Amazônia, centro do mundo

Eliane Brum conta percurso de mudança para Altamira e amplifica vozes que devem ser ouvidas na crise climática

Juliana Domingos de Lima De Ecoa, em São Paulo (SP) Lilo Clareto/Divulgação

Desde que se transferiu de São Paulo para Altamira (PA), em 2017, a jornalista Eliane Brum sente dentro de si um banzeiro. Ela explica que banzeiro é como o povo do Xingu chama o redemoinho do rio, a força circular que vira os barcos feito brinquedo, e também descreve o turbilhão pessoal que tomou conta dela desde que decidiu olhar para o Brasil a partir do seu centro: o coração da Amazônia.

No novo livro, "Banzeiro òkòtó: uma viagem à Amazônia Centro do Mundo", Brum denuncia a devastação crescente da floresta e os impactos do desflorestamento em seus habitantes tradicionais, como ribeirinhos, quilombolas e indígenas. Seu percurso se conecta com temas como a crise climática e questões de gênero, raça e classe. O livro traz imagens feitas por Lilo Clareto, companheiro de reportagem da jornalista durante 20 anos, vítima da covid-19 em 2021.

De sua casa em Altamira, ela falou a Ecoa sobre os problemas e potências que observa a partir desse lugar, das lutas e urgências que precisam movimentar as pessoas para salvar a Floresta Amazônica e o planeta.

Lilo Clareto/Divulgação

Você se transferiu para Altamira depois da construção de Belo Monte. O que levou a essa decisão?

Por muitos anos, Altamira era só um lugar de passagem, de descer do avião e imediatamente ir pra floresta, porque eu não me interessava pela cidade. Já acompanhava Belo Monte desde 2011. Foi aí que fui conhecendo a cidade, porque fui acompanhando famílias ribeirinhas que foram expulsas pela hidrelétrica pra periferia da cidade, pra uma casa que elas compravam ou alugavam com dinheiro de indenização, ou pros RUCs, os reassentamentos urbanos coletivos, que são os bairros padronizados que a Norte Energia construiu. Fui acompanhando o que eram pessoas da floresta serem arrancadas e jogadas na periferia da cidade, com os laços comunitários despedaçados.

Comecei a conhecer a cidade também pelo olhar dessas pessoas que estavam vivendo pela primeira vez na periferia de uma cidade, pela primeira vez tinham que pagar conta de luz, pagar por comida, por gás. Nada disso elas conheciam. Não tinham nem onde amarrar uma rede nessas casas, não sabiam onde estavam os vizinhos, e eram assaltadas — logo os RUCs viraram enclaves de violência por conta do crime organizado. Altamira virou a cidade mais violenta do Brasil, segundo o Atlas da Violência de 2017. É a mais violenta da Amazônia ainda hoje.

Mas quando decidi me mudar, foi por uma questão de coerência mesmo, porque eu, assim como outros, defendia e defendo que, num momento de emergência climática, a gente precisa deslocar os conceitos do que é centro e o que é periferia. Os centros são os enclaves da natureza, os oceanos, as florestas tropicais — a Amazônia é a maior de todas elas. Se a gente não entender que esses são os centros do nosso mundo hoje, a gente não vai conseguir enfrentar a emergência climática, a sexta extinção em massa de espécies.

Esse foi o sentido consciente da minha mudança para Altamira, com uma ideia de que o centro do mundo não é só uma questão geopolítica, mas de quem são aqueles que precisam liderar, que pensamento precisa liderar o enfrentamento da emergência climática. Certamente não é o pensamento ocidental, branco, de origem europeia, masculino, binário, patriarcal que nos trouxe até o abismo. A gente precisa aprender com os povos-natureza, que vivem na natureza, como natureza há milhares de anos sem destruí-la.

Morando na cidade eu entendi que, para entender a Amazônia, eu precisava entender a cidade amazônica. Porque elas são ruínas da floresta num sentido profundo — não só as árvores desmatadas, os não humanos assassinados, mas também os humanos convertidos em pobres e arrancados de tudo que sabiam de si. Pra atuar em defesa da Amazônia no sentido amplo, precisa entender a cidade e fazer política pública pras pessoas que foram desflorestadas.

Lilo Clareto/Divulgação Lilo Clareto/Divulgação

Quais caminhos e soluções a resistência em Altamira aponta para o Brasil?

Eu falo no livro que vejo Altamira como uma espécie de batedor. A minha hipótese, por tudo que observo aqui há tantos anos, é que Belo Monte teve o impacto de uma crise climática localizada. Em pouquíssimos anos ela devastou tudo, secou uma parte do rio, uma empresa controla a água, as pessoas foram expulsas pras periferias em casas que não têm nada a ver com elas, sem poder pescar, os peixes estão contaminados e a cidade ficou mais violenta.

Altamira pode nos mostrar, infelizmente, o que possivelmente vai acontecer — já está acontecendo em outros lugares que estão sofrendo impactos desse nível — a cada ano que a crise climática se acentua.

