À espera de uma vida

Seis elefantes que estão há décadas em zoológicos na Argentina aguardam transferência para santuário no MT

Luciana Taddeo Colaboração para Ecoa, de Buenos Aires (ARG) Divulgação

Depois da travessia, em plena pandemia, da elefanta Mara do ex-zoológico de Palermo, em Buenos Aires, até o Santuário de Elefantes Brasil, na Chapada dos Guimarães, outros seis elefantes ainda esperam na Argentina o momento de cruzar a fronteira para finalmente voltarem a viver como elefantes, ou ter, pela primeira vez, essa chance depois de décadas.

As primeiras da fila terão que percorrer mais de 3 mil km entre Mendoza e o cerrado brasileiro. São Pocha, uma elefanta de origem indiana de cerca de 55 anos, e sua filha Guillermina, que nasceu no ex-zoológico da cidade argentina em 1998. Elas devem ser transportadas simultaneamente, ainda neste semestre, em duas caixas, que serão levadas por dois caminhões, até o Brasil.

No ex-zoológico - hoje transformado em um Ecoparque - em que estão, também esperam a africana Kenya, de 39 anos, e o asiático Tamy, de 50, que é o pai da Guillermina. Em Buenos Aires, lugar de onde partiu Mara e que também foi convertido em Ecoparque após o fechamento do zoológico de Palermo, esperam as elefantas sul-africanas Pupy e Kuky, que têm cerca de 30 anos.

Além destes seis que têm acordo de doação com o santuário, uma sétima elefanta poderia ir para o Brasil: a asiática Sharima. Ela está no polêmico zoológico de Luján, conhecido por permitir que visitantes entrassem nas jaulas e tocassem em animais selvagens, como leões. O local foi fechado preventivamente na última segunda-feira (14) pelo governo argentino, devido a denúncias de supostos maus-tratos a animais e irregularidades.

O secretário de Controle e Monitoramento Ambiental, Sergio Federovisky, foi pessoalmente ao local para o fechamento e houve confusão com funcionários do zoológico, que alegam "difamação" e que o contato dos visitantes com a fauna não acontece há alguns anos. A Fundação Franz Weber, que acompanha a situação dos elefantes em cativeiro no país, chegou a afirmar que o diretor do local estava interessado em saber do santuário e aberto ao diálogo para um possível destino da elefanta, mas que recentemente não respondeu mensagens com pedidos de que um veterinário a examinasse.

Antes dessa fila andar, há animais também no Brasil, aguardando a mudança. A próxima a integrar a manada do santuário é Bambi, uma elefanta que já foi explorada por um circo e até encontrada com uma pata acorrentada e rodeada por cercas elétricas. Ela passou temporariamente pelo zoológico do Leme (SP), e está no de Ribeiro Preto (SP), aguardando a transferência, que foi autorizada pela justiça paulista em agosto.

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Fila de espera

  • 1

    Pocha (asiática)

    Idade estimada: 55 anos. Chegada à Mendoza em 1968, com cerca de 3 anos. Vinda do zoológico alemão Tierpark Hagenbeck por troca. Nasceu na Índia.

  • 2

    Guillermina (asiática)

    Idade: 21 anos. Nasceu no ex-zoológico de Mendoza em 1998. É filha de Pocha.

  • 3

    Kenya (africana)

    Idade: 39 anos. Chegaram à Mendoza em 1985, com cerca de 4 anos. Vieram do zoológico alemão Tierpark Hagenbeck por troca.

  • 4

    Puppy e Kuky (africanas)

    Idade estimada: 31 anos. Chegaram à Argentina em 1993, com cerca de 4 anos. Vieram do Parque Nacional Kruger, na África do Sul, após terem suas mães assassinadas.

  • 5

    Tamy (asiático)

    Idade: 50 anos. Chegou à Mendoza em 1984, com 14 anos. Foi doado ao ex-zoológico de Mendoza por um famoso circo mexicano (Circo de los Hermanos Gasca)

Reprodução

Um passado comum

"Una elefantita para el zoo", intitulava a nota o jornal mendocino Los Andes de 5 de dezembro de 1968 sobre a chegada de Pocha - que ainda não tinha esse nome - ao zoológico da cidade. Ela media 1,70 m e estima-se - hoje— que tivesse cerca de três anos quando o barco a vapor que a trouxe da Alemanha atracou na Argentina.

