Mão na enxada

Hortas se espalham pelas periferias de SP e trazem conhecimento, autonomia e lucro

Rodrigo Bertolloto De Ecoa, em São Paulo Adriano Vizoni/Folhapress

São Paulo é uma das megalópoles mundiais, mas em suas bordas o passado rural reaparece. E, nas fendas de tanto concreto, seu solo fértil mostra que pode ser verde e produtivo. Há centenas de exemplos de hortas nas periferias, transformando o que antes era terreno baldio em área de agricultura urbana.

Tem cultivo embaixo dos fios de alta tensão. Tem plantação nas lajes para aproveitar o sol que não entra nos becos. Tem horta didática ao redor de escola para ensinar a importância de uma alimentação saudável. Tem canteiro de praça que ganhou plantas alimentícias. Tem cooperativas que colhem orgânicos para abastecer mercados, feiras e restaurantes.

"Nessa área era só lixo, de carcaça de carro roubado até desova de cadáver. Depois, a Sabesp pagava seguranças particulares para cuidar. A gente falou para usar a terra para plantar aqui. A empresa economizou esse dinheiro, e nós ganhamos um espaço de produção", resume Maria de Lourdes Andrade de Souza, ou simplesmente Lia, liderança que transformou a favela Vila Nova Esperança em um bairro sustentável, com carrinhos de mão oferecendo vegetais orgânicos a preço de convencional pelas ruelas da comunidade enfincada na divisa com o município de Taboão da Serra.

Tendência em todo o mundo, a agricultura urbana ganha características próprias em São Paulo. Muito imigrante que veio para a cidade grande atrás de oportunidades está recuperando o prazer atávico de mexer com a terra. Alimentos tradicionais da cultura indígena e caipira, como a taioba e o caruru, voltam a ser plantados e consumidos. E a metrópole que já foi industrial vai voltando a ter uma cara rural, que pode ser sinônimo de sustentabilidade e não de atraso.

Adriano Vizoni/Folhapress Adriano Vizoni/Folhapress

Empregos verdes e necessidade de mão de obra

Ecoa visitou e conversou com os responsáveis de várias hortas, e a opinião é a mesma: o principal problema é achar e manter a mão de obra, seja ela voluntária ou remunerada. Isso em um período em que o desemprego atinge 14% da população economicamente ativa do Brasil. Será que há aí um paradoxo ou uma oportunidade, afinal, a agricultura urbana é apontada como uma das soluções para ter mais empregos verdes?

Depois de anos sem conseguirem empregos fixos, Terezinha Matos e o marido decidiram, como outras famílias na zona leste de São Paulo, aproveitar as terras debaixo de um linhão, como são conhecidas as verdadeiras avenidas criadas pelas linhas de transmissão de energia que trazem eletricidade para a cidade.

Na horta Sabor de Vitória, no bairro de São Mateus, há mais de 80 tipos de verduras e legumes, e a produção é vendida nas feiras locais. "O problema surgiu quando meu marido adoeceu. É difícil encontrar alguém para ajudar todo dia, pagando ou não. O jeito foi convocar um mutirão para os amigos darem em auxílio geral", conta Terezinha, que, de uma hora para outra, viu seu tempo tomado para acompanhar o marido aos hospitais. O mutirão ajuda momentaneamente, mas não resolve no longo prazo.

No Capão Redondo, zona Sul da cidade, a horta Cores e Sabores aproveita o terreno de uma escola estadual e tem um objetivo mais pedagógico. Lá também a questão é achar mãos para cuidar da terra, ainda mais com as crianças em casa no período de quarentena. "Às vezes, a gente consegue verba de algum projeto, e aí dá para pagar alguém para estar todo dia, mas não é sempre. Fazemos trabalho voluntário, mas é difícil arrumar tempo na correria do dia a dia", conta Paulo Magrão, liderança comunitária à frente da plantação no antigo baldio.

O cenário é diferente nas áreas rurais do extremo sul do município. Lá, o formato de produção é a cooperativa de agricultores, cada um plantando em suas terras, e reunindo forças na hora de comercializar. É assim com a Cooperapas, união de 35 famílias que plantam orgânicos na região de Parelheiros e vendem para mercados e restaurantes da Vila Madalena, como o Arturito, da célebre chef argentina Paola Carosella.

