Evangélicos pelo clima

Sob ameaças de morte e divisões, evangélicos se unem para lutar pelo meio ambiente e contra a crise climática

Marcos Candido De Ecoa, em São Paulo Clara Gouvêa

"Se Deus criou o homem e a Terra, como pudemos destruir o mundo criado por Ele?", se questionava Camila Mantovani, ativista e filha de pastores evangélicos batistas de uma comunidade no Rio de Janeiro. Os amigos da igreja eram a favor da preservação da natureza, mas o desejo soava quase genérico. Nem todos compreendiam que deviam fazer algo pelo meio ambiente, embora houvesse consenso, e consensos tornaram-se cada vez mais difíceis e desejados no grupo religioso que tem a segunda maior população do Brasil.

Camila é uma das fundadoras da Coalizão Evangélicos Pelo Clima Criado em 2021, o grupo une mais de 30 lideranças evangélicas de diferentes doutrinas e debate o aquecimento global, mudanças climáticas, desmatamento e sustentabilidade entre evangélicos. Além de estudos e manifestações públicas, os pastores usam versículos e interpretações bíblicas para demonstrar a Terra como uma criação divina a ser preservada.

A ideia é mostrar que o Deus bíblico criou o homem, a Terra, os animais, viu que isso era bom e para cá enviou o próprio filho Jesus. Logo, é papel da humanidade preservar a vida que foi gerada e é dada por Deus. Há também uma intenção prática de participar de manifestações e mostrar como o voto e o posicionamento dos evangélicos podem influenciar nas políticas ambientais.

"Nós percebemos que não havia debates elaborados sobre preservação do planeta em muitas igrejas", pontua Camila. Segundo ela, a organização tem um papel didático e político, mas tenta juntar os cacos de uma igreja polarizada. Os membros do grupo são ligados à chamada teologia ecológica (ecoteólogos), aos direitos humanos, direitos indígenas e democratização do acesso à terra no Brasil. Logo, nem sempre são benquistos entre seus pares espirituais. "Somos de resistência", diz Camila.

Desde 2018, quando os evangélicos estiveram entre os principais apoiadores da candidatura de Jair Bolsonaro (sem partido), Camila diz que pastores contrários às falas e ações do então candidato foram estimulados a se unir e defender mais abertamente bandeiras progressistas ou à esquerda. Primeiro, porém, era preciso encontrar uma preocupação em comum a ser difundida entre milhares de pessoas e igrejas diferentes pelo Brasil.

Clara Gouvêa/UOL
Clara Gouvêa/UOL Clara Gouvêa/UOL

Os evangélicos: iguais, mas diferentes

Atualmente, há 42 milhões de brasileiros evangélicos, segundo o IBGE, número que os deixa atrás apenas dos católicos em nosso país. A religião divide-se entre doutrinas, correntes teológicas e grandes igrejas com interpretações distintas sobre a prática da fé, Bíblia, política e meio ambiente. As diferenças entre os grupos aumentaram nos últimos anos.

Há igrejas com tantos membros que são contabilizadas como uma religião à parte, como as pentecostais Assembleia de Deus (12 milhões de membros), Universal do Reino de Deus (1,8 milhões de membros), Quadrangular (1,8 milhão de membros). Há ainda um limbo com 5 milhões de pessoas de igrejas pentecostais com linhas teológicas independentes e denominações tradicionais do protestantismo, como as igrejas batistas (3 milhões de membros) e adventistas (1,5 milhão de membros).

Segundo Camila, o tamanho e a diversidade geram análises com estereótipos e mal-entendidos. Para ela, há um elemento racista na crítica contra as igrejas neopentecostais, cujos fiéis são em maioria pretos e vistos erroneamente como incapazes de perceber a (má) intenção, os elos políticos e as agendas conservadoras das grandes igrejas ligadas à teoria da prosperidade. O preconceito se estende entre os próprios evangélicos, afirma ela. A tensão foi extrapolada nas eleições presidenciais de 2018, quando novos e antigos ressentimentos vieram à tona.