Uma aquisição a um preço "muito elevado" para a época: Pocha custou 3.500 dólares, que foram pagos com um camelo, 40 emas, 62 lebres patagônicas, 18 condores, 16 patos, entre outros animais, para o Tierpark Hagenbeck, mesmo zoológico alemão do qual Mara foi comprada. O histórico do animal teve que ser recuperada para solicitar as autorizações para as transferências, já que os elefantes são espécies em perigo de extinção, e para movimentá-los é preciso comprovar que não derivam do tráfico ilegal.

"É possível que elas tenham algum tipo de vínculo familiar", diz o argentino Leandro Fruitos sobre Pocha e Mara. Segundo ele, que trabalha na Fundação Franz Weber e colabora com as transferências desses animais, ambas chegaram à Argentina na mesma época - calcula-se que a Mara tenha desembarcado no país no começo dos anos 70 - e o cálculo das possíveis idades de ambas levaram a suspeitas de que elas já se cruzaram ou até de que possam ser parentes.

"Por isso consideramos tão valioso que todos os elefantes vão ao Santuário do Brasil", diz Fruitos, explicando que nas décadas de 1960 e 70, muitos elefantes foram retirados da natureza e levados para colônias de reprodução. Os filhotes eram vendidos para zoológicos europeus e depois trocados em transações com zoológicos ou circos do mundo todo.

Segundo Fruitos, até a década de 1980, muitos elefantes chegaram à América Latina comprados ou trocados para alimentar essa indústria circense, muito ativa na época. "Todos chegaram mais ou menos nas mesmas décadas e por isso achamos que têm muito em comum", explica, dizendo que o santuário, único da América do Sul para o resgate de elefantes, possibilita o reencontro entre animais da mesma origem e "provavelmente" a reconstrução de laços familiares.

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Memória de elefante

A suspeita de um passado comum também paira sobre Rana dada a festividade das vocalizações e roncos com que ela se comunicou com Mara quando se viram. "Rana sente uma alegria tão grande que não consegue controlar", escreveu o santuário, dizendo ter outros vídeos onde é possível verificar seu comportamento com outros elefantes. Rana esteve em diversos picadeiros e acabou doada ao santuário por um zoológico de Sergipe. "O que ocorreu aqui foi muito diferente, o que nos leva a pensar que, talvez, seus caminhos tenham se cruzado em algum momento no passado", postaram.

Mas se, aparentemente, a expressão "memória de elefante" faz jus à realidade, os mais de 30 anos de experiência do fundador do santuário, Scott Blais, são um convite a controlar expectativas. Segundo ele, não é possível ter certeza de que uma reação entusiasmada signifique uma convivência anterior. "Já vimos festas de boas-vindas incríveis para recém-chegados e que não existia possibilidade de que os caminhos desses elefantes já tivessem se cruzado", diz.

Por telefone, com a voz se sobrepondo ao som de muitos pássaros e ao canto insistente de um galo, Blais - quando questionado sobre um possível parentesco entre Mara e outras elefantas - lembrou que no Santuário do Tennessee, do qual também foi fundador, exames de DNA foram realizados em um grupo no qual se percebiam semelhanças físicas e padrões de comportamento. Mas os resultados foram contrários ao esperado: "No fim nenhum era parente", relata, explicando ser muito difícil determinar a real origem dos elefantes, que muitas vezes nasceram em diferentes países asiáticos e foram levados para um mesmo centro de exportação.

"Se foi um reencontro, é um adicional bonito, mas para mim o importante é a oportunidade que elas têm agora, depois de 20, 30 ou 40 anos de uma vida solitária, de explorar o que é ser um elefante", defende. Para ele, é preciso reduzir as expectativas de que os animais tenham reações que façam os seres humanos felizes. "Vamos apoiá-las, sejam quais forem suas reações. Não achamos justo depositar essa expectativa nelas, que já lidaram com expectativas durante décadas. Essa é a jornada delas agora", conclui.

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Voltar a viver como elefante

Quando chegou ao Brasil em maio deste ano, Mara descascava bananas em vez de comê-las inteiras. Como o gesto, que a equipe do santuário nunca tinha visto em elefantes, foi logo abandonado, os tratadores acreditam que ela fazia isso pela monotonia na qual vivia no Ecoparque de Buenos Aires, onde ficava separada das africanas Pupy e Kuky — elefantes de origem asiática e africana não se dão bem e costumam ser mantidos separados.

Com as novas amigas do santuário e com a natureza, no entanto, ela já "não queria mais perder nem dois segundos", descreveu o santuário em um dos frequentes posts sobre o cotidiano das elefantas. Para Blais, Mara estava "faminta" por interação social e conexão emocional - algo que humanos, mesmo com a melhor das intenções, não podem dar para os elefantes.

