Águas Inquietas

Defendendo união entre esquerda, Huck e Doria; Jean Wyllys estuda fake news e diz que BBB sempre foi político

Cristina Judar Colaboração para Ecoa, de São Paulo (SP) Germano Brandão/Divulgação

As artes visuais são a sua grande paixão. "Há recalques que só elas podem iluminar", afirma o artista autodidata Jean Wyllys, que se dedica à criação de desenhos e ilustrações sempre que consegue uma brecha em sua agenda.

Focado em uma pesquisa de doutorado sobre "a articulação das fake news com discursos de ódio e os impactos desses discursos nos processos eleitorais e modo de vida das minorias", na Universidade de Barcelona, Jean está imerso em uma realidade próxima-distante, que possibilita uma visão mais nítida sobre o Brasil: "vivo nadando de um aquário mais seguro para outro, até que eu possa voltar para o meu, livre da sujeira e dos predadores que dele estão tomando conta." Ele decidiu exilar-se na Europa após vencer as eleições para um terceiro mandato como deputado federal, em 2018, ano em que, sua correligionária de PSOL, Marielle Franco foi assassinada e as ameaças de morte a Jean só aumentavam, obrigando-o a viver sob escolta policial.

Desde que descobriu sua verve política ainda na adolescência — na cidade de Alagoinhas, Bahia, ao integrar o movimento pastoral da igreja católica local — sua vida foi um turbilhão: a começar pela participação em um dos programas mais populares da televisão brasileira, o Big Brother Brasil, do qual saiu como vencedor, passando pelo seu trabalho como ativista das causas LGBTQIA+, até chegar a deputado federal pelo PSOL.

Filho de um pintor de automóveis e de uma trabalhadora doméstica, ele afirma que a democracia brasileira, construída a partir da Constituição de 1988, "ampliou a possibilidade para que muitos de nós — eu, inclusive — entrássemos para nos sentar à mesa e negociar condições de vida mais dignas e liberdades para todos e todas nós".

Germano Brandão/Divulgação

Sem política, só há barbárie

Ecoa - Qual é o seu posicionamento em relação ao atual fenômeno do cancelamento?

Jean Wylys - O cancelamento é parente dos linchamentos e dos antigos rituais de expiação pública. É uma expressão do autoritarismo e do sadismo que existem em muitas — eu até diria na maioria — das pessoas. Tenho pavor! Não no sentido de que eu tenha medo de ser cancelado, mas porque isso me causa repugnância. Não tenho medo de cancelamento porque já sobrevivi ao linchamento virtual, e quando alguém sobrevive a esse tipo de violência, torna-se blindado a ela.

Mas são poucos os que têm capacidade de resistir a essa violência. Quase todos capitulam, quando não sucumbem adoecidos de depressão e ansiedade. É importante dizer que o cancelamento não é o mesmo que crítica, leve ou dura, baseada em argumentos e em contra-argumentos.

A violência dos linchadores é, nesse caso, uma mimesis, ou seja, uma reprodução da violência que essas minorias sofrem. Os canceladores agem como se tivessem o monopólio da virtude e fossem os juízes da correção política. Põem em risco a presunção de inocência e o direito humano de uma pessoa a aprender com os erros para não errar de novo; de se explicar; de opinar e de ser ouvido

Jean Wyllys

Renato Rocha Miranda/Globo

"Viva a Rede Globo!"

Atualmente, temos a edição mais política do BBB. Você tem acompanhado o reality?

Não. Só vejo a repercussão nas mídias sociais. O BBB sempre foi político. E suas edições - já são muitas, né? (risos) - sempre acompanham as transformações tecnológicas e refletem e influenciam o debate político. Na pré-história do BBB, quando participei, não havia nem Facebook e as pessoas pagavam para votar por telefone fixo. Havia ainda um mundo comum construído pela mídia de massa e não este mundo fragmentado por uma — e em uma — massa de mídias.

A elite intelectual brasileira e a esquerda deveriam "assistir mais TV aberta"?

