Entre rural e urbano

Estilista Ronaldo Fraga coloca na passarela produção de artesãos mineiros afetados por rompimento de barragem

LIA HAMA Colaboração para Ecoa, de São Paulo Naty Torres/Divulgação

"No meu trabalho como designer e estilista, sigo a cartilha do meu mentor intelectual, o escritor Mário de Andrade (1893-1945). Numa série de relatos de viagens pelo país nos anos 1920 reunidos no livro 'O Turista Aprendiz', ele apontou a necessidade de se construir pontes entre os diferentes Brasis. É o que eu procuro fazer por meio do meu ofício: a moda.

Já fiz mais de 50 desfiles desde o início da minha carreira, em meados dos anos 90. Assumi o compromisso de servir como uma ponte entre as pequenas comunidades de artesãos e o mercado consumidor das grandes metrópoles; entre os produtos feitos à mão e a indústria; entre o Brasil rural e o urbano. Acredito que é nessa travessia que podemos imprimir uma identidade ao design brasileiro.

Faz tempo que digo que a moda precisa ir além da roupa. Nesse último desfile no São Paulo Fashion Week, 'Zuzu vive', além dos vestidos, mostrei uma mesa com produtos que desenvolvi com artesãos atingidos pelo rompimento da barragem da mineradora Samarco, em 2015. Dizem que eu ajudo essas comunidades, mas, na verdade, elas são o meu oxigênio. Então é uma via de mão dupla, em que os dois lados saem fortalecidos da parceria. "

naty torres naty torres

Minha casa em mim

Os produtos de gastronomia e decoração exibidos no desfile "Zuzu vive, na SPFW", de Ronaldo Fraga, foram desenvolvidos pelo projeto Minha Casa em Mim, em Minas Gerais. Trata-se de uma iniciativa da Associação de Culturas Gerais (ACG), entidade que promove a produção associada e a economia criativa, e da Fundação Renova, responsável por ações de reparação dos danos causados pelo rompimento da barragem da Samarco. Baseado na capital mineira, Belo Horizonte, o estilista foi convidado para ser o curador do projeto, que teve a participação de 175 artesãos de Mariana, Ouro Preto e Barra Longa. O objetivo foi gerar emprego, renda e autoestima nas comunidades atingidas pela tragédia.

O primeiro passo do estilista e sua equipe foi fazer uma pesquisa de campo para conhecer o trabalho dos 13 grupos de artesãos que fazem parte do projeto."Meu papel foi estabelecer pontes para que eles desenhassem produtos que expressassem a alma da cultura mineira - uma cultura que alimenta, que afaga e que acolhe", diz Ronaldo.

Fraga é mineiro, nascido e criado em BH. Perdeu os pais cedo; quando o estilista tinha 11 anos, ambos faleceram de câncer. Ronaldo, então, passou a viver com seus quatro irmãos (Roney, Robson, Rosilene e Rodrigo), com a ajuda de familiares e vizinhos. Durante a infância simples, quando só vestia roupas doadas muitos números maiores que o seu, amava desenhar. A paixão pela arte o levou a cursar moda no Senac.

Naty Torres/Divulgacão Naty Torres/Divulgacão
Ze Takahashi/ Agência Fotosite/Ze Takahashi/ Agência Fotosite

Tradição e modernidade

Com base na pesquisa da fauna, da flora e da arquitetura da região, o estilista criou os desenhos a serem bordados em almofadas, panos de prato e guardanapos pelos grupos de artesãs locais. Em alguns casos, foi preciso modificar a tabela nutricional dos produtos. Uma bebida feita de jabuticabas da região teve a quantidade de açúcar reduzida e foi batizada de "Vinho de Jabuticabas Únicas". "Ficou mais saboroso que o vinho do Porto", garante o estilista.

Em outros casos, apenas os nomes e embalagens dos produtos foram modificados, de forma a torná-los mais atraentes. Foi o caso do tradicional doce de abóbora com coco, que ganhou um rótulo com o desenho de uma carruagem com abóbora, e das famosas rosquinhas da região, que receberam o nome de "Rosquinhas Secretas da Rainha". Um sabão em pó artesanal produzido com óleo reciclado que "serve para tudo" foi batizado de "Sabão Mágico".

