Lia, esperança

Ela evitou despejo de 600 famílias de área de preservação ambiental e tornou bairro modelo de sustentabilidade

Eduardo Ribeiro Colaboração para Ecoa, em São Paulo Keiny Andrade/UOL

Em 2006, descobri que havia um processo para tirar todas as famílas do bairro. Segundo o Ministério do Meio Ambiente, as famílias que estavam aqui degradavam o espaço, que é de preservação ambiental.

Eu olhava e pensava: "Se Deus colocou o homem e a mulher no paraíso, por que hoje o povo quer tirar as pessoas de uma área de preservação?"

Os índios moram dentro de uma área de preservação e não destroem a mata, não é isso?

Falei para o promotor: "Se eles estão destruindo é porque não sabem que estão. Certas pessoas ficam fazendo coisas erradas porque não têm alguém para ir lá e levar consciência para elas.

Em vez de o senhor ficar falando que eles estão errados, porque não tenta mostrar o erro deles e ensinar o que eles têm que fazer para consertar?", disse.

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Sob a liderança de Maria de Lourdes Andrade de Souza, 57 anos, conhecida na Vila Nova Esperança como Lia, cerca de três mil moradores que compõem as 600 famílias do bairro da Zona Oeste de São Paulo, nas proximidades do município de Taboão da Serra, hoje vivem em moldes sustentáveis, com energia elétrica regularizada e coleta seletiva de lixo.

Uma realidade totalmente diferente do que Lia encontrou ali quando chegou para morar, em 2003. De um local com fiação exposta — os 'gatos' - e sem asfalto, a mobilização da moradora na comunidade gerou frutos para além da infraestrutura básica: cisterna, biblioteca, cozinha coletiva, brinquedoteca.

A ação rendeu a Lia, em 2014, o Prêmio Milton Santos na categoria Consolidação de Direitos Territoriais e Culturais, outorgado pela Câmara Municipal de São Paulo.

O que ela fez de diferente? Usou a própria experiência, ouviu quem vive na região e somou conhecimentos. "A prefeitura, quando vai urbanizar uma favela, não chama o morador para opinar sobre como ele quer a casa dele", diz ela. "Uma coisa que acho muito linda do ser humano é quando alguém sabe de algo e não guarda para si. Se você sabe de algo legal, passa para o teu vizinho."

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Começo da mudança

Lia de Lourdes é natural de Itaberaba, Bahia. Veio para São Paulo em 1994, fugida de um primeiro marido opressivo com quem se casara muito nova, antes de completar 16 anos. Na capital, até virar líder comunitária, foi costureira, florista e caixa de supermercado. Em 1996, conheceu o atual marido, Wagner, e foi por meio dele que acabou tomando o inicial contato, dois anos depois, com a Vila Nova Esperança. "A mãe do Wagner se mudou para cá, e foi assim que entrei pela primeira vez numa favela. Eu tinha medo. As pessoas me falavam muita coisa ruim da comunidade", conta ela.

"A gente tinha um apartamento, mas era muito pequeno, três vezes menor do que a minha casa atual. Vendemos, e com o dinheiro comprei um terreno na vila. Em 2006, descobri que tinha um processo para remover todas as famílias, e aí, como já tinha gastado todas as nossas economias aqui, decidi que precisava tomar uma atitude e ver o que podia fazer. Não só para me ajudar, mas também às pessoas que já viviam na região."

Desesperada com a possibilidade de despejo, Lia relata que juntou um grupo de moradores para iniciar as primeiras ações transformadoras. "Chamei o pessoal e disse assim: 'Estamos morando num espaço que não é regularizado pelo Estado, mas a gente não é porco nem barata para viver no meio do lixo. Quem faz o lugar que a gente vive somos nós mesmos. Que tal um mutirão? A primeira coisa que temos que fazer dentro da comunidade é cuidar da limpeza, não jogar lixo em qualquer lugar'."

