Quebrando a história única

Vencedor do Jabuti, Jeferson Tenório vê enriquecimento da literatura com mais negros publicados e premiados

Juliana Domingos de Lima De Ecoa, em São Paulo Carlos Macedo/Divulgação

Depois de lançar em agosto de 2020 "O avesso da pele", seu terceiro romance, o escritor Jeferson Tenório ficou um tanto assustado com a repercussão.

Com o volume de entrevistas, eventos e outras demandas relacionadas à divulgação do livro, não estava conseguindo se dedicar à sua tese de doutorado, que estuda a representação do pai na literatura luso-africana.

Tentou tranquilizar a si e ao orientador dizendo que aquilo deveria passar em dois ou três meses, mas isso não aconteceu. O livro foi ganhando novos leitores, novas resenhas e, em novembro deste ano, recebeu o Jabuti de melhor romance, um dos principais reconhecimentos da literatura brasileira.

"O avesso da pele" é narrado por Pedro, jovem negro que refaz a história do pai, um professor de literatura assassinado em uma abordagem policial. Com a questão racial como pano de fundo, a literatura de Tenório quer principalmente construir a subjetividade dos personagens, evidenciando a humanidade de corpos frequentemente desumanizados.

O escritor falou a Ecoa sobre a ampliação da diversidade na literatura brasileira, as transformações para que uma outra história literária seja contada e sobre seu próximo romance.

Carlos Macedo/Divulgação Carlos Macedo/Divulgação

Ecoa - Uma pesquisa sobre romances brasileiros mostrou que havia ausência total de personagens negros na maioria e que mais de 90% dos autores eram brancos. Quais as consequências da falta de diversidade entre autores e personagens para a literatura e a sociedade brasileiras?

Jeferson Tenório - De certo modo, a literatura acaba refletindo o que a gente tem na sociedade. Essa pesquisa causou uma grande comoção, as pessoas achavam que a gente estava querendo cotas para personagens. Entenderam tudo errado, era uma constatação do quanto o sistema literário brasileiro era branco, racista, preconceituoso, machista. O que não significa que [esses autores] não tenham qualidade. Fui leitor desses romances escritos por homens brancos da classe média e muitos deles me influenciaram também.

A questão é ter uma visão de que aquela é a única história que pode ser contada, a partir desses homens brancos, classe média, heterossexuais. Quando se tem a possibilidade de alargar essa visão, essa forma de contar a história do Brasil pela literatura, há um enriquecimento do que a gente pensa da cultura brasileira.

Carlos Macedo/Divulgação Carlos Macedo/Divulgação

Como a sua literatura e a de outros autores em atividade têm combatido esse problema?

Fiz uma uma live com o José Falero, que é daqui de Porto Alegre, e a gente estava conversando justamente sobre isso: embora as pessoas queiram rotular, dizer que a minha literatura é sobre racismo, que a literatura dele é sobre a marginalização de pessoas, a gente vive batendo na tecla que o que a gente faz é trabalhar com o que há de mais humano.

Os personagens acabam sendo reflexo das experiências desses autores. É aquilo que a Conceição Evaristo já vem falando há algum tempo sobre as escrevivências, experiências que são fruto de uma jornada muito singular, que é a jornada de pessoas negras no Brasil. Essa visão, a partir desse lugar, permite que a gente conte uma outra história. Acho que o Itamar [Vieira Jr.], a própria Conceição Evaristo, o José Falero, a Cidinha da Silva, e tantos outros autores têm feito muito bem isso.

No ano passado, o Jabuti de melhor romance foi para "Torto arado", um livro que também foi um fenômeno. Você vê uma atenção maior do mercado editorial e das premiações para escritores negros nesses últimos anos?

Acho que tem a ver com a diversidade dos jurados. Havia pessoas negras, autores, críticos, professores negros e negras no júri [do Jabuti], o que ajuda um pouco, até sobre o olhar que se dá para determinada literatura.

Mas também tem um mercado editorial que se abriu para a produção de autores negros e negras nos últimos anos, isso é inegável. Uma outra história da literatura está sendo contada, com autoras como a Maria Firmina [dos Reis], a própria Carolina Maria de Jesus, a descoberta de que Machado de Assis era negro. Me parece que a gente está vivendo um momento muito bom nesse sentido, mas claro, sempre olhando com um pé atrás, para que a gente não ache que é o suficiente ter dois prêmios Jabuti com dois homens negros.

Estamos vivendo um momento de reconhecimento e acredito eu que isso não tem a ver com a cor da pele, mas justamente com o reconhecimento de qualidade.

