O guardião dos beija-flores

Há 20 anos, Jonas D'Abronzo cuida de santuário de beija-flores em sítio na serra de Ubatuba

Fernanda Ezabella Colaboração para Ecoa, de Ubatuba (SP) Fernanda Ezabella/UOL

Às 4h30 da manhã, o paulista aposentado Jonas D'Abronzo já está de pé levando comida até a varanda de sua casa em Ubatuba, litoral de São Paulo. São mais de dez garrafinhas de plástico com água e açúcar que ele pendura com fios de pesca, rapidamente atraindo ao seu redor um zum-zum-zum de cores frenéticas.

São os beija-flores da região que chegam para o café da manhã. Os passarinhos ligeiros, muitos de plumagem brilhante, alongam-se na refeição e por ali ficam o dia inteiro, como hóspedes numa pousada "all inclusive". Cuidadoso e sempre animado, Jonas limpa e reabastece as garrafinhas assim que se esvaziam.

Há 22 anos, o técnico de eletrônica de Piracicaba trocou a vida agitada da capital paulista pela tranquilidade do mato na serra do litoral. O plano era virar um ermitão, mas não deu certo. Acabou anfitrião de centenas de aves, assim como de pesquisadores de universidades brasileiras e passarinheiros do mundo todo que batem à sua porteira com regularidade.

"Antes da pandemia, quase todo dia tinha gente aqui. No começo, só vinha gringo, não existia brasileiro observador de ave. Agora tem", contou Jonas a Ecoa. "Nunca fui passarinheiro, mas quando me mudei, coloquei um bebedouro e uma prancha com frutas. Eles vieram de cara."

Hoje com 74 anos, Jonas transformou o sítio aos pés do Parque Estadual da Serra do Mar num santuário a céu aberto que já registrou avistamento de 22 espécies diferentes de beija-flores.

Há também outros 30 tipos de aves que podem ser observados pela propriedade de 80 hectares de mata virgem, alguns se esbaldando nas frutas que ele oferece, como o tiê-sangue, o saí-azul e o saíra-sete-cores.

Fernanda Ezabella/UOL Fernanda Ezabella/UOL

Barzinho do seu Jonas

Com vista para o Pico do Corcovado, o Sítio Folha Seca fica afastado da agitação das praias de Ubatuba, quase escondido numa estrada de terra a 4 km da rodovia Rio-Santos. Na época das chuvas, quando a reportagem de Ecoa visitou o local, a estrada era pura lama.

Quando se mudou para cá, em fevereiro de 2000, Jonas não sabia, mas a estrada já era frequentada por passarinheiros em busca das aves raras da Mata Atlântica. Com a chegada dos seus bebedouros, os entusiastas se surpreendiam com o que viam da estrada e adentravam o sítio para conhecer Jonas.

Como ele nunca cobrou dos visitantes, virou costume levar uns quilos de açúcar e frutas para ajudar na alimentação das aves. Num mês movimentado como novembro, início da estação de procriação, Jonas chega a gastar cinco quilos de açúcar por dia.

Ele gosta de fazer analogias curiosas para explicar a popularidade dos bebedouros. "É difícil saber por que um bebedouro atrai mais que o outro. Eu até brinco: o barzinho da hora hoje é aquele ali, deve ter alguém tocando", disse rindo, apontando para uma garrafinha repleta de beija-flores em volta.

"Por isso tenho sempre que prestar atenção para quais vão esvaziando. Eles são bem espertos em relação às flores. Sabem quando acabou o néctar e a hora que vai dar néctar de novo. Mas os bebedouros são artificiais, e os beija-flores sempre confiam que tem, ficam insistindo."

Ao longo dos anos, Jonas desenvolveu seu próprio bebedouro com garrafas recicladas, que contam até com um mecanismo para evitar abelhas e vespas, além de um repelente natural produzido com ervas plantadas no local.

Beija-flores no mundo

  • Família

    Os beija-flores são da família Trochilidae, que reúne algumas das menores aves do mundo.