"O pessoal jogava o lixo na lixeira, na caçamba que a prefeitura deixou, os cachorros vinham e espalhavam tudo no chão, ficava aquela porcaria. Aí eu disse: 'Vamos limpar todo o lixo da comunidade e fazer um abrigo, deixar fechadinho, e os cachorros não vão mexer.' Aí nós fizemos isso com a ajuda de estudantes da USP (Universidade de São Paulo) e da ONG TETO, que constrói casas de madeira", conta. Era o início de uma grande mudança.

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A Vila Nova Esperança começou a ser ocupada no final dos anos 1960, quando as primeiras moradias foram construídas em uma fração da Fazenda Tizo, perto de uma Zona Especial de Proteção Ambiental, composta de mata atlântica. A posse oficial das terras pertence à comunidade desde que a primeira habitante, Dona Sebastiana, recebeu a escritura pública de cessão de direitos da propriedade. Em 2001, contudo, a CDHU (Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano) efetuou a compra da Fazenda Tizo, como consta no histórico da Secretaria do Meio Ambiente do Estado de São Paulo.

A CDHU formulou um projeto de inauguração do Parque Tizo, desde julho de 2019 chamado Parque Jequitibá. Sendo assim, alegava que as famílias, por estarem dentro do parque, deveriam abandonar suas casas. A companhia emitiu uma sentença decisiva e efetiva e, em 17 de maio de 2011, se apresentou na comunidade com uma força armada intimando os moradores a saírem antes que as máquinas de demolição entrassem em cena.

Lia registrou tudo em imagens e se dirigiu, acompanhada de outros moradores da favela, ao Tribunal de Justiça. Não demorou muito para que o juiz Paulo Jorge Scartezzini sentenciasse que não existia motivo para o desalojo das famílias e que a Vila Nova Esperança não pertencia à área do parque. Desde aquele momento, ela segue em luta para manter a posse legal das terras.

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Livro, horta e PANCs

Empolgada com as primeiras conquistas, e já assumindo seu nome de luta, "Lia Esperança", ela iniciou os passos seguintes necessários a fim de converter o bairro em um ambiente "autossuficiente". Teve a ideia de fazer uma horta comunitária, um modo de instituir ao mesmo tempo noções de educação ambiental e alimentar. Hoje, a horta local ocupa um enorme terreno oferecido pela Sabesp, que antes, segundo Lia, "servia para armazenar desmanches de carros roubados, lixo e até corpos de gente morta pelo crime."

Veio na sequência a biblioteca, feita com água e barro e descartes de madeira de construção, ao estilo das tradicionais casas de taipa da Bahia. "Foi a nossa primeira construção sustentável, a nossa biblioteca, e ficou linda!", orgulha se a líder comunitária.

"Aí falei para o povo que, como a gente já tinha uma horta, era a vez de construir uma cozinha coletiva. Começamos a fazer receitas diferentes, como o feijão guandu, que as pessoas não conheciam, ora pro nóbis, a taioba, o peixinho. Tem várias folhas comestíveis na mata que as pessoas não sabem", conta.

As iniciativas encabeçadas por Lia seguem impactando a comunidade, embora nem todos participem ativamente dos trabalhos. "Todos se beneficiam", argumenta ela, "até quem não se envolve. Porque foi através desse trabalho que as pessoas deixaram de ser expulsas. E a própria CDHU, que não queria, junto com o Ministério Público, urbanizar aqui, nos procurou [depois] e falou que tem interesse", conta.