Alguns pastores defendem Bolsonaro e candidatos bolsonaristas no púlpito e intimidam membros contrários ao presidente. Camila afirma ter sido ameaçada de morte por líderes religiosos que seriam ligados a grupos criminosos fluminenses depois que ela fez críticas ao governo federal. Ela fugiu do Rio de Janeiro e do país. Por segurança, não revela onde vive e afirma que não foi a única forçada a fugir. "Foram ameaças contra mim e minha família", diz.

Camila formulou uma pesquisa para mostrar que os evangélicos têm objetivos comuns, mesmo perante a hostilidade. Um deles é a natureza. "Queríamos entender como o meio ambiente influencia no voto, o quanto é falado nas igrejas e mapear as opiniões sobre políticas ambientais de Bolsonaro".

Clara Gouvêa/uol Clara Gouvêa/uol

Os "países" evangélicos em um país, segundo o IBGE

  • 42 milhões

    é o número total de evangélicos no Brasil. É 4 vezes a população de Portugal

  • 25 milhões

    de brasileros são pentecostais. São cerca de 7 milhões a mais do que a população total do Chile

  • 7 milhões

    são fiéis de igrejas missionárias (adventista, batista, etc.), número maior do que a população do Rio de Janeiro

  • 9 milhões

    9 milhões de pessoas frequentam igrejas evangélicas sem classificação

  • 12 milhões

    é o número de frequentadores da pentecostal Assembleia de Deus. É quase o mesmo número de moradores da cidade de São Paulo

  • Em 10 anos

    os evangélicos poderão ser 39% da população brasileira e ultrapassar os católicos romanos no país, hoje em 120 milhões de pessoas

Josias sugere foto frente ao rio Tejipió, Recife, como denúncia ambiental

Clara Gouvêa/UOL Clara Gouvêa/UOL

Estatística e fé

De acordo com o levantamento, 60% dos evangélicos não ouvem pregações sobre meio ambiente nas igrejas, mas 67% a consideram muito importante para o desenvolvimento do país. Os neopentecostais, pentecostais e protestantes tradicionais apresentaram índices similares de aprovação à preservação ambiental, com taxas próximas a 70% em todas as regiões brasileiras. O levantamento ouviu 2 mil entrevistados no final de 2020 e os resultados estimularam a criação do grupo ambientalista evangélico.

O pastor Ariovaldo Ramos, membro da coalizão e líder de uma igreja em São Paulo, se converteu em 1968, aos 12 anos, e há três décadas dedica-se à ecoteologia. Na época, as referências de teologia ecológica eram vindas da Europa e poucos núcleos e estudiosos no Brasil se dedicaram ao tema no Brasil. Entre os adeptos, estava a ex-senadora Marina Silva, evangélica e ecóloga, em um trabalho de divulgação quase solitário.

Com o passar dos anos, o ato de ser "sustentável" tornou-se um valor pessoal, um gesto de amor ao próximo e às futuras gerações. Segundo Ariovaldo, o meio ambiente se manteve separado da divisão política entre direita e esquerda tradicionais, uma vez que o "planeta é de todos".

O "empurrãozinho" foram as grandes secas ou tempestades excessivas, as mudanças drásticas de temperatura, o desmatamento e perturbações ambientais cada vez mais inegáveis. O resultado é a criação da coalizão.. "As mudanças climáticas impuseram novamente uma transformação na prática evangélica", diz o pastor.

Segundo Josias Vieira, membro do grupo Nós da Criação, ecoteológo e pastor de uma igreja batista em Recife, a coalizão também deseja apresentar a sustentabilidade como uma defesa da vida em todas as formas. Isso inclui a manutenção de terras indígenas, quilombolas e a promoção de justiça para a população minorizada no país e no mundo.

"Se é importante cuidar das coisas de Deus, na prática é importante mostrar que tantas terras nas mãos de poucas pessoas geram mortes, chacinas. [É importante] se opor à invasão de terras indígenas", diz.

Carina Wallauer/UOL
"Não vejo incompatibilidade entre o que a ciência diz e aquilo que desde sempre a cosmovisão da fé a qual eu professo tem dito"

Marina Silva

Uma ecoevangélica referência

Nascida no Acre, Marina Silva é evangélica e conhecida pela defesa ecológica e foi amiga do seringueiro Chico Mendes, assassinado em 1988. Como Mendes, a ex-senadora uniu a defesa da floresta aos direitos humanos - e acrescentou a fé cristã.

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