Não foi a primeira vez que Ronaldo uniu causas sociais com o mundo da moda. Em 2015, seu desfile "Sereias da Penha" contava com biojoias produzidas com escama de peixe. Essas joias feitas à base de material orgânico são produzidas por artesãs de uma comunidade de pescadores em João Pessoa (PB). Antes de produzirem para o desfile, elas tiveram workshops de capacitação com Fraga.

Já em 2016, o desfile de Ronaldo na São Paulo Fashion Week, estrelado apenas por modelos transexuais, denunciava o fato de o Brasil ser o país que mais mata pessoas trans no mundo.

naty torres naty torres

No meio do caminho, tinha uma pandemia

Quando estavam no meio do processo de criação, os encontros ao vivo tiveram que ser suspensos por causa da pandemia da covid-19. Cada artesão passou a trabalhar em casa e as reuniões começaram a ser realizadas por vídeochamadas. "Eu gravava vídeos toda semana. Mandava mensagens para manter aceso o desejo de fazer deles. Aos poucos, o pessoal que nunca tinha ouvido falar em Skype ou Zoom começou a usar as plataformas para se comunicar", conta Ronaldo.

Com apoio da ACG, foi desenvolvido um site para a comercialização dos produtos. As entregas são feitas em todo o Brasil. Para muitos dos empreendedores que integram o grupo, é a primeira vez que seus artigos são vendidos pela internet e atingem um público que vai além dos turistas que visitam as cidades históricas mineiras.

Os desenhos criados por Ronaldo foram doados aos artesãos, que poderão reutilizá-los em outras peças no futuro. A ideia é que após o término do projeto, previsto para março de 2021, eles sejam capazes de aplicar o conhecimento adquirido em outras situações. "O projeto transforma o olhar individual de cada um. Se a pessoa sair do grupo ou mudar de cidade, vai levar esse conhecimento com ela."

Segundo Ronaldo, é preciso enxergar poesia em terreno árido. "Nós sabemos da desgraça que atingiu Mariana por causa da lama derramada pela Samarco. Mas as pessoas precisam ressignificar suas vidas. É fundamental ver as sementes que estão naquela região e que precisam ser regadas para que se transformem em árvores frondosas", diz o estilista, que defende que a metodologia do projeto seja replicada em outros lugares do país.

O mais bacana desse trabalho de ressignificação do Ronaldo é que ele revela para o artesão aquilo que já estava dentro dele e ele nem enxergava.

Mirian Rocha, presidente da ACG.

Divulgação

"Ronaldo fez a gente enxergar a nossa riqueza"

Moradora de Mariana (MG), Viviane Carneiro da Silva conta que aprendeu a enxergar a riqueza de sua cultura ao entrar em contato com Ronaldo Fraga. "Ele provocou um despertar em nós. Antes buscávamos na internet as imagens para usar em nossas peças. Hoje a inspiração vem do que está à nossa volta", diz a artesã de 42 anos, que passou a bordar as flores do Mestre Ataíde (1762-1830) que enfeitam os tetos das igrejas da cidade histórica. A cartela de cores do pintor também é usada na produção.

O crochê é uma tradição passada de geração em geração. "Minha bisavó portuguesa ensinou a minha avó, que ensinou a minha mãe, que me ensinou." Outra receita centenária comercializada pela família de Viviane é o doce de abóbora com coco, que ganhou uma nova embalagem desenhada pelo estilista. "Ronaldo deu um puxão de orelha. Ele disse que a embalagem anterior não tinha identidade própria, parecia a de um produto industrializado."

A artesã mineira conta que as vendas pela internet têm crescido e comemora a encomenda no valor de R$ 2.000 vinda do Rio de Janeiro. O pedido foi feito por Celia Domingues, presidente da Amebras (Associação de Mulheres Empreendedoras do Brasil). "Ela vai vender nossos produtos nos quiosques dela. Com a ajuda do Ronaldo, já estamos ficando famosinhas - e isso é só o começo."

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