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Construímos uma cozinha experimental, brinquedoteca para as crianças e também um mini teatro de barro. Hoje temos também um pesqueiro, temos várias coisas construídas por nós mesmos. Se éramos acusados de degradação, dali a pouco começamos a ganhar prêmio por dar exemplo de sustentabilidade

Lia de Lourdes, líder comunitária

Entre as conquistas mais recentes dessa união de esforços, a Vila Nova Esperança conta com uma cisterna que recolhe água da chuva e uma fossa ecológica, para evitar a contaminação do solo. Na lista de projetos futuros, interrompidos por conta da pandemia do novo coronavírus, figuram ainda uma creche, uma escola e uma quadra esportiva, que já está em construção desde 2013, mas ainda segue inacabada.

A vila também acolhe a única sede de inovação social das favelas de São Paulo. "Esses dias o nosso Centro de Inovação e Tecnologia está parado por causa da Covid-19, para evitar a aglomeração de pessoas", lamenta a presidente da associação, "mas a nossa ideia é, depois que passar tudo isso, inaugurar um novo espaço com três andares."

Lia explica como funciona o centro de inovação: "Você tem uma ideia de construir um projeto, uma mesa de centro, vamos supor, mas não tem as ferramentas nem muito espaço para construir. Dependendo, nem o próprio material. Aí a gente vai no centro e tem um designer que vai dar todo o suporte. E não precisa ser morador da Vila Nova Esperança para construir seus projetos, é só chegar. A nossa ideia é que aquilo ali seja uma incubadora. Tem várias ferramentas. Os jovens daqui, quebrou a bicicleta, vão todos lá consertar."

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Esse trabalho também uniu os moradores e trouxe uma sabedoria que, não vou dizer que eles não tivessem, mas talvez andasse escondida, e através do construir junto, do coletivo, foi aflorada e estimulada. E aí junta todos os saberes e a gente transforma isso em algo grande. Foi o que fizemos no nosso projeto de urbanização. Porque a prefeitura, quando vai urbanizar uma favela, os arquitetos, engenheiros sentam numa mesa entre eles, mas não chamam a pessoa da favela para opinar sobre como quer a casa dela

Lia de Lourdes, líder comunitária

Alojamento na pandemia

O suporte para fazer tudo isso acontecer vem dos mais variados cantos. Aportam muitas doações, para se ter noção, de gente admiradora do trabalho de Lia que prefere não se identificar. Recentemente, um homem entrou em contato e doou R$ 50 mil. Os moradores de outras comunidades, como Paraisópolis, também ajudam. Uma nota publicada no site do G10, bloco de Líderes e Empreendedores de Impacto Social das Favelas, angariou R$ 6 mil para compra de comida e produtos de higiene.

Atitudes como tais vêm colaborando para que Lia possa garantir a entrega diária de 70 marmitas e mais de mil cestas básicas por mês desde o começo do isolamento social, em meados de março. "E são doações de pessoas físicas", frisa. "Agora, com essa pandemia, nós pegamos a nossa sede da associação, reformamos e fizemos de alojamento para, caso precisar, algum morador ficar de quarentena. Ainda não precisou. E também ganhamos um edital pela Fiocruz que nos permitirá continuar a fazer marmitas e doar para os moradores que trabalham na horta", conta.

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Acervo Pessoal

"Sozinho você não ajuda ninguém"

A consultora de beleza Tiana Laurentino, 35 anos, é uma das moradoras atuantes nas iniciativas da Associação Independente Vila Nova Esperança. Antiga residente da Freguesia do Ó, foi apresentada a Vila Nova Esperança em junho de 2005, quando visitou o local com o marido a fim de comprar um terreno. Do ponto de ônibus da rua Vaticano, a caminhada pela avenida Engenheiro Heitor Antônio Eiras García até a comunidade era longa, coisa de 1 km e 200 metros. Uma trilha erma feita literalmente de barro, de terra batida.

"Fomos eu, meu esposo, que na época era meu namorado, a família dele, e andamos por ali tudo", resgata na memória, "e a fiação elétrica era toda exposta. Fiação, que eu falo, era de 'gato', sabe? A energia, na época, não era legalizada. Fui andando a estrada, mata de um lado, mata do outro. Mas a gente morava de aluguel e eu queria sair do aluguel. O pessoal reclamava da precariedade e da distância, mas insisti para fecharmos o negócio, porque desde aquele tempo sempre achei que quem muda o lugar é quem mora nele. Se você tem o propósito de morar num lugar e de mudar, transformar, você consegue."

Tiana e os parentes, tão logo saíram do aluguel, ficaram sabendo do processo de desapropriação. Ela descreve que a líder comunitária anterior a Lia jogava mais para o lado da especulação imobiliária do que da comunidade. "A mulher queria porque queria que a gente saísse. Não estava a nosso favor", protesta. "Foi quando a gente conheceu a Lia num encontro. Ela enfrentou a liderança da ocasião e falou: 'Não, nós temos os nossos direitos e vamos correr atrás deles.' Tomou frente, começou a participar de reuniões, atuou nos processos, como faz até hoje, e, nossa, a gente teve muitas melhorias."

Uma dessas mudanças, conta, foi o asfalto. "Que não é bem um asfalto, mas um resto de concreto que levamos para lá. Aquilo já melhorou". Outra conquista, emenda, "é que hoje já temos energia elétrica legalizada, conseguimos em 2013. Imagina só São Paulo, uma cidade que é a maior metrópole do Brasil, ter um bairro tão perto do centro sem energia elétrica, nas condições em que estávamos morando. É bem feio, entendeu? Teve gente que nasceu, cresceu e morreu adulto, de 60 anos, e que nunca tomou um banho quente de chuveiro porque em Nova Esperança não tinha energia."

Mãe de um menino pequeno, de 3 anos, e trabalhando fora, Tiana não consegue se dedicar ao voluntariado na horta, mas assumiu a responsabilidade pela entrega do leite, toda segunda e quarta-feira. Ela também sai para fazer compras com Lia e a acompanha nas reuniões. "Não à toa que ela é chamada de 'Lia Esperança'. Eu não tinha tanta fé antes de conhecer ela, e passei a ter fé, esperança, me transformei numa pessoa melhor, no sentido de poder ajudar o próximo, porque sozinho você não consegue ajudar ninguém. É muito gratificante. E realizei sonhos, né? Antigamente aquilo ali era um lugar e hoje é outro. Isso tem o meu dedinho também. É maravilhoso."

Aprender como iguais

Lia de Lourdes cursou até o 2º grau do ensino médio, mas na experiência de vida aprendeu muito sobre empoderamento social não hierárquico, sobre como concretizar objetivos a partir de grupos de afinidade capazes de agir autonomamente. Na Vila Nova Esperança, os moradores interessados em fazer a diferença se reúnem, dialogam, e a partir das metas definidas em consenso, passam a se organizar. O mais importante não é saber fazer, mas que todos possam aprender como iguais, compartilhando habilidades. "Autossuficiência, horizontalidade, diversidade e solidariedade", de acordo com Lia, são as bases de qualquer transformação.

Em suas próprias palavras: "Uma coisa que acho muito linda do ser humano é quando alguém sabe de algo e não guarda para si. Se você sabe de algo legal, passa para o teu vizinho. Pois quando você morre, uma casa boa você não leva, uma roupa de marca você não leva, nem dinheiro. Você não leva o carro do ano. Mas uma coisa que você tem, que quando morrer, não vai deixar para ninguém, é sua sabedoria. Quando cheguei na Vila Nova Esperança, eu era uma pessoa que mal respondia o que os outros me perguntavam, era muito tímida, caí de paraquedas e me tornei essa líder. Aprendi que o líder não manda fazer, ele faz e chama as pessoas para seguir. Eu chego na associação e digo: 'Pessoal, vamos junto botar a mão na massa?'. É assim que a gente trabalha na vila."

"Aqui ninguém sabe, a gente aprende junto", ensina Lia.

Keiny Andrade/UOL Keiny Andrade/UOL

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