Historinhas fora do armário

Como a literatura infantil contribui para novos olhares sobre a família

Mayara Penina, do "Nós, Mulheres da Periferia" Colaboração para Ecoa, de São Paulo (SP) Montagem

Provavelmente, você deve se lembrar da fábula "O patinho feio", de Hans Christian Andersen. Na história, depois de se sentir muito diferente de seus irmãos por ser grande e cinza, o patinho descobre que era, na verdade, um cisne encantador. Nesse conto, vemos que a diferença em um mundo homogêneo vem acompanhada pela reprovação de quem não te vê como igual.

A leitura das obras "Olívia tem dois Papais", de Márcia Leite, "Princesa Kevin'', do francês Michaël Escoffier, e "Se Deus me chamar não vou", de Mariana Salomão Carrara, foi o pontapé inicial para esta reportagem. Todas essas obras nos fazem pensar sobre a possibilidade de ser e estar no mundo como família.

E sobre o que falam esses três livros? Um menino que gostaria de se fantasiar de princesa, uma menina que tem dois papais (Raul e Luís), uma pré-adolescente cuja mãe e o pai acabam por namorar um terceiro rapaz... Qual é o papel da literatura para adultos e crianças ao abrir novas possibilidades de olhar sobre famílias e suas composições?

Para a educadora Bel Santos Mayer, a "literatura tem uma responsabilidade bastante grande em nos possibilitar o imaginário com outros mundos e construir a sociedade que a gente deseja, e não apenas reforçar os estereótipos e preconceitos existentes".

Ela defende que, da mesma maneira de outras linguagens artísticas como o cinema e o teatro, a literatura pode ser uma oportunidade de experimentar o que é novo.

Montagem

Isso nos dá a possibilidade de encontrar um caminho pra conversar com as crianças, que é o caminho de naturalizar essas relações, e para nós adultos é a oportunidade que as crianças nos dão de nos questionar e conseguir deixar os nossos pré-conceitos e estereótipos um pouquinho de lado pra gente ver a humanidade que há nessas relações.

Kiusam de Oliveira, escritora e professora

Renato Parada /Divulgação

Pluralidade e potência

A escritora e professora Kiusam de Oliveira também acredita que livros infantis bem escritos e que tratam de assuntos profundos são capazes de apresentar caminhos de um pensar autônomo e crítico para crianças de qualquer idade. "O mesmo se dá aos adultos, certamente. E tenho percebido, ao longo dos anos, que a literatura infantil e o contato com os livros infantis são retornos afetivos necessários, principalmente, às mulheres adultas", diz Kiusam a Ecoa.

Kiusam é considerada umas das dez escritoras mais importantes para formação infantil pela ONU (Organização das Nações Unidas). Embora seus livros sejam voltados ao público infantil, eles contam com temáticas atuais que conseguem conduzir amplos debates na sociedade.

"Se autoras e autores tiverem consciência de que vivemos num país onde a pluralidade está posta, acreditando ser este ponto a grande potência do país, certamente poderão construir um imaginário incrível nas histórias infantis", diz Kiusam.

Ela também alerta para o fato de que o direito à diversidade não tem sido bancado com tranquilidade pelas editoras que, pressionadas pela atual conjuntura do país, preferem aderir aos temas mais tradicionais e menos polêmicos para as publicações. "Eu tenho dito que a literatura, além de ser um direito humano pode ser cura, desde que quem escreva esteja atenta para as necessidades do mundo que nos rodeia", diz

A gente tem que procurar ser menos previsível e estar mais à disposição para ser estimulado e não ser aquele que estimula apenas

Maitê Freitas, fundadora da Oralituras, editora destinada a facilitar os processos de produção literária de escritoras negras e indígenas.

Divulgação

Literatura como cura

A educadora Bel Santos Mayer também menciona a literatura como cura. Bel é coordenadora do Ibeac (Instituto Brasileiro de Estudos e Apoio Comunitário), e co-gestora da LiteraSampa, rede de bibliotecas comunitárias e escolares em São Paulo. Ela enxerga o livro como uma possibilidade de conversas. "Ele chega como uma forma de cura mesmo. Não porque vai trazer todas as respostas, mas porque pode nos ajudar a formular melhor as perguntas e conversar".

"A gente precisa construir caminhos em que os educadores relembrem que brincar não é só um verbo, mas uma ação que se dá no nosso corpo, que se dá na nossa disposição em se tornar mais flexível, em se tornar mais maleável aos estímulos daquilo que é espontâneo.", diz a jornalista Maitê Freitas, fundadora da Oralituras, editora destinada a facilitar os processos de produção literária de escritoras negras e indígenas.

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O adulto mediador de leitura

Maitê Freitas acredita que a literatura voltada para as infâncias é a mais completa no que diz respeito ao trato editorial. "O livro ocupa o corpo da criança, ele não fica só no lugar da cabeça, desse espaço mental que os livros adultos têm. Nós, adultos, precisamos voltar a lembrar que a gente tem corpo, que a gente também é sensorial", diz.

Por isso, ela que é mãe da Ilundy Airá, de dois anos, entende o papel do adulto nesta mediação como o de estimular que a criança compreenda no corpo a mensagem, e que, então, o adulto também entre no jogo. "Eu acho que uma literatura infantil potente liberta corpos", diz.

Kiusam acrescenta que nos processos educativos infantis não há espaço para enganos tampouco para superficialidades. "Tudo é muito profundo, as relações são sempre profundas. Sendo assim, nada mais adequado do que a profundidade atingir primeiramente o ser que se propõe ou julga estar apto a educar alguém".

A educadora afirma que a coragem para compreender todas as tensões dentro de si é condição essencial para que verdades sejam acessadas e, assim, transformadas para o melhor. "As histórias são capazes de abrir clareiras incríveis na mata fechada da mente, e isso se dá por conta do campo sensível aberto por elas, uma vez que o imaginário está diretamente ligado ao movimento da memória, pautado na emoção que somente as artes são capazes de despertar", diz Kiusam.

Bel Santos coordena o projeto LiteraSampa, formado por quatorze bibliotecas comunitárias e duas escolares na cidade de São Paulo, cujo objetivo é fomentar a leitura literária nas suas respectivas regiões. Em suas formações, costuma dizer que um mediador de leitura é, acima de tudo, um leitor; ele não lê só a literatura pensada para crianças, ele lê também para adultos. "Muitas vezes a criança nem sabe que livro ele quer, ela sabe, às vezes, o que ela está sentindo, e quem pode indicar um livro é o mediador ou a mediadora de leitura".

Obras para ampliar o olhar indicadas por Bel Santos, Kiusam Oliveira e Maitê Freitas

  • "A princesa e a costureira", de Janaína Leslão (Metanoia Editora)

    O livro conta a história da princesa Cíntia, que quando nasceu foi prometida em casamento para Febo, o príncipe do reino vizinho, para que se mantivessem os laços de amizade entre os reinos. Quando chegou a época da cerimônia, a princesa foi encomendar seu vestido e, então, conheceu a costureira Isthar, por quem se apaixonou. Quando Cíntia anunciou para os pais suas intenções com Ishtar, e disse que não mais se casaria com Febo, seu pai mandou que a prendessem na torre do castelo, pois desafiou o interesse e a tradição dos reinos, que dizia que moças deveriam se casar com rapazes. Para garantir um final feliz, a princesa e a costureira receberão ajuda da irmã da princesa, do próprio príncipe, da Fada Madrinha e de uma Agulha Mágica

    Imagem: Reprodução
  • "Feliz aniversário, João", de P. Bertucci e Julia Rosemberg (Equador)

    João é um menino que queria experimentar. Experimentar usar rosa, ter cabelos compridos e brincar de boneca. Mas ninguém dava a ele essa possibilidade de experimentação. Até que, no seu aniversário de 9 anos, ele ganha um presente que o faz sorrir bastante.

    Imagem: Reprodução/Facebook
  • "O menino perfeito", de Bernat Cormand (Livros da Matriz)

    Bernat Cormand nos faz conhecer Daniel ao longo de um dia, por meio de desenhos extremamente delicados e um texto que seria simples, não fosse o peso que as imagens lhe encerram. Com o lápis de cor e uma palheta que, não por acaso, torna quase tudo da mesma cor, Bernat revela, quase em sussurros, quem é Daniel, o menino perfeito: aluno aplicado, filho dedicado, que obedece aos desejos e expectativas de todos. O menino impecável, no entanto, carrega no rosto sempre a mesma expressão, que pouco nos diz e traz uma sensação de tristeza. Até que em uma determinada página, nos olha e sorri. Daniel sorri porque guarda um segredo: à noite, quando todos dormem, algo acontece.

    Imagem: Reprodução
  • "A Vida não me assusta", de Maya Angelou (DarkSide Books)

    Você tem medo de quê? Cachorros bravos, cobras, sapos, dragões soltando fogo? "A vida não me assusta" é um pequeno livro de arte para crianças valentes, que enfrentam fantasmas e meninos brigões da escola com a cabeça erguida. É até difícil não se apaixonar por este livro. Publicado originalmente há 25 anos, e até então inédito no Brasil, ele reúne os talentos da poeta e ativista Maya Angelou e do artista gráfico Jean-Michel Basquiat. Dois artistas com histórias de vida sofridas e infâncias problemáticas, mas que nunca se deixaram intimidar. Não importa qual obstáculo apareça no caminho, você sempre pode encontrar forças para superá-lo. Então, nada de medo, combinado?

    Imagem: Reprodução
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