  • Menor

    A menor de todas é o beija-flor-abelha, nativo de Cuba, cujo macho tem 5,5 cm e pesa menos de 2 gramas.

  • Maior

    O maior é o beija-flor-gigante, que vive na Colômbia, Chile e Argentina. Tem 23 cm e peso de até 24 gramas.

  • Americanos

    Existem mais de 360 espécies de beija-flores no mundo, todas habitantes das Américas.

  • Brasileiros

    No Brasil, são 84 tipos, sendo 16 endêmicos, ou seja, que moram apenas no país.

  • Variedade

    Colômbia tem o maior número de espécies, cerca de 150

Fernanda Ezabella/UOL Beija-flor topetinho-verde toma água de garrafa criada por Jonas D'Abronzo

Beija-flor topetinho-verde toma água de garrafa criada por Jonas D'Abronzo

Ciência no sítio

Diversos biólogos já pousaram por ali para pesquisar os beija-flores. Em 2009, numa excursão com alunos da Unicamp pela estrada de terra local, o professor e biólogo Wesley R. Silva avistou os passarinhos de Jonas.

"Fomos surpreendidos pela quantidade e variedade de beija-flores esvoaçando pelo terreno", contou Wesley, que desde então incluiu o sítio nas atividades regulares do primeiro ano do curso de graduação em Ciências Biológicas da Unicamp. "O diligente trabalho do sr. Jonas é uma referência nos meios ornitológicos."

Diante da imensa quantidade de beija-flores num único local, Wesley comenta que algumas pessoas podem questionar o benefício às aves do fornecimento de água com açúcar em bebedouros artificiais.

"Mas todos que se dedicam a essa atividade sabem que água açucarada não é prejudicial desde que nas proporções corretas e higienização regular e rigorosa", explicou.

Outra questão é se os bebedouros podem comprometer a polinização das flores feita por essas aves. Para responder essa pergunta, em 2014, um grupo de pesquisadores brasileiros e europeus escolheu investigar uma planta nativa chamada Psychotria nuda, que floresce em abundância no sítio tanto perto dos bebedouros quanto distante.

Um dos envolvidos foi o ecólogo Jeferson Vizentin-Bugoni, da Universidade Federal de Pelotas. Ele contou que os resultados sugerem que a Psychotria não é prejudicada pelos bebedouros.

"Mas não podemos generalizar que bebedouros não afetam as plantas nativas antes que mais estudos sejam feitos", ponderou Jeferson, lembrando de pesquisas parecidas pelo mundo que tiveram resultados variados.

Seu Jonas nos ajudou com a logística da amostragem e ao final do estudo nos preparou o melhor ossobuco que já experimentei. Como forma de gratidão pela hospitalidade e amizade, dedicamos o estudo a ele.

Jeferson Vizentin-Bugoni, ecólogo da Universidade Federal de Pelotas

Como alimentar os beija-flores corretamente

  • 1

    Usar apenas água e açúcar cristal, deste que usamos em casa mesmo, sem corantes.

  • 2

    A mistura deve ter uma concentração aproximada de 20 a 25%, ou seja, uma parte de açúcar para quatro partes de água.

  • 3

    Limpar os bebedouros e trocar a água diariamente ou a cada dois dias para evitar o acúmulo de fungos e bactérias e a fermentação da solução.

Fernanda Ezabella/UOL
Beija-flor-rubi

Personalidades dos beija-flores

Nem todos os beija-flores são habitués dos "barzinhos" do sr. Jonas. É o caso do rabo-branco-rubro, um dos menores da região. "Ele é miudinho, fraquinho e apanha de todo mundo nos bebedouros. Ele bem que tentava, mas agora não vem mais, só aparece nas flores que tenho bastante por aqui", disse Jonas.

Quem quiser atrair beija-flores sem o trabalho de encher e limpar bebedouros pode escolher plantar espécies nativas no jardim. "Flores vermelhas, laranjas e amarelas com características tubulares são geralmente as preferidas", explicou o professor e ecólogo Pietro K. Maruyama Mendonça, do Departamento de Genética, Ecologia e Evolução da Universidade Federal de Minas Gerais.

Um dos mais típicos e endêmicos da Mata Atlântica é o beija-flor-rajado, a maior espécie em peso da região. O rajado é o mais "tagarela" e chega bem pertinho de Jonas quando tem alguma coisa errada, seja bebedouro vazio ou abelhas demais circulando nas garrafinhas. "Parece que ele quer conversar, sabe?", comentou.

O rajado não só bate ponto nos bebedouros como adorou uma planta da Indonésia que Jonas ganhou de presente. É o bastão-do-imperador, que dá uma flor vermelha enorme e vistosa. A planta de fruto ácido acabou se espalhando pelo sítio com ajuda das aves.

Alguns visitantes são migratórios, como o beija-flor-preto, cuja hospedagem dura seis meses a partir de outubro - eram eles que dominavam os bebedouros quando a reportagem de Ecoa visitou o sítio. Já o diminuto estrelinha-ametista só circula entre setembro e dezembro, época da reprodução.

"Brinco que o estrelinha é a prova que o som é mais rápido que a velocidade da luz. Primeiro você ouve o zumbido dele e depois você olha procurando. Sei que ele está por aqui hoje, mas ainda não o vi", contou.

Você sabia que...

  • Habilidades

    É a única ave que consegue voar para trás e de cabeça para baixo

  • Acelerados

    Seu batimento cardíaco pode atingir até 1.260 batimentos por minuto

  • Rápidos

    Podem bater as asas 80 vezes em um segundo

  • Reprodução

    Apenas as fêmeas fazem os ninhos e cuidam dos filhotes

  • Sono pesado

    Ao dormir, entram num estado de torpor para economizar energia (o batimento cardíaco diminui drasticamente e eles parecem mortos)

  • Sugadores

    Além do bico fino e comprido, possuem uma língua longa e bifurcada para pegar o néctar no interior das flores

  • Comilões

    Tomam uma quantidade de néctar duas vezes maior que seu próprio peso por dia

  • Não é só água

    Sua dieta principal são pequenos insetos e outros invertebrados

Fernanda Ezabella/UOL Beija-flor-de-fronte-violeta

Beija-flor-de-fronte-violeta

Segunda aposentadoria

Jonas trabalhou por 30 anos numa firma de informática em São Paulo antes de se aposentar. A empresa tinha uma fábrica de computadores de grande porte e produziu as primeiras urnas eletrônicas do país, nos anos 1990.

"Trabalhava com hardware e software. Era responsável por uma equipe de engenharia da urna", disse Jonas, que graças ao trabalho aprendeu inglês e espanhol, que hoje usa bastante para conversar com os visitantes estrangeiros do sítio.

"Tenho contato com gente do mundo inteiro. É um pessoal interessante, que gosta de natureza. Às vezes não estou em casa e quando volto tem gente aqui, ou vejo que deixaram um quilo de açúcar e bananas de presente. E olha que nunca sumiu nada de casa", contou.

Com o avanço da idade, Jonas começou a pensar no futuro do sítio. Faz oito anos, um vizinho chamado Daniel, de 30 anos, o ajuda de segunda a quinta-feira. Dois anos atrás, ficou responsável pelo local durante um mês enquanto Jonas ganhava um marca-passo.

"É muito difícil me ausentar. Por isso penso em passar o sítio para a frente", revelou Jonas, que não tem filhos e perdeu a única irmã em 2021.

Ele diz que procura alguém ou alguma instituição que tenha o desejo de preservar o santuário, mesmo que de maneira diferente. "Não tenho pressa, continuo adorando isso aqui. Mas a saúde não vai melhorar, não é? Aqui é trabalho todo dia, o dia todo", continuou.

Acho que cumpri um roteiro e tenho que começar um novo ciclo na vida, só isso

Jonas D'Abronzo, aposentado e idealizador do Sítio Folha Seca

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