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Nossa terra, nosso chão

Quando o terreno pertence a alguém é mais fácil transformá-lo em horta. As áreas com gasodutos ou linhas transmissoras de energia, por exemplo, podem ser cedidas em comodato, ou seja, os hortelões podem plantar, mas não podem construir, muito menos morar por lá. "Eles colocam muitas regras. A gente procura seguir. Mas tem uma regra que a planta não pode passar dos dois metros de altura, e a gente tem umas bananeiras. O que fazer?", comenta Terezinha.

Em outro ponto da zona leste, a CDHU (Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano) cedeu um terreno vizinho ao conjunto habitacional que construiu em São Miguel Paulista para as moradoras tocarem uma horta. Elas formaram o GAU (Grupo de Agricultoras Urbanas) e deram vida ao Viveiro Escola, com agrofloresta, sistema de coleta pluvial, cozinha e salão para eventos.

"Quando vim morar aqui, não tinha uma árvore. Hoje, você entra aqui e parece uma mata, mas é uma floresta produtiva", se orgulha Vilma Martins, integrante do grupo. "Aqui mora muito nordestino que veio do sertão e queria se reconectar com a terra e com a memória. Por isso, o pessoal vem ajudar aqui com vontade."

Além da venda dos vegetais in natura, elas preparam patês, geleias e biscoitos com a produção e ainda promovem eventos no local abastecidos com os bolos e tortas feitas por elas. "Falaram que esse serviço em inglês se chama 'catering'. Então, batizamos quem trabalha com isso de catarinas", brinca Vilma.

Quando o terreno é público, é mais fácil instalar uma horta em escolas ou centros culturais, que tem uma direção próxima que pode facilitar o acesso, o uso da terra e até a irrigação. Já em praças, vale mais a união e a proteção dos moradores do que processos legais, que muda de administração para administração.

Não são raros os casos de horta cortada pelos serviços de poda e remoção do município, que não reconhecem que aquele mato é alimentício, ou destruída por outros usuários do espaço público, com ou sem intenção. Por isso, é importante a sinalização do local, assim como a constante vigilância do local.

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Plantação na laje

Segunda maior favela de São Paulo, com população estimada em torno de 100 mil moradores, Paraisópolis não parece inicialmente uma área recomendável para se plantar. Mas, no meio das estreitas vielas e do empilhamento de casas morro acima e abaixo, há um lugar privilegiado pelo sol: as lajes.

Graças à mobilização da associação de moradores e à ajuda da iniciativa privada, vários projetos por lá querem estimular a alimentação saudável e ajudar na economia doméstica promovendo hortas no bairro que tem 18 mil lajes.

Há cursos de horta desde 2017 na sede da associação local. No ano seguinte, foi inaugurado o bistrô Mãos de Maria, que serve almoços diários utilizando os alimentos produzidos por lá. Recentemente foi lançado o projeto de horta vertical por lá, contando até com aparelhos de hidroponia (as plantas que crescem na água, nutridas por sistema de bombeamento). A ideia inicial é ajudar na produção de 5 mil marmitas que são distribuídas para a comunidade.

Na horta comunitária de Paraisópolis, mantida no Pavilhão Social do G10 das Favelas, há dois modelos. Um é horizontal com plantas frutíferas como limão siciliano, graviola, atemóia e carambola nos canteiros, enquanto temperos e hortaliças estão em caixas, com terra da melhor qualidade, postadas no pátio do local. Ocupando apenas 20 m², está a versão vertical, que conta com colunas de hidroponia para produzir verduras. Para tamanha iniciativa, a associação local teve apoio do Instituto Stop Hunger e do grupo Sodexo.

Esse projeto se chama AgroFavela-ReFazenda e tem o objetivo de impactar mil "fazendeiras urbanas", como batizou o presidente da associação de moradores, Gilson Rodrigues. Elas receberão treinamento para o plantio e a utilização dos alimentos, além do reaproveitamento dos resíduos. A meta é instalar 200 hortas nas lajes ainda neste ano.

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Uma favela verde

O nome da favela é perfeito para sua história: Vila Nova Esperança. A comunidade surgiu nos anos 1960 em uma área vizinha ao parque estadual Jequitibá (localizado na divisa de São Paulo, Osasco e Cotia) e estava ameaçada de ser retirada pela Justiça com a justificativa de que o bairro estava degradando o meio ambiente.

Na luta pela moradia, um grupo de moradores transformou um terreno que era um bota-fora de entulhos em uma horta comunitária, com cozinha coletiva e venda de alimentos orgânicos pelo preço de um convencional. Hoje, é uma favela cercada de bananeiras, mamoeiros e mangueiras.

"Antes, a gente distribuía as verduras. Mas é aquela história de dar o peixe ou ensinar a pescar. Agora quem ajuda na horta ganha sua parte. O resto a gente vende barato para custear os gastos da horta", conta Lia, líder comunitária que ganhou pela iniciativa o Prêmio Milton Santos em 2014, dado pela Câmara Municipal de São Paulo.

Durante a pandemia, a produção local está reforçando as 70 marmitas diárias que alimentam a população mais vulnerável do local. Muitas doações de cestas básicas vieram do G10 das Favelas, bloco de líderes das maiores favelas do Brasil. "Até falei para o Gilson de Paraisópolis para ele me ajudar, porque aqui a gente só consegue ampliar a estrutura quando entra algum dinheiro", afirma Lia, que quer fazer por lá um pesqueiro para se juntar ao viveiro, à cozinha e à biblioteca local, feita de taipa, em um estilo bem sustentável aproveitando entulhos de madeira da região.

Keiny Andrade/UOL

Lia, esperança

Sob a liderança de Maria de Lourdes Andrade de Souza, 57 anos, conhecida na Vila Nova Esperança como Lia, cerca de três mil moradores que compõem as 600 famílias do bairro da zona oeste de São Paulo, nas proximidades do município de Taboão da Serra, hoje vivem em moldes sustentáveis, com energia elétrica regularizada e coleta seletiva de lixo.

Uma realidade totalmente diferente do que Lia encontrou ali quando chegou para morar, em 2003. De um local com fiação exposta — os 'gatos' - e sem asfalto, a mobilização da moradora na comunidade gerou frutos para além da infraestrutura básica: cisterna, biblioteca, cozinha coletiva, brinquedoteca.

Conheça história de Lia e como ela transformou a vida de sua comunidade.

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Chás no terreno baldio

Hortelã, cidreira, capim limão, boldo: nada como um bom chá no Capão Redondo. Além de capitanear a horta Cores e Sabores, o líder Paulo Magrão cuida do fogão a lenha de onde sai o bule quente com o chá da produção local para a pausa nos trabalhos na roça montada em um terreno que era dominado pelo mato nos fundos da Escola Estadual Presidente Café Filho.

"Nossa principal missão é ser uma horta pedagógica para os alunos, mas, sem aulas, isso parou. Também levamos conhecimento para que as pessoas plantem em suas casas. Na pandemia, porém, nosso trabalho foi alimentar os moradores de rua do entorno. No centro de São Paulo, eles estão bem assistidos, mas aqui na periferia dá dó vê-los remexendo nas lixeiras. A alimentação devolve a humanidade para essas pessoas esquecidas pelo poder público", relata Magrão.

Ele conta que a produção tem outros dois destinos. Os temperos e vegetais viram antepastos. E as ervas viram chás. Os produtos são comercializados em feiras e eventos e ajudam a remunerar uma família que está cuidando diariamente da horta.

Criada em 2000, a horta do Capão é um oásis de verde no emaranhado de asfalto e concreto dessa periferia e ganhou o nome em referência à música Cores e Valores, do grupo Racionais MCs, cria do bairro da zona sul paulistana.

A estimativa é que São Paulo tenha mais de 650 locais de agricultura no município, a maior parte na extrema zona sul, área mais rural da cidade. Mas em todas as regiões há presença de hortas, e a prefeitura montou uma plataforma que reúne as iniciativas no site Sampa Mais Rural.

Adriano Vizoni/Folhapress Adriano Vizoni/Folhapress

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