Sem sombra de dúvidas. Ainda há muito elitismo na esquerda e muita recusa em ver a cultura midiática como campo estratégico para a conquista de corações e mentes. Essas pessoas ignoram a noção do conceito de hegemonia de Gramsci e a de aparelhos ideológicos do estado, de Althusser: veja como essa esquerda demorou para respeitar a teledramaturgia — se é que já respeita — e como demorou para chegar às mídias sociais e entender sua cultura.

Eu fui praticamente um pioneiro do uso das mídias sociais em política no Brasil, algo de que a extrema-direita se apropriou e explorou rapidamente para o mal. Essa esquerda elitista só crê no panfleto impresso, no comício na praça e na Kombi do sindicato (risos). O mais grave desse elitismo é que ele não se traduz necessariamente em ilustração e em vasto repertório cultural.

Ainda bem que há gente de esquerda e liberais que não são elitistas. Fora a incapacidade de avaliar a complexidade do conteúdo da Globo, que inclui tanto a propaganda política disfarçada de jornalismo da GloboNews, quanto a excelente e vanguardista teledramaturgia. Precisamos saber gritar no momento certo "O povo não é bobo, abaixo a Rede Globo" e "O povo é bobo sim, viva a Rede Globo".

Muita gente não sabe que você é escritor de ficção, assim como tem se dedicado às artes visuais. Como andam as produções artísticas nesses dois caminhos?

À ficção eu voltei em 2019, com dois contos, um deles publicado na antologia "A resistência dos vaga-lumes" (Editora Nós). Pretendo concluir um romance que comecei. Mas a atuação política e a produção de textos de não-ficção não me deixam avançar. Eu sou bolsista, preciso produzir resultados desse investimento. E as artes visuais são a minha grande paixão. Há coisas que só digo e só posso dizer por meio do desenho e da pintura, nos quais sou autodidata. Há contradições que só as artes visuais podem carregar. Há recalques que só elas podem iluminar.

Esses elitistas, de esquerda ou liberais, em geral não lêem literatura, desconhecem cinematografias, ouvem pouca música erudita e não vão a exposições nem a museus, mas se acham demais quando proclamam que odeiam novela ou reality show ou funk.

Jean Wyllys

Qual tem sido o seu envolvimento com o segmento político nos dias atuais?

Eu nunca deixei de atuar com política (risos). Desde o início da minha adolescência no movimento pastoral da igreja católica em Alagoinhas (BA) até os dias de hoje, passando pelo meu ativismo na comunidade LGBTQ — já não sei onde parou essa sigla! (risos) —, incluindo minha participação no BBB, eu atuo politicamente. A política é a nossa razão de ser. Sem ela, só há barbárie. O que posso dizer é que no momento não tenho qualquer vontade de ser candidato a nada no Brasil ou em qualquer outro lugar.

Quais são os feitos dos seus mandatos que mais te orgulham?

Pôxa... Acho que eu sou suspeito para falar dos efeitos dos meus mandatos (...). Todo o esforço feito principalmente pela direita e pela extrema-direita — mas também por setores da esquerda, inclusive do próprio partido a que eu ainda estou filiado [PSOL] — para destruir minha imagem pública por meio de uma pesada campanha de difamação e mentiras, dá a exata medida do que eu e meu mandato representávamos para a sociedade brasileira; e os frutos que estávamos dando.

Você acredita que a união "das esquerdas" é a única saída possível para o cenário que que teremos em 2022? Acredita numa frente ampla com o centro?

Sim. Mas não existe frente ampla sem o PT. Na verdade, sem o PT não haverá democracia. Isto não quer dizer que o PT também não tenha que fazer concessões e rever seus dogmas. Lula já está fazendo isso, generoso e inteligente que é. Já a direita rancorosa e golpista precisa fazer sua parte, assumir seus erros, principalmente na imprensa, e admitir que o PT é uma força da qual não se pode abrir mão no esforço de manutenção da democracia. Frente ampla só existe se houver PT. E frente ampla não se faz só com PT, PSOL, PC do B e partidos nanicos de esquerda. A frente ampla contra o fascismo deve ser ampla mesmo, com Doria e Huck inclusive, mas com a direita admitindo que ela nos meteu nesse abismo.