O Brasil como Estado-nação é fundado sobre corpos humanos, primeiro dos indígenas, depois dos negros escravizados e esse é um fato. Mas a gente precisa olhar pro Brasil também como um enorme exemplo de resistência dessas populações, e isso está muito presente aqui em Altamira.

A alegria de estar junto, de fazer comunidade, de lutar pelo comum, é um instrumento de resistência poderoso, é a alegria como potência de agir. Essas tantas transgressões, como a própria história que eu conto no livro do que os ribeirinhos fizeram com a opressão deles, nos apontam caminhos.

Acho que a esperança é supervalorizada, superestimada. A gente está num momento em que a esperança é um luxo que a gente não tem. Nesse sentido eu concordo muito com a Greta Thunberg quando ela diz "eu não quero a sua esperança, eu quero que tu entre em pânico como eu estou, porque a nossa casa está pegando fogo".

A gente tem que agir. Se a gente quiser ter alguma chance de não viver num planeta muito hostil para a nossa espécie e várias outras, a gente vai ter que se transformar em outro tipo de gente muito rapidamente.

Eliane Brum, jornalista e escritora

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Como a reflexão sobre o lugar da branquitude está presente no seu trabalho hoje? Por que ela é necessária?

Porque a condição de branca me coloca várias questões e determinações. Escrevi uma coluna uma vez [dizendo] que o melhor branco só consegue ser um bom sinhozinho. E é isso, porque posso afirmar que não sou racista, mas a minha vantagem num país estruturalmente racista é real, é determinante.

Eu tive mais acesso a várias coisas, tenho menos chance de ter algumas doenças, tenho mais expectativa de vida porque sou branca. E as pessoas que fazem os trabalhos pior remunerados ao redor de mim são pretas. Isso, para mim, sempre foi muito duro e em certos momentos da minha vida se tornou muito insuportável. Eu chamo isso de viver violentamente. Eu não sou violenta — eu, indivíduo, Eliane. Mas eu vivo violentamente nesse país porque sou branca.

Acho muito importante a gente ter responsabilidade coletiva, o que é diferente de culpa. Gosto de como a Hannah Arendt vê a responsabilidade coletiva, de que tu, indivíduo, não cometeu os crimes que teus antepassados fizeram, mas tu é responsável por eles. Assim como a gente tem os benefícios do que os nossos que vieram antes fizeram, a gente também tem que ter responsabilidade pelo que eles fizeram antes de nós.

Nós todos temos que ser responsáveis coletivamente pelo racismo estrutural, pela violência que está aí. E a mesma coisa com a questão dos indígenas. Sou descendente de imigrantes italianos que ocuparam lugares que antes eram terras indígenas no Rio Grande do Sul. Tem toda uma longa história que eu carrego e sou responsável por ela. Não tenho culpa como indivíduo, mas sou responsável.

O meu processo é um processo que coloco entre aspas como desbranqueamento, que é o que eu busco. Isso não quer dizer que eu vou virar negra ou indígena. Não tem como, eu sempre vou ser branca. Mas busco desbranquear o meu pensamento de matriz ocidental, europeia, que determinou as minhas leituras, enfim, desbranquear a forma como vejo o mundo.

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Pensando no cenário atual de destruição galopante da Amazônia e emergência climática, quais saídas você enxerga a partir da sua vivência com a floresta nesses últimos anos?

Com Bolsonaro, não tem nenhuma chance. Ele precisa ser tirado do poder pelos instrumentos da Constituição. O fato disso não acontecer, apesar de ele estar levando a Amazônia pro ponto de não retorno, apesar dos mais de 600 mil mortos por covid-19, em que há comprovada responsabilidade direta do governo, apesar de uma série de horrores que a gente pode continuar falando aqui por horas, o fato de ele não sofrer um processo de impeachment mostra que o problema precede o Bolsonaro e vai muito além dele.

Então, só nos resta lutar. E é o que as pessoas aqui estão fazendo, estão lutando por todos nós. As pessoas seguem criando formas de viver, seguem lutando para manter a floresta em pé e nos próximos anos vai ser ainda mais difícil.

O nosso planeta está aquecendo e esse aquecimento é causado por ação humana. A gente está vivendo a sexta extinção em massa de espécies — a primeira por ação humana. E esse tema é tratado como algo à parte e não como algo que atravessa absolutamente tudo. A morfologia e o clima do planeta estão mudando e esse ainda não é o tema mais importante!

A gente está vivendo muitas coisas inéditas, desafiadoras e as pessoas estão em uma espécie de paralisia.

Meu livro também conta um percurso com a expectativa de fazer minha pequena parte para que as pessoas se movam por algo que é a nossa própria vida. A gente está em risco de extinção. Se a gente não se mover por causa disso, vai se mover pelo quê?

Eliane Brum, jornalista e escritora

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