Carlos Macedo/ Divulgação

Como você se relaciona com esse tipo de recepção, com esses rótulos?

Não tenho muito problema com a recepção porque não tenho controle dela. Quando a gente escreve um livro, até tenta colocar alguns efeitos estéticos para reverberar na recepção. Mas isso nem sempre dá certo, na maioria das vezes não dá. A gente produz um livro achando que a recepção vai ser uma e daqui a pouco é outra completamente diferente.

Então eu lido com tranquilidade. A minha questão é o modo como eu me apresento. Dependendo do lugar onde estou, me apresento como um autor negro que faz literatura negra. E tem outros espaços em que eu não acho que isso seja relevante, em que ser apresentado como escritor é o suficiente. Então não há uma regra de como eu classifico minha literatura. Depende do contexto, do momento. Não há uma fixidez identitária. A literatura foge justamente desses rótulos.

Neste ano completou-se o cinquentenário do Dia da Consciência Negra — que surgiu em Porto Alegre, idealizado por um personagem que você homenageia no livro, o poeta Oliveira Silveira. A história negra e do movimento negro no RS é suficientemente conhecida?

Ela não é conhecida, o movimento não é conhecido. Tem uma questão de procurar apagar a identidade negra aqui, é um processo sistemático. O próprio Dia da Consciência Negra não é feriado aqui, no lugar onde foi criado. Isso já diz alguma coisa.

O Oliveira Silveira é essa usina de ideias que vai iluminando essas lâmpadas ao redor, essa árvore que vai dando frutos. Tem vários autores que vêm a partir da influência dele. Ele é de uma vertente da poesia que foge daquela literatura mais engajada, que comunica mais direto. Eu me filio justamente a essa vertente para escrever minha prosa. É possível falar sobre questões raciais por um viés mais filosófico e é por aí que eu vou.

Essa demanda por autores negros também nasce da academia, porque se não houvesse a entrada desses estudantes que pressionam para que haja mudança nos currículos, talvez a gente não tivesse toda essa repercussão de autores e autoras negras.

Jeferson Tenório, escritor e vencedor do Prêmio Jabuti 2021

Você já tem um próximo romance engatilhado? Quais questões têm te motivado a escrever?

O título provisório do próximo romance é "De onde eles vêm?". Eu vou contar a história de três estudantes universitários que entram pelo sistema de cotas, cada um num curso diferente: letras, história e medicina. Vou narrar os embates que eles vão encontrar dentro da universidade a partir da entrada de pessoas negras, os assuntos que vão surgir, como os professores lidam com esses alunos.

A pergunta do romance é de onde vêm esses professores brancos, de classe média e esses alunos negros. É preciso contar a história do que aconteceu dentro da academia, que vai depois reverberar fora dela.

As políticas afirmativas foram fundamentais pra mim. Sem elas, talvez eu nem tivesse entrado na universidade. Foi um momento muito importante e, logo quando as cotas foram efetivadas, eu não queria mais discutir se deveria ou não ter cotas, isso não era mais uma discussão pra mim - e, na verdade, ainda não é. A discussão para mim era se deveria ampliar.

Os dados vêm mostrando que as cotas fizeram uma grande diferença na sociedade, principalmente para a população negra. Eu sempre digo que as cotas não são para sempre, acho que em algum momento, quando houver um equilíbrio de pessoas negras na universidade, a gente pode pensar em rever. Mas a gente ainda precisa manter por uns bons anos ainda.

A literatura pode ser antirracista? O que uma literatura antirracista pode fazer?

Eu não sei se acredito numa literatura antirracista, acho que é de novo colocar um rótulo. É claro que, como movimento político, eu acho interessante colocar o meu livro e outros como literatura. É preciso ser objetivo para se comunicar com uma grande massa.

Do ponto de vista pragmático acho que a literatura pode quase nada. A gente não está fazendo livros para serem antirracistas, mas que falam de personagens que têm sonhos, que têm suas contradições. A gente está falando de humanos, de outras questões que extrapolam ser ou não antirracista.

O que a literatura pode fazer é sensibilizar as pessoas para a causa. Mas não acredito que alguém vá ler "Torto arado" num dia e no outro dia vá virar antirracista. É uma construção interna que a pessoa vai fazendo. A literatura pede para o leitor esse tempo da lentidão, da reflexão, e a partir dessa sensibilização é que talvez essa pessoa possa tomar algumas atitudes mais práticas. A literatura tem grande poder, mas interno, individual.

+ Jeferson Tenório no UOL

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