Qual é o peso - ou a responsabilidade - de você ter estado entre as cinquenta personalidades incluídas na "Lista Global da Diversidade", divulgada pela revista britânica The Economist, em 2015?

O envaidecimento era infinitamente menor do que a consciência da responsabilidade de estar representando um coletivo e dando sequência a uma luta muito anterior à minha chegada nesta vida. Mas o fato de eu ter figurado nessa seleta lista também despertou muito ódio e inveja por parte de quem achava que um gay assumido, vindo da camada mais pobre da população, nordestino, filho de um pintor de automóveis negro e de uma doméstica branca, que se moveu socialmente sem herança nem apadrinhamentos e que apareceu num reality show tinha chegado longe demais...

Parte da elite brasileira não me perdoa por ter feito conquistas sem ter as enormes vantagens com que ela conta historicamente; considerava-me um "mau exemplo" para os de minha classe. Sabe a Maeve [Millay], da série "Westworld"? Eu sou ela.

Sergio Lima - 27.mar.2013/Folhapress Sergio Lima - 27.mar.2013/Folhapress

O exílio é uma longa insônia

Dois anos longe do Brasil... Como ficam as saudades de casa, dos amigos, dos parentes, de Alagoinhas (BA)?

Alagoinhas está dentro de mim. Eu falo com minha família e amigos todos os dias. Essa é a vantagem das novas tecnologias da comunicação. Mas isso também significa que habito dois mundos e dois tempos simultaneamente, o que tem impacto em minhas horas de sono (risos). "O exílio é uma longa insônia", como disse Victor Hugo.

Ver o país sob uma outra perspectiva gerou quais mudanças na sua percepção do país?

Às vezes me vejo como um peixe que saiu de um aquário e agora pode vê-lo de fora, em sua completude e beleza, mas também em sua sujeira. Dos predadores eu já havia me dado conta quando ainda estava lá dentro, mas vê-los de fora me deu a exata noção de como eles agem. Esta alegoria me obriga a me reconhecer como um peixe fora do aquário, o que traz mais liberdades, mas também outros riscos. Por isso, vivo nadando de um aquário mais seguro para outro, até que eu possa voltar para o meu, livre da sujeira e dos predadores que dele estão tomando conta.

EUA, França, Alemanha... A democracia brasileira pode aprender com esses três países onde você viveu nos últimos anos?

Esta democracia potente, em que as janelas e portas da Casa Grande foram abertas para que os de dentro vissem a quantidade e a diversidade de gente lá fora, ampliou a possibilidade para que muitos de nós — eu, inclusive — entrássemos para nos sentar à mesa e negociar condições de vida mais dignas e liberdades para todos e todas nós.

Esta democracia pulsante, que se ergueu na era Lula e foi derrubada por um golpe em 2016, tinha muito a ensinar às democracias da Europa Ocidental e dos EUA, onde as instituições democráticas são mais sólidas porque mais velhas, onde muitas liberdades individuais e direitos civis foram garantidos, mas onde, também, o regime democrático vive assombrado pela xenofobia e pelo terrorismo engendrados pelo colonialismo e pelo neoliberalismo.

A elite europeia gosta da Europa, inclusive dos europeus que estão fora da Casa Grande. A elite europeia não gosta dos imigrantes vindos de suas colônias, a não ser que seja para explorá-los como mão de obra barata. Já a elite brasileira, de origem europeia, não gosta do Brasil nem dos brasileiros de fora da Casa Grande; trabalha para evadir as riquezas do país e para sabotar o fortalecimento de instituições verdadeiramente democráticas. Para essa elite, democracia só é bonita na Europa Ocidental e nos EUA, porque o país onde vivem e fazem dinheiro ainda é visto como colônia.

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