A possibilidade de que os animais voltem a conviver com outros e expressem comportamentos naturais, que acabam oprimidos ou alterados na vida em cativeiro, é um dos objetivos do Santuário de Elefantes Brasil. Único da América do Sul, o local foi criado em 1,1 mil hectares particulares no cerrado mato-grossense, para resgatar e dar condições de vida adequadas para elefantes em cativeiro da região.

Muito comunicativos, os elefantes usam vocalizações para chamar os demais membros da manada a quilômetros de distância. Manifestações que caem em desuso em espaços pequenos e acabam sendo alteradas com os anos em cativeiro. Blais lembra que no Tennessee, uma pessoa que cuidou por 15 anos de uma elefanta, e a visitou 6 meses depois de sua chegada ao santuário, quase não reconheceu o animal. "Ela disse que nunca tinha visto aquelas vocalizações, e que percebeu que o zoológico impedia a elefanta de ser quem realmente era", lembra.

Um impacto, que segundo o fundador do santuário, pode ser percebido "na expressão dos olhos, na tristeza, na depressão" dos elefantes. "No santuário, nós vemos a reversão disso. A Mara está aqui há apenas alguns meses, e você já vê no rosto dela um indivíduo completamente diferente", diz Blais.

Operação Resgate

  • População

    Há cerca de 50 elefantes na América do Sul, mais de 20 no Brasil

  • Risco

    O Santuário já recebeu 6 elefantes; 2 morreram por complicações de saúde

  • Fila

    Ordem de transferência dos elefantes foi estabelecida por condições de saúde e idade

  • Na frente

    As fêmeas asiáticas, mais exploradas por serem menores e mais dóceis, são as primeiras transferidas. Em seguida, serão transportadas as fêmeas africanas

  • No fim

    O macho asiático será o último a ir para o Brasil

  • Cuidados especiais

    Doenças pela vida em cativeiro: infecções nas patas; problemas dentais, estomacais, intestinais, hepáticos e renais.

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Por isso insistimos tanto para os zoológicos decidirem o mais rápido possível [sobre mandá-los para o santuário], porque cada mês, cada ano conta para esses elefantes, e o quanto antes eles forem para um ambiente onde tenham melhor dieta, cuidados, espaço para explorar para ajudar em problemas emocionais e psicológicos, maiores as chances de recuperação

Scott Blais, fundador do santuário no Mato Grosso

Divulgação

Engenheiros da floresta

O santuário tem atualmente uma área preparada para receber até 10 elefantes asiáticas e aguarda licenças da secretaria de Meio Ambiente do Mato Grosso para construir o recinto das africanas fêmeas, que receberá Kenya, Pupy e Kuky. Depois, será iniciada a construção para o dos machos.

Os recintos de 28 hectares para esses grupos ao longo da enorme área do santuário são delimitados por barras de aço que aguentam investidas dos elefantes, mas permitem a livre circulação dos animais do cerrado. A separação, no entanto, é importante para separar as populações de elefantes.

Segundo Blais, as asiáticas são mais analíticas, sutis e passivas, e podem se sentir intimidadas e se sentir inseguras com as africanas, maiores e mais expressivas. "As asiáticas tendem a observar antes de responder, enquanto as africanas expressam imediatamente se não gostam de algo, e são mais físicas, interagem com empurrões, trombadas, mais vocalizações. Quando brincam, as asiáticas, podem chegar a deitar, mas costumam girar, segurar a perna do outro elefante, girar em círculos, parar e segurar o outro de novo. É bem doce. As africanas se jogam na grama, levantam a pata, é tromba e orelha para todo lado, bem melodramáticas. Isso para as asiáticas é tipo 'meu deus, o que está acontecendo com aquela elefanta maluca?'", descreve.

Apesar da separação, o diretor do santuário e biólogo Daniel Moura explica que a presença dos elefantes é benéfica para a vegetação. "Parte desta fazenda era destinada à pecuária e era bem impactada, o recinto das asiáticas inclusive, e hoje está completamente recuperada pela presença dos elefantes e ausência do gado", diz, lembrando que o Mato Grosso é o maior produtor de carne bovina do país.

Segundo ele, os elefantes são considerados "engenheiros das florestas", verdadeiros jardineiros naturais que espalham uma boa quantidade de sementes e matéria orgânica, favorecendo o crescimento de novas vegetações. Segundo o biólogo, pelas fezes dos elefantes outros animais também são atraídos para o local.

Queimadas no Pantanal

Claro que tem um risco. Mas tanto nós como as pessoas da região estamos muito atentos. Temos equipamentos similares aos dos bombeiros para combater o fogo, o que já tivemos que fazer no passado, e normalmente combatemos bem antes de chegar ao santuário. A região topográfica daqui é diversa e boa para desacelerar o avanço das chamas, então temos tempo para combater e extinguir o fogo antes de chegar ao santuário. E também estamos preparados para a pior das hipóteses. Teríamos como levar os elefantes para um local seguro no caso de algo catastrófico acontecer

Scott Blais, presidente do Santuário de Elefantes Brasil.

Mudança de paradigma

"Estamos assistindo a um milagre", diz Malala Fontán, coordenadora do grupo ativista SinZoo, uma das mais importantes organizações na luta contra os zoológicos na Argentina. Há cerca de uma década, o grupo começou a organizar atos e abaixo-assinados, denunciando as condições dos animais em cativeiro e pedindo o fim da sua exposição.

"No começo não éramos amáveis, gritávamos, éramos violentos, mas depois começamos a pedir que as pessoas olhassem os animais nos olhos, sentissem os cheiros do zoológico, de xixi, morte, sujeira, que vissem como os chimpanzés estavam carecas porque arrancavam seus pelos e comiam seu vômito e cocô. Explicávamos que os animais não têm essas condutas na natureza, que eles estavam sofrendo em cativeiro", conta Fontán.

A agrupação também começou a denunciar as mortes de animais, como a do urso polar Winner, que não aguentou o calor no Natal de 2012 no então zoológico de Palermo, em Buenos Aires. A pauta foi ganhando espaço, a ponto dos próprios empregados se envolverem, informando quando um animal morria.

Em 2015, em uma convocatória de "abraço ao zoológico", 2500 pessoas apareceram. "Não eram só ativistas, eram vizinhos do zoológico, idosos, gente que estava lá com 35 graus de calor, garrafinha de água e boné", diz, lembrando que todos deram as mãos e conseguiram abraçar os 2 km de perímetro do local.

Neste contexto, a justiça argentina chegou a conceder habeas corpus para a orangotanga Sandra e a chimpanzé Cecilia, que tiveram representação legal de ativistas, e acabaram encaminhadas para um santuário de símios dos Estados Unidos e o de Grandes Primatas, em Sorocaba (SP), respectivamente. Por outro lado, os zoológicos de Buenos Aires e Mendoza se converteram em Ecoparques e muitos animais já foram transferidos.

"É impressionante como ela está bem", diz sobre Mara, ressaltando que a famosa elefanta já não faz o movimento circular com a cabeça que repetia quando estava em Palermo. "Há 10 anos, quando falávamos da libertação de animais, isso era um sonho. Hoje é realidade", comemora Fontán.

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Em ritmo de elefante

Pocha, quando chegou a Mendoza, negou-se a sair da caixa em que viajou. Houve súplicas, oferta de "saborosas alfaces" e água, mas ela resistiu e acabou sendo alvo de "numerosos empurrões e uns suaves puxões de orelhas" até entrar na que seria sua moradia até hoje. Meio século depois, a chegada no Brasil deve ser bem diferente. Mara abandonou a caixa no seu ritmo, a passos lentos, com retrocessos e demorados banhos de terra com a tromba, enquanto sentia cheiros dos outros elefantes e ganhava segurança.

O método utilizado pelo santuário é o de "reforço positivo", em que cada ação colaborativa é recompensada com palavras de incentivo e suas frutas ou cereais favoritos. Se dão sinais de não estarem confortáveis, o processo é interrompido. "Sempre vamos no tempo deles, para haver confiança mútua, respeitando o espaço do animal", explica Moura.

Como o processo de transferência demorou, Pocha e Guillermina já foram treinadas anteriormente para a prévia da viagem, quando terão que passar por injeções, lavagem de tromba e exames de sangue, aclimatação à caixa de transporte e uma quarentena - não relacionada ao coronavírus - de 30 dias, que começará quando as autorizações pendentes para a viagem forem emitidas.

Quando chegarem ao Mato Grosso, elas que decidirão quando sair da caixa. Neste momento, Guillermina vai conhecer pela primeira vez, em seus 22 anos de vida, a sensação de pisar em um chão de terra, em vez do concreto do ex-zoológico de Mendoza, que o fundador do santuário descreve como "um dos piores" que viu e "catastrófico para elefantes".

"Vai ser um novo mundo para ela, e também estou animado pela Pocha, que vai poder ver a filha ter uma vida diferente. Talvez seja difícil a adaptação da Guillermina, porque é algo muito diferente, mas sabemos que mesmo se os primeiros dias forem difíceis, ainda será melhor do que se ela ficasse naquele zoológico para o resto da vida", conclui.

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