Futebol e voz

Mulheres guaranis conquistam campo de futebol em aldeia de SP e usam esporte para empoderar a comunidade

Carlos Minuano Colaboração para Ecoa, de São Paulo Fernando Moraes/UOL

"Acordo cedo, deixo o café pronto e aviso meu marido que até as duas da tarde vou estar no campo jogando bola", conta Jandira Mayara, 29, indígena guarani mbya que vive na Tekoa Pyau, uma das seis aldeias próximas ao pico do Jaraguá, na zona norte da capital paulista. Mas nem sempre foi assim. Há pouco tempo, contou, as mulheres guaranis nem podiam jogar bola. Hoje, atribuem ao esporte o fortalecimento para se posicionarem diante da aldeia e até de seus maridos.

Quando a reportagem de Ecoa chegou à terra indígena, localizada a aproximadamente 22 quilômetros do centro da cidade, por volta de 10 horas da manhã de um sábado, Jandira (cujo nome indígena é Para Mirim) estava terminando de limpar a casa, tarefa costumeira antes de ir para os treinos aos fins de semana.

Para conquistarem o espaço em campo, elas tiveram de enfrentar o machismo e o preconceito dos homens da aldeia que, como ocorre também na sociedade não indígena, ainda acham que futebol não é coisa de mulher.

"Eles não respeitavam quando a gente estava jogando", relembra Jandira. "Quando queriam jogar, invadiam o campo, atrapalhavam, não se importavam se o nosso jogo tinha terminado". Elas se sentiam mal, mas não sabiam o que fazer.

Quem começou a virar o jogo a favor das meninas foi a avó de Jandira, que não por acaso tinha o mesmo nome que ela, Jandira (falecida em 2012). Órfã de mãe desde criança, era conhecida por cuidar de todos, tanto que se tornou a primeira cacique mulher da etnia guarani. Em homenagem à sua luta, o primeiro time de futebol feminino do povo guarani, criado em 2004, foi batizado com seu nome indígena, Kerexu, que significa "mãe protetora".

Algumas meninas ainda enfrentam resistencia dos maridos, querem que a mulher fique só cuidando da casa, da comida, dos filhos. Por isso foi muito importante definirmos nossos horários de treino. Meu marido era meio resistente também, mas comecei a falar firme 'no horário do jogo nem vem me encher'.... À tarde são eles que jogam, aí eu faço as coisas de casa

Jandira Mayara, indígena guarani do time que leva o nome de sua avó, Kerexu

Fernando Moraes/UOL Fernando Moraes/UOL

A resiliência e a reza

Jandira vive hoje na aldeia Tekoa Pyau, ou Terra Nova, em português, mas nasceu na Tekoa Ytu, a única área demarcada na região próxima ao pico do Jaraguá. Foi lá que seus avós, Joaquim Augusto Martins e sua esposa Jandira Augusta Venício, se instalaram na década de 1960.

Diferentemente de outras etnias, o povo guarani é nômade, de tempos em tempos busca novos locais para viver. Isso por causa de um mito profético que fala da busca por uma terra sem mal. Apesar da tradição, no Jaraguá, o que encontraram foi precariedade e carência de todos os tipos.

Às margens da rodovia Anhanguera, em aldeias divididas pela estrada que dá acesso ao pico do Jaraguá, os indígenas vivem em barracos ou casas de alvenaria. O solo pedregoso da região não favorece a agricultura, caçar também não é possível pois ali já não há mais bichos e o rio próximo à aldeia está poluído.

Mas, apesar dos problemas, o povo guarani resiste. Ao lado do campo de futebol ainda vazio, uma jovem envolta em fumaça segura um enorme petyngua, cachimbo guarani usado por quase todos no cotidiano da aldeia e também nos rituais de cura, que acontecem todas as noites na casa de reza (opy).

"É como rezar, é para falar com Nhanderu", explica a adolescente Francileide da Silva, 17. Ao lado dela, crianças brincam e conversam na língua originária, outro traço marcante da resistência cultural guarani em São Paulo.

Fernando Moraes/UOL Fernando Moraes/UOL

Com as bênçãos de Kerexu

O treino estava programado para as 10h da manhã, mas o relógio já marcava quase meio-dia quando Jandira finalmente surgiu no campinho. Ela explica que teve de cuidar dos três filhos e de afazeres domésticos. A maioria das mulheres também não tinha chegado ainda.

Por influência do convívio com a avó, a cacique Kerexu, Jandira se tornou uma das principais ativistas do movimento feminino na aldeia pelo direito das meninas jogarem futebol.

Com a chuteira na mão e vestida com o uniforme de seu time, o Xondárias (Guerreiras, em português), Jandira voltou a falar das lutas da avó e de como ela ainda inspira não só as mulheres, mas todos da aldeia. Kerexu se tornou cacique após a morte do marido, Joaquim, em 1992.

Por ser mulher, impor respeito não foi fácil, conta Jandira. "Ela enfrentou muito preconceito, mas com firmeza e o gênio forte que tinha, conseguiu". Antes de abrir caminho para as meninas jogarem futebol livremente, a cacique também lutou bravamente para construir uma escola na aldeia.

Foi lá onde sua neta estudou e onde hoje trabalha como professora. Jandira dá aulas para o segundo ano do ensino fundamental. "Minha avó mudou a realidade das mulheres na aldeia, conquistou muitos espaços para elas, por exemplo, de trabalho".

No caso do futebol, precisou muita conversa, mas a cacique convenceu a ala masculina da aldeia de que as meninas também tinham o direito de jogar bola.

No futebol conseguimos ver também como tudo está ligado, como uma coisa afeta na outra. Por exemplo, a gente luta por território, mas essa é uma questão que afeta também nossa saúde, nossa educação, a convivência em nossa comunidade

Jandira Mayara, indígena guarani do time que leva o nome de sua avó, Kerexu

"Futebol influenciou meu empoderamento"

A luta das meninas da aldeia Tekoa Pyau, no Jaraguá, não era apenas pelo direito de jogar futebol. Queriam também espaço e tempo garantidos para isso. No começo era uma brincadeira, mas de tanto ver os meninos jogando, acabaram montando times para disputarem entre elas, depois começaram a competir com outras aldeias.

Foi assim que nasceu o primeiro time de futebol feminino da aldeia do Jaraguá citado no início da reportagem. Jandira conta que elas chegaram até a participar de um campeonato dentro de uma edição do Jogos Indígenas de São Paulo, em Itanhaém, no litoral sul do estado, competição em diversas modalidades e com a participação de várias etnias.

Ela admite que o desempenho do time não foi dos melhores. "Foi triste, eu era muito jovem, chorei muito, conseguimos levar o jogo para os pênaltis, mas eu errei um chute", lamenta Jandira. O Kerexu perdeu o jogo.

Mas nem ela nem o time se deixaram abater. "O importante é a diversão, é jogar, e a interação que a gente constrói com as outras meninas."

Logo, Jandira começou a perceber que o efeito transformador do futebol em sua vida era mais importante que a quantidade de gols que fazia ou tomava, e do número de partidas que ganhava ou perdia. "Influenciou meu posicionamento, minha fala, meu empoderamento."

Fernando Moraes/UOL Fernando Moraes/UOL

Força coletiva

"No começo, eu jogava bola e voltava para minha casa, depois de um tempo comecei a conversar mais com as meninas", relembra Jandira. "Comecei a entender o ponto de vista delas e também a me posicionar mais nas questões."

Foi assim que, coletivamente, elas ganharam mais força e conquistaram novos espaços, não apenas na aldeia, mas também fora dela. "Há uns três anos conseguimos garantir dias e horários para as meninas no campo". Isso após cerca de 15 anos de problemas.

Em uma reunião definitiva com os homens, ficou decidido que aos sábados e domingos, de 9h até 14h, o campo é delas. "E eles não podem atrapalhar enquanto nosso jogo ou treino não tiver acabado", reforça Jandira.

O time atual de Jandira é o Xondárias, criado por volta de 2017. Depois de muitos jogos fora da aldeia, as histórias das guerreiras guarani que jogavam futebol começaram a correr a região e chamaram a atenção do coletivo Salve Kebrada, que desenvolve projetos culturais no Jaraguá, desde 2016.

O coletivo resolveu ajudar as meninas. Com o apoio, o time ganhou uniforme, treinador, passou a treinar também em uma quadra, e ainda recebe um apoio mensal de R$ 300. "Participamos até da Taça da Favela em Paraisópolis", conta Jandira, orgulhosa.

Enquanto a entrevista avança, outro time de mulheres guarani começa a se aquecer. "São as Guardiãs, time que foi criado no ano passado", explica Jandira. O jogo que começa logo em seguida é contra elas.

Fernando Moraes/UOL Fernando Moraes/UOL
Fernando Moraes/UOL Fernando Moraes/UOL

"Hoje todas querem jogar futebol"

As jogadoras do time Guardiãs se aquecem correndo entre cones e se revezando em chutes ao gol, auxiliadas por um rapaz, também guarani. "É o nosso auxiliar técnico, se chama Maguila", conta Roseane Silva, 23, ou Rete Mirim Poty, que interrompe um pouco seu treino para conversar com a reportagem.

Ela explica que a quantidade de mulheres jogando bola cresceu muito na aldeia. "São tantas meninas que foi necessário criar outro time". Segundo Roseane, nem todas conseguem treinar regularmente, porque participam de outros projetos, como o coral guarani, que frequentemente faz apresentações fora.

Cerca de 16 meninas formam o time fixo das Guardiãs, que se prepara para jogar em competições fora da aldeia, como já faz o Xondarias. "Antigamente as mulheres tinham vergonha de jogar porque os meninos ficavam zuando, mas hoje não é mais assim."

Enquanto o jogo segue no campinho da aldeia, Roseane, que trabalha como agente de saúde na aldeia, conta que a vida melhorou em outras esferas também para as crianças. "Hoje elas não morrem tanto por problemas como pneumonia, as mães têm mais conhecimento."

Neste momento, uma criança se aproxima, interrompe a entrevista, falando em guarani, bastante afobada: "estão dando ovos de páscoa na escola". Quando o jogo termina, Xondarias tinha anotado 5 gols e levado apenas 1.

As mulheres do futebol estão se engajando na política, tomando consciência sobre nossos direitos e lutas, e cada vez mais dipostas a participar quando há moblização, esse mês teve o Acampamento Terra Livre em Brasília, tinham meninas do nosso time lá. Quando a gente participa desses movimentos voltamos mais fortalecidas

indígena guarani do time que leva o nome de sua avó, Kerexu

Topo