ARISTOCRACIA NEGRA

Embalado por shows de Jorge Ben, clube luxuoso reuniu elite negra paulistana e estrelas como Muhammad Ali

Juliana Domingos de Lima De Ecoa, em São Paulo

Desde o final dos anos 1960, em São Paulo, milhares de pessoas bem arrumadas se reuniam nos 60 mil m² de um clube de campo localizado no Grajaú. As lendárias festas do chope contavam com atrações musicais do calibre de Jorge Ben — que chegou a uma dessas festas em um Escort conversível e fez um dos maiores e mais memoráveis shows da história do "Ari", como o clube é apelidado pelos sócios.

Mais de 50 anos depois, Martha Braga, 70, ainda se lembra da primeira vez que foi a uma festa do Aristocrata Clube, fundado pela elite negra paulistana que era impedida de se associar aos tradicionais clubes da cidade. Com seus 17 anos, ela foi convidada por uma amiga de escola e sua família, sócios do clube paulistano.

"[Ir ao clube] me marcou muito. Foi impactante para mim naquele momento ver tantos negros ali reunidos, confraternizando. Pensei 'nossa, é aqui que quero frequentar!'", lembra. Através do Aristocrata, Martha passou a ter uma visão diferente sobre sua identidade e a "consciência de fazer parte de um ambiente genuinamente negro".

A impressão que o clube causou na jovem foi tão forte que sua vida permanece ligada a ele até hoje: Martha é a atual presidente do Aristocrata, tendo colaborado com suas atividades desde os anos 1980.

Dançando até de madrugada

O Aristocrata Clube foi fundado em 1961 por um grupo de pessoas negras de classe média alta na capital paulista. Sua sede social ficava na Rua Álvaro de Carvalho, 118, no Anhangabaú, centro da cidade.
Seus sócios eram funcionários públicos, advogados, empresários e políticos. Artistas e outras figuras de renome, brasileiras e estrangeiras, iam ao Aristocrata para o happy hour, onde bebiam, conversavam e tocavam piano no salão.

Milton Nascimento, Wilson Simonal, Jair Rodrigues, Elizeth Cardoso, Michael Jackson (ainda na época do Jackson 5), Ray Charles, Josephine Baker, Sarah Vaughan e Muhammad Ali passaram pelo clube, muitas vezes trazidos pelo cantor e fundador Agostinho dos Santos, que tinha alcançado sucesso internacional como intérprete de canções do filme "Orfeu Negro", vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes em 1959.

"Era tudo muito espontâneo e muito alegre. E a convivência com pessoas ilustres, como jogadores de basquete, era natural", recorda Luiz Carlos Ribeiro da Silva, 75, sócio do clube desde 1966.

"As pessoas gostavam muito de dançar, dançar mesmo. Era tanta gente dentro daquele lugar, que as paredes chegavam a suar.", diz Janete Paes de Pádua, 62, que chegou ao Aristocrata anos mais tarde.

Janete se associou no início dos anos 1980, quando fazia faculdade de direito. A educação era um requisito para a diretoria do clube: incentivavam que os sócios concluíssem o ensino superior.

"Fiquei bastante entusiasmada com tudo aquilo. Música boa, pessoas alegres, bem vestidas, era um outro mundo para mim que vinha de um bairro bastante distante", diz Pádua, que cresceu na Vila Nova Cachoeirinha, Zona Norte de São Paulo.

No seu caso, fazer parte do clube marcou uma ascensão em relação aos pais: sua mãe, costureira, sabia da existência do clube, mas nunca pensou que poderia frequentá-lo. Janete foi além do posto de sócia e se tornou a primeira mulher a presidir o Aristocrata nos anos 1990.

Vestido tipo princesa

No Aristocrata, jovens negras debutavam com a mesma "pompa e circunstância" que meninas brancas da classe média alta. Como a sede social era pequena, alugavam-se grandes salões para esses bailes. Todos os associados participavam e se programavam com antecedência, mandando fazer roupas exclusivamente para a ocasião.

Havia a tradicional troca de roupa das debutantes, simbolizando a passagem da infância para a vida adulta, como lembra Diva Zitto, 64. O segundo "look" era um vestido longo e o traje incluía até luvas. Uma orquestra tocava as valsas dançadas com os pais e depois com namorados ou primos. As moças eram presenteadas pelo clube: "Teve época em que foram dados anéis solitários de brilhante", diz Zitto.

Haydée Alexandre, 64, filha de fundadores do clube, teve seu baile de debutante na década de 1970. Usou um vestido "tipo princesa", de renda e saia godê volumosa. "Era lindo. E a gente podia passar da meia-noite pela primeira vez, o que era o ponto mais importante", conta.

O baