Até Jesus chorou

Após viver Cristo na Mangueira, pastor Henrique Vieira diz: fé deve estar a serviço do povo, não do estado

Matheus Pichonelli Colaboração para Ecoa, em Campinas (SP) Carine Wallauer/UOL

Um Jesus caracterizado como mendigo marcou o desfile da Mangueira no Carnaval deste ano no Rio de Janeiro, que trouxe várias representações de Cristo. A imagem correu o mundo e provocou reações, levando seu intérprete, o ator, escritor, poeta e pastor Henrique Vieira, 33 anos, da Igreja Batista do Caminho, a refletir sobre as razões para tanto incômodo. Cinco meses depois, a experiência agora é contada em um dos dois livros escritos por ele durante a quarentena. "A partir do Evangelho, quero mostrar que a imagem hegemônica que se tem sobre Jesus hoje é uma imagem muitas vezes contraditória com a mensagem do Evangelho. O Jesus apresentado na Bíblia nada tem a ver com fundamentalismos", diz ele em entrevista a Ecoa. "Deus sofre com a humanidade."

Do Rio, onde mora, ele conta por telefone que, além dos livros, ainda a serem publicados pelo grupo Companhia das Letras, tem conciliado os cuidados com a casa e a filha, de dois anos, com as demandas da igreja e da assessoria parlamentar da qual faz parte. "Produzir em tempos de quarentena é mais desafiador. A sensação é de sobrecarga", diz o pastor, que recorreu à meditação para lidar dar com as tarefas, que incluem ainda a preparação de um curso online de teologia negra e a produção de um novo programa de podcast.

A fala calma, seguida sempre de uma respiração profunda, contrasta com as críticas contundentes que ele faz sobre autoridades políticas e o papel de algumas correntes religiosas na pandemia. Para ele, o negacionismo científico é contrário ao espírito da fé, e o discurso que desdenha as mortes pela covid-19 tem traços de eugenia. Afirma também observar a construção de uma narrativa messiânica em torno do presidente Jair Bolsonaro — que, segundo ele, se adequa perfeitamente à categoria do Anticristo. "Ele usa o nome de Jesus para fazer tudo aquilo que Jesus jamais faria. É diabólico porque é baseado na mentira."

Vieira coloca a luta antirracista no centro do compromisso cristão e diz que existem muitas formas de o racismo "tirar o oxigênio da alegria do coração do negro". Sendo o racismo estrutural, afirma o religioso, não discuti-lo significa reproduzi-lo. "O racismo é o modo de funcionamento da nossa sociedade. O curso normal dela é o corpo negro abatido no chão."

Ex-vereador de Niterói (RJ), o pastor, que é filiado ao PSOL, afirma também que o sistema capitalista é incompatível com a democracia, os direitos humanos e o meio ambiente. "O contrassenso do progresso do capitalismo é que ele pode levar ao fim da humanidade", diz. Por fim, vê a urgência de mudanças profundas: "Diante dessa dor, nos cabe uma reflexão séria e uma decisão radical. A vida nos pede coragem para reorientar os rumos da sociedade". Leia abaixo a entrevista.

Carine Wallauer/UOL

ECOA - Como tem sido sua quarentena?

Henrique Vieira - Junto da minha companheira, estou cuidando da casa e da nossa filha, de dois anos e meio. Estou escrevendo um livro, terminando outro, preparando aulas para um curso de teologia negra que vou dar online a partir da semana que vem, preparando um novo programa de podcast, que vou lançar no início de agosto. É um dia a dia que mistura cuidado com a filha e a casa e as demandas do trabalho.

Tenho tentado me disciplinar para ter um tempo diário de medicação e ioga. Por conta da exaustão da quarentena, da ansiedade que envolve o momento. E também uma certa sobrecarga de trabalho. Entendi que era necessário ter essa disciplina, separar um momento do dia e um lugar da casa para meditar, fora os momentos de oração, da leitura bíblica. Faço isso geralmente de manhã, e antes de dormir. Basicamente antes de a filha filha acordar, e depois de ela dormir.

Você falou em sobrecarga. A quarentena aumentou a demanda por trabalho?

Eu tinha palestras e celebrações de casamento agendadas para o ano inteiro. Isso foi tudo basicamente cancelado ou adiado. Por outro lado, tem a demanda da escrita de um livro, do podcast, das aulas, entrevistas, a produção de textos, artigos, as demandas da igreja, da assessoria parlamentar da qual faço parte na área de direitos humanos, as demandas da casa, a filhinha sem escola.

Carine Wallauer/UOL Carine Wallauer/UOL

Pode falar mais sobre o livro?

Vou falar sobre Jesus para nosso tempo. Quero, a partir do Evangelho, mostrar que a imagem hegemônica que se tem sobre Jesus hoje é uma imagem muitas vezes contraditória com a mensagem do Evangelho, e que o Jesus apresentado na Bíblia nada tem a ver com fundamentalismos, discurso de ódio, acúmulo de riquezas, estímulo à violência. A mensagem do Evangelho de Jesus está vinculada ao amor, ao respeito à diversidade, ao respeito aos pobres e oprimidos. Minha experiência desfilando na Mangueira neste ano, quando representei Jesus, foi determinante para eu decidir escrever este livro.

Como a experiência te marcou?

A mensagem de Jesus é o sentido mais essencial da minha vida. Essa é uma reflexão desde sempre. Uma reflexão que nasce da minha experiência com o Evangelho e do fato de ter em Jesus a inspiração maior da minha vida. Não é um tema restrito a esse ano, nem ao desfile da Mangueira. É o tema da minha vida. Mas sem dúvida alguma o samba-enredo da Mangueira ("Eu sou da Estação Primeira de Nazaré / Rosto negro, sangue índio, corpo de mulher / Moleque pelintra no buraco quente / Meu nome é Jesus da Gente", diz trecho da letra), e toda a sua repercussão, chamou a atenção para a necessidade de a gente falar sobre esse Jesus do Evangelho que é vinculado aos pobres, às vítimas de violência. Muito inspirado pelo samba eu quis escrever este livro, mas não estou inventando a roda. Já tem toda uma tradição cristã popular, progressista [sobre essa discussão]. É um livro para contribuir com esse pensamento cristão genuíno para os desafios do nosso tempo.

Ele estava encaminhado antes da pandemia?

A definição do tema veio no início do ano. No ano passado eu publiquei um livro pela Objetiva, "O amor como revolução", que virou peça. A gente tinha acabado a temporada [de apresentações] e estava em negociação para uma próxima. Foi uma experiência muito boa, e já tinha encaminhado outros livros. Um deles vai sair no mês que vem pela Companhia das Letras. É um livro menor, primeiro em formato de ebook, por causa da pandemia, já que temos muitas lojas físicas fechadas ainda. Em maio troquei mensagens com o monge Marcelo Barros, que é católico, vinculado à teologia da libertação e tem uma linda caminhada de compromisso com os mais pobres. Trocamos vários e-mails falando sobre quarentena, espiritualidade, as dores e as esperanças do mundo, o momento que estamos passando no Brasil. E essa troca virou o livro "O monge e o pastor, cartas para um mundo melhor".

Cronologicamente, o livro sobre Jesus para nosso tempo foi um acordo que fechei primeiro. Depois veio essa troca de e-mails e, de maneira mais rápida, já houve o processo de revisão e edição.

Como é ser alguém que cuida de si? É alguém que desenvolve amor próprio, cuida das pessoas ao redor, cultiva amizades genuínas. Isso se manifesta nas minhas escolhas cotidianas, no tempo que passo com minha família, na atenção que dou aos meus amigos, nos diálogos que estabeleço com as pessoas no trabalho, na rua, no prédio. Ou seja: é decidir viver de maneira a valorizar cada pessoa que atravessa o caminho e o tempo da minha vida

Henrique Vieira, ator, escritor, pastor e poeta

Em uma entrevista em abril, você dizia que a pandemia abria uma oportunidade para abraços mais verdadeiros, conversas sinceras e olhares sensíveis a uma vida simples e solidária. Os eventos que se seguiram desde então confirmaram essa expectativa?

Naquela entrevista manifestei um desejo, uma esperança. Mantenho o mesmo desejo. Eu disse que o futuro estava em aberto. Não acho que as coisas vão necessariamente melhorar. Eu falei, e repito, que eu espero que esse contexto crítico nos faça refletir sobre o absurdo da normalidade anterior à pandemia. A pandemia é o caos. Estamos perdendo milhares de pessoas no mundo, e cada pessoa é insubstituível, é uma família chorando, uma história que se vai. Não estou minimizando a dor deste momento. A pandemia provoca assassinato e morte. Além da sua letalidade no organismo, o vírus encontra uma sociedade, no caso do Brasil, desigual, injusta economicamente, racista estruturalmente, com milhões que não têm saneamento básico, moradia adequada, que estão na miséria, que passam fome, com subemprego. Tem a dimensão biológica e tem a dimensão sócio-histórica.

Não estou minimizando a dor do momento. Só estou chamando a atenção que, diante dessa dor, nos cabe uma reflexão séria e uma decisão radical. A vida nos pede coragem para reorientar os rumos da sociedade. No aspecto individual e inter-relacional, que se refere às minhas atitudes em relação às pessoas com quem convivo. É um tempo de acordar para cuidar de mim e cuidar de quem está ao meu redor, e cuidado tem a ver com amor, zelo, interesse pela vida do próximo. É tempo de a gente perceber que a vida é passageira. Como disse o Renato Russo, é melhor amar as pessoas como se não houvesse amanhã. É uma reflexão necessária. A vida é muito rápida, muito frágil. É melhor gastar tempo amando.

E como se dá a reflexão no sentido sócio-histórico?

É um tempo de decisões coletivas, por justiça social e ecológica, e por respeito profundo à diversidade. Acho o sistema capitalista incompatível com a democracia, com os direitos humanos, com a mãe terra. É um sistema que coloca o lucro acima da dignidade humana. Isso é eticamente pecaminoso. Não dá para conviver com a ordem patriarcal, que ainda coloca homem como referência de poder, não dá para conviver com esse racismo estrutural, que seleciona o corpo negro como subalterno, subumano, previamente culpado, digno de morte. Espero que a dor dessa pandemia nos ensine caminhos mais generosos do ponto de vista individual, inter-relacional, e do ponto de vista histórico e estrutural.

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Quanto não poder estar junto nem enterrar os mortos nos fere como humanidade?

A impossibilidade do rito da despedida dificulta a elaboração do luto. O rito marca a passagem, a despedida, oferece uma possibilidade de homenagem para que as pessoas possam se consolar. O velório possibilita o encontro para que haja consolo mútuo. Não viver isso dificulta essa travessia pra que essa dor se torne aos poucos suportável. Lamento profundamente essa circunstância. Faz sentido do ponto de vista sanitário, mas de fato dificulta a elaboração do luto. E é preciso buscar alternativas para homenagear e lembrar da pessoa que se foi. As possibilidades dos meios de comunicação podem gerar um tipo de encontro, ainda que virtual, para que as pessoas possam colocar pra fora a dor da perda. Ritualizar a dor é elaborar a própria dor e minimizar os seus efeitos.

Como analisa as declarações de deboche, por parte das autoridades políticas, em relação às vítimas?

É difícil encontrar palavras diante do absurdo. Tenho pensado como às vezes a gente é chamado a falar sobre coisas que nos deixam em silêncio. É uma insensibilidade chocante, uma indiferença gritante. É difícil produzir palavras diante de autoridades tão vazias de amor, compaixão, de respeito ao sofrimento das pessoas. A desumanidade fere a nossa humanidade. E o discurso de determinadas autoridades é um discurso desumano, insensível e tem traços de eugenia. Essa coisa de dizer que é só uma gripezinha, que quem tem condicionamento físico vai passar por isso, é quase uma aceitação de que algumas pessoas não vão sobreviver e tinham que morrer mesmo, como se houvesse corpos evoluídos, selecionados que vão passar, e para os outros, o famoso "e daí". Vejo traços discriminatórios de eugenia nos discursos dessas autoridades. Faz muita falta uma referência de paz nesse país. Estamos enfrentando uma pandemia séria com um dos piores governos do mundo. Só a força do povo mesmo para criar mecanismos de solidariedade e de consolo.

O racismo é o modo de funcionamento da nossa sociedade. Se você não discute, não problematiza, a sociedade segue o seu curso normal. E o curso normal dessa sociedade é o corpo negro abatido no chão

Henrique Vieira, ator, escritor, pastor e poeta

Há quem veja, por parte do presidente, uma tentativa de se colocar como um líder messiânico, que vai trazer a cura, a salvação, por meio da fé em um medicamento sem eficácia comprovada. Você vê isso também?

Sim, mas não só no caso da cloroquina. A narrativa que seus principais seguidores constroem no entorno dele é uma narrativa messiânica, de autoridade moral, referência absoluta, salvador da pátria, incorruptível, o homem antissistema. Quando a personalidade é inquestionável, quem questiona é inimigo. Em uma perspectiva de guerra o inimigo se abate. O questionamento e a crítica, que são sinais de democracia, não são bem-vindos quando se tem líder mitificado. A construção da narrativa tem a ver com um projeto autoritário, fascista, e que ao longo da história, via de regra, vira morte. O próprio presidente, em outros momentos, já prometeu a morte de seus adversários antes de ser eleito. É alguém que sistematicamente usa prerrogativas de força para ameaçar seus adversários. É alguém que abertamente defende a ditadura civil-militar, exalta torturadores, e não vê problemas nenhum no uso da violência para massacrar quem pensa diferente. Essa autorização de massacres sobre quem pensa diferente tem a ver com essa figura de um líder que precisa ser obedecido. O Bolsonaro, na verdade, se adequa perfeitamente à categoria do Anticristo.

Outro dia vi uma postagem que dizia: "quer conhecer Jesus? Olha para o presidente do Brasil. Ele é exatamente o contrário".

É impressionante o grau de incompatibilidade entre o que ele fala e faz com a mensagem de Jesus. O caráter diabólico do negócio é que aquilo que se faz e se fala, e que é completamente contrário ao que Jesus fez e falou, ganha o status de fazer em nome de Jesus. Quando falo diabólico não estou pensando em um ser com chifre. Diabólico é aquilo que separa, que divide, aquilo que falsifica, que ilude, ludibria, que anestesia a consciência. Isso que é diabólico. Algo que nada tem a ver com Jesus faz se parecer com Jesus. Ele usa o nome de Jesus para fazer tudo aquilo que Jesus jamais faria. É diabólico porque é baseado na mentira. Vamos ao Jesus dos evangélicos e comparar com a prática e discurso de Bolsonaro. Não tem conciliação possível.

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Como você vê o papel de algumas igrejas de assumirem na pandemia uma postura negacionista e anti-científica?

É muito bom registrar que não são todas as igrejas. Eu me esforço muito para que a gente não generalize o campo evangélico. Obrigado por colocar a questão dessa forma. Vejo a posição dessas igrejas como irresponsável. A mensagem do evangelho não tem nenhuma relação com o histórico desse presidente. Então, igrejas que apoiam deliberadamente esse governo estão apoiando um projeto de morte, um projeto violento, insensível. Não tem cheiro de Deus, não tem indícios de prática amorosa. Igrejas que sustentam esse governo não têm compromisso com a ética do evangelho.

O negacionismo é um absurdo. Primeiro que fé não significa imunidade, não é vacina. Segundo: a possibilidade de conhecer o mundo, de interpretar a realidade e fazer ciência, do ponto de vista da fé, é uma dádiva que Deus nos dá. O cérebro e a capacidade cognitiva são coisas que Deus nos deu. Quando fico doente vou ao médico por quê? Porque reconheço que existe um saber historicamente construído e acumulado que pode me ajudar. Se alguém for construir uma casa, vai chamar um engenheiro, um arquiteto para ajudar a pensar. Eu reconheço que existem saberes que não são do campo da academia, mas seja como for, embora não exista saber apenas no campo científico, é muito importante reconhecer o valor do pensamento científico, acadêmico. E se esses especialistas que estudam essa pauta indicam que a aglomeração é um fator de contágio, então, meu Deus, é uma dádiva.

A ciência é uma possibilidade que Deus dá ao ser humano. Não há antagonismo entre fé e ciência. O saber científico pode terminar numa bomba atômica, ou em uma vacina que cura a humanidade em uma pandemia. Valorizo e respeito o saber científico. E sempre luto para que esse saber seja usado para o bem da humanidade. O negacionismo é contrário ao espírito da própria fé.

Essa relação 'creio em Deus, então vai dar tudo certo' não tem comprovação histórica. Isso Jesus disse textualmente: 'o Sol nasce para justos e para injustos'. Coisas ruins acontecem com pessoas que creem em Deus. Fé não é imunidade. Deus não é um solucionador de problemas instantâneo. Igreja não é equipamento que protege do vírus. [O negacionismo] é uma postura irresponsável até porque em muitas igrejas tem pessoas em grupos de risco, senhores e senhoras, idosos e idosas, com fé genuína. Sabe?

Henrique Vieira, ator, escritor, pastor e poeta

Isso reforça estigmas sobre as denominações cristãs evangélicas?

Com certeza. Especialmente porque esse setor mais extremista é um setor que tem muito poder político, econômico e midiático. Então tem grande poder de reverberação de suas ideais para o conjunto da sociedade e reforça esse estigma sobre o campo cristão e evangélico.

O quanto o senso de comunidade é alterado pela pandemia e quanto a espiritualidade pode ser importante para essas conexões, mesmo a distância?

A espiritualidade genuína cultiva compromisso ético com o outro e, consequentemente, gera comunidade. Espiritualidade tem a ver com essa busca de harmonia entre seres humanos. Tem a ver com essa sede de vida plena para todas as pessoas. Espiritualidade é essa dimensão profunda do coração humano que busca o sentido para a vida, e não é um sentido apropriado individualmente apenas. É um sentido coletivo. A espiritualidade me liga à humanidade, me faz viver e morrer com ela. O efeito mais genuíno da espiritualidade é o amor. Essa frase pode parecer clichê, mas ela é assim mesmo, é profunda e é concreta. O efeito mais genuíno da espiritualidade é o amor enquanto compromisso ético com a humanidade, com a dignidade humana, o amor que cria vínculo de compromisso com o outro, brota do coração humano, chora as injustiças do mundo, se rebela contra estruturas opressoras. A espiritualidade me tira da indiferença, da apatia, da alienação da busca pelo meu êxito pessoal sem qualquer conexão com a realidade do outro. A espiritualidade, neste momento especialmente, é uma chave de saída para a humanidade.

A espiritualidade não julga a fé do outro, indica que o ambiente que a gente deve viver como sociedade deve ser um ambiente bom para todas as pessoas. Isso significa que todos devem ter saneamento básico, casa digna, acesso à saúde, a salário adequado. Um país racista não é bom para todas as pessoas. É um país que mata. A população negra é estrangulada cotidianamente. Uso estrangulamento de maneira proposital vinculado ao nome de George Floyd.

E que recentemente quase se repetiu na periferia de São Paulo.

É um estrangulamento concreto do pé do policial no pescoço do homem negro, da mulher negra. E um estrangulamento subjetivo do cotidiano, do olhar atravessado, da abordagem policial inconsequente, do tapa na cara, da piadinha discriminatória, daquele espaço que você não vê pessoas da sua cor. Tem muitas formas de o racismo tirar o oxigênio da alegria do coração do negro. Esse país não é bom todos. Não é bom para travestis e transexuais. É o que mais mata travestis e transexuais no mundo. Não é bom para muitos camponeses que não têm um pedaço de terra para plantar, enquanto tem latifúndio a perder de vista desmatando grande parte da floresta amazônica. Que país é este em que o mega latifundiário desmata, o pequeno camponês preserva, mas este quase morre de fome e o mega latifundiário brinca de investimento na bolsa?

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A que a pandemia permite pensar sobre o modelo de produção e consumo? É possível ver esta doença como metáfora social?

Não vejo nenhuma hipótese de Deus como agente de sofrimento humano, nunca vi, não vejo e não verei. Imposição de sofrimento não é pedagogia divina. Deus sofre com a humanidade. É diferente. Vejo Deus chorando as lágrimas do mundo, especialmente dos pobres e dos oprimidos. Esse Deus todo amoroso que grita com a gente, esse Deus que foi escravizado no Brasil colônia, no Brasil império, que foi levado para as câmaras de gás nos campos de concentração nazistas, esse Deus que foi crucificado. Nos muitos crucificados na história está o semblante de Jesus.

Dada a dor colocada como realidade diante de nós nos cabe de fato aprender. A humanidade é capaz de fazer isso. Repito: o vírus é um dado biológico. Aí nós temos de pensar que modelo de produção nós temos que desequilibra relações entre ser humano e natureza e aumenta as chances de a gente contrair um vírus para os quais não temos imunidade. Isso depende de informações científicas sobre a origem do vírus. Podemos aprender mais sobre isso para concluir melhor. Me parece que esse modelo que vai avançando sobre tudo na terra, transformando a terra sempre em depósitos de recurso para fazer a economia funcionar, a impressão é que podemos abrir portais de muitos agentes que podem nos fazer sofrer.

Isso tem sido observado no risco para as populações indígenas, como foi durante a colonização.

Exatamente. O grande contrassenso do progresso do capitalismo é que ele pode levar ao fim da humanidade. Alguém precisa explicar como isso pode ser defensável. Além de todas as injustiças do tempo presente, todas elas inaceitáveis, como assim manter esse ritmo de crescimento. Por que crescer? Temos perguntas profundas a fazer sobre a lógica capitalista de produção e organização da economia. Não seria melhor produzir menos e distribuir tudo?

A espiritualidade abre dentro de mim um espaço para que o mundo me habite. Significa que o sofrimento do mundo me atravessa, me importa. A espiritualidade não é uma meditação em casa olhando para o céu. Exige um compromisso ético com a dignidade humana

Henrique Vieira, ator, escritor, pastor e poeta

Em um dos capítulos do podcast "Fraterno abraço" você coloca a luta antirracista no centro da vivência cristã. Na pandemia isso ficou mais evidente?

O racismo está exposto desde 1500. O Brasil é construído a partir do racismo, porque todo racismo é estrutural, como bem identifica o Silvio de Almeida. O racismo é o chão da história do Brasil. É uma operação política já há alguns séculos. O racismo não se explica por patologia, delírio ou irracionalidade. O racismo é a normalidade desse sistema político, econômico e jurídico do Brasil. É a normalidade para esse sistema que considero, evidentemente, injusto, antiético, genocida. Um exemplo disso é que o Brasil nasce com o massacre sobre os povos indígenas e a escravidão sobre povos negros. O início do Brasil, enquanto alvo de colonização europeia, já nasce com o povo sendo massacrado ou escravizado. Quando a Corte Portuguesa estabeleceu aqui uma estrutura administrativa, só podiam participar os homens adjetivados como bons — proprietários de terra, de escravos, brancos, católicos e ricos. Esse é o Brasil. Um Brasil que nasce definindo o homem branco como o topo da hierarquia.

A gente ouve falar de cidadão de bem até hoje...

O homem bom da época é o cidadão de bem hoje.

Estamos vendo essa herança em manifestações como a daquele cidadão que impediu a homenagem aos mortos pelo coronavírus na praia de Copacabana?

A cidadania no Brasil tem cor, endereço e renda definida. A cidadania brasileira é branca, é rica e mora nos bairros elitizados. A partir dessa cidadania se construiu a imagem do outro, do sub-cidadão. E a sub-cidadania estaria nas favelas, periferias, no corpo negro, nos indígenas, nas pessoas LGBTQIA+. O Brasil é estruturado nessa lógica. O racismo está exposto desde 1500, mas a luta antirracista também. Não é algo recente. Agora, neste contexto da pandemia, desse contexto globalizado de alta tecnologia, as informações circulam com muita rapidez. Posso, por essa razão, considerar que a conjuntura aqueceu essa pauta, mas não que essa pauta tenha nascido agora. A conjuntura indicou a centralidade dessa pauta e a necessidade de tocar nessa ferida para curá-la de vez.

Sendo o racismo estrutural, não discuti-lo significa reproduzi-lo necessariamente. Não discutir racismo é uma atitude racista num país estruturalmente racista. Se você não discute, não promove mudanças, você vai apenas dar seguimento à normalidade dessa sociedade. Mas essa normalidade é aquela que extermina a juventude negra, que define o corpo negro como previamente culpado, promove encarceramento em massa da população negra, faz com que a população negra seja a principal vítima da covid-19, que impõe a violência obstétrica principalmente para mulheres negras, que coloca uma sub-representatividade dos negros nos espaços de poder e nos grandes meios de comunicação, que faz com que as religiões de matriz africana sejam perseguidas.

Lucas Tavares/Folhapress Lucas Tavares/Folhapress

Passados esses meses, que reflexão você faz hoje sobre o desfile da Mangueira?

Tem um capítulo do livro sobre a condição negra de Jesus. A ideia é mostrar que o significado construído por essa teologia colonizadora é um significado muito distante do Jesus dos evangelhos. Na verdade, o Jesus dos evangelhos é um incômodo. É um incômodo para esse significado hegemônico a respeito de Jesus. O livro vai tratar dessas questões.

Tudo leva a crer que em muitas cidades, como o Rio, não haverá carnaval ano que vem. Um país sem as próprias festividades é um país que perde um pouco da sua espiritualidade?

As festividades populares fazem parte da construção da nossa convivência, da nossa alegria. É uma ferida a mais que esse momento provoca. Essas festividades têm como êxito ocupar a rua, com convívio, brincadeira, uma rua que está sendo cada vez mais um espaço do medo, da correria, do estresse, do trânsito engarrafado. As pessoas mais se esbarram do que se encontram. As festividades resgatam o sentido comunitário da rua. A rua volta a ter sentido como espaço para a gente se encontrar e conviver. É uma ferida a mais. Evidente que nada, absolutamente nada, se compara à principal ferida desse momento, que é a morte de milhares de pessoas. Não ter carnaval, e não ter outras festividades populares, é justamente para preservar o que há de mais importante, a vida das pessoas. Não podemos ser inconsequentes. Se não tiver vacina mesmo até lá, faz todo sentido não ter carnaval.

Antes disso haverá eleições municipais. Você acredita que será uma oportunidade para os grupos políticos tradicionais se reconectarem com a periferia?

A conexão com os grupos na periferia, com a favela, com as camadas populares, é absolutamente central para a construção de um projeto democrático e justo para o Brasil. Essa conexão não pode ser numa linha do "vamos lá levar a verdade", "vamos lá levar o conhecimento". Essa perspectiva colonizadora, civilizatória, é arrogante. A favela produz o seu saber. As pessoas sobrevivem e resistem a uma realidade muito dura, muito perversa. A conexão tem que ser baseada no respeito, na troca, na convivência, no compartilhamento de saberes e experiências. As elites, com seus mecanismos de poder, procuram muito mais cooptar do que propriamente empoderar a população. A ideia que eu defendo é de um projeto não de cooptação, mas de efetiva participação do povo nos processos decisórios. O Brasil vem sendo conduzido historicamente pelo andar de cima, que se utiliza do andar de baixo pra se manter em cima. O projeto tem que ser a partir dos de baixo, quebrar essa lógica dos andares para que não tenha ninguém mais em cima nem embaixo. Essa conexão tem que ser como no trecho do samba-enredo da Mangueira em 2019: 'Brasil, chegou a vez de ouvir as Marias, Mahins, Marielles, malês'.

Seu nome chegou a ser considerado como opção para a Prefeitura do Rio.

Não foi ventilado. Seria uma definição partidária, coletiva. E depois considerei, pessoalmente, que não era o momento.

Como essa reconexão passa também pela proximidade e o reconhecimento do trabalho de bases das igrejas, que hoje ocupam os espaços onde o Estado se ausentou? E como isso dificulta a separação entre Estado e igreja defendido pelo protestantismo histórico?

Falando como cristão: o objetivo não pode ser controlar o estado, isso é anti laico, antidemocrático. Volto a usar a expressão espiritualidade genuína. Não é a que quer ganhar o poder, é a que quer promover o bem. Entendeu a diferença? Não é "vamos fazer trabalho de base para controlar o Estado". A questão é: vamos fazer trabalho de base para gerar compaixão, cultivar solidariedade, defender educação pública, saúde pública, respeito à diversidade. Não é uma agenda de expansão da igreja dentro do estado, mas de um testemunho de fé como serviço ao povo. Significa, inclusive, estar ao lado das mães e pais de santo, padres, das freiras, dos sheiks, dos rabinos, dos espiritualistas, dos umbandistas. Não é pegar minha religião e transformá-la em poder do estado. Não é pegar a Bíblia e transformar em Constituição brasileira. Não é para ganhar cargo, poder e dinheiro. Jesus não quis ganhar o Império Romano para si. Ele rejeitou toda tentativa de fazê-lo um grande líder. Queria acabar com a lógica de que deveria haver um imperador.

Ele não queria uma bancada. Queria andar com o povo.

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