de um pressuposto de que o encontro é importante, que as pessoas se vejam e troquem ideias. O nosso país é cheio de problemas para implementar um projeto de ensino à distância que seja viável e tem muito o que percorrer para fazer a inclusão digital. No Brasil, tem uma porrada de gente que não tem sequer um aparelho de celular. Parece fácil pra mim, que posso ter uma banda larga, posso ter um laptop e um celular de última geração. Mas essa não é a realidade efetiva de todos os brasileiros. E eu sou um que não quero voltar à sala de aula, é um momento da gente encarar o drama da pandemia, de pensar na saúde da criança, do professor e dos funcionários. Ao mesmo tempo, a gente tem um Ministério da Educação que é um descalabro, em que o ímpeto da destruição é maior do que o ímpeto da construção de qualquer coisa. Nós temos colégios que são verdadeiros caixotes, com salas que não têm janelas. E nesse momento que a gente tem que ter ventilação, o ar circulando, até do ponto de vista do espaço físico é complicado. Ao mesmo tempo que o Brasil tem problemas muito sérios pra implantar um projeto consistente de ensino à distância, a gente tem que lidar com os dilemas da escola brasileira em um contexto em que a gente tem o poder público muito mais preocupado com a destruição do que com a construção de qualquer coisa.

Mas você tem dado aula?

Tenho, por computador. Eu trabalho muito com curso livre e tenho mantido regularmente as minhas turmas. Estou trabalhando também com um processo à distância de preparação de alunos para o Enem. Eu vivo de escrever e dar aula. Eu me preocupo muito mais com o meu filho nesse contexto. Ele está entre os nove e dez anos de idade e, pra ele, o melhor do colégio é o recreio. Nesse ensino à distância, ele ficou com o pior do colégio. Ele gostava de jogar bola, comer a merenda. Com adulto, a gente vai dando nó em pingo d'água e enxugando o gelo.

André Rodrigues/UOL André Rodrigues/UOL
André Rodrigues/UOL

Por que você prefere usar a expressão "racismo religioso" em vez de "intolerância religiosa"?

Porque intolerância é muito pouco para o que está acontecendo. O fundamento dessa intolerância é o racismo que, no fim das contas, não opera só na dimensão da cor da pele. Quando se desqualifica as sabedorias e religiosidades afro-indígenas do Brasil, se opera em uma dimensão eurocentrada, que considera que há um pilar civilizatório fundamentado no ocidente europeu, em que as coisas que não pertencem a esse pilar civilizatório são inferiores. Então é racismo religioso.

Os rituais espirituais e religiosos requerem aglomerações, assim como carnaval e o futebol - pelo menos o futebol com torcida. Então, a gente está lidando com um mundo que, por necessidade, está abdicando do ritual para controlar o vírus. Você consegue calcular o tamanho do prejuízo que a gente está tendo com essa ausência de ritual?

No candomblé, você tem uma cerimônia fúnebre que é da maior importância, a cerimônia do axexê. Em tempos de pandemia, os ritos de despedida não estão acontecendo. Na Bahia, os terreiros principais fizeram consultas oraculares e os orixás determinaram que não se retomasse a atividade religiosa. Eu acho certo. É um campo do exercício da religiosidade que pressupõe o afeto, o convívio, a festa, a música, a comida, o bailado...

É um momento de esvaziamento grave, mas eu acredito que essas coisas serão recuperadas. As pandemias passam. A reconstrução dos afetos pela festa vai ocorrer. Eu não sou um pessimista nesse sentido. Eu sou um entusiasta da festa como um elemento de construção de pertencimento. O Beto Sem Braço dizia uma frase que eu cito em "O Corpo Encantado das Ruas", que é: "o que espanta miséria é festa". E não é só a miséria econômica, mas a miséria existencial mesmo. A festa é a construção do sentido de ser coletivo. Esse é um dos pontos em que eu tenho esperança: eu acredito na festa. Sou um homem mais de rito do que de crença (eu gosto de ritualizar a vida) e nós estamos vivendo um momento de esvaziamento dos ritos coletivos. Como reconstruí-los? É um desafio que está colocado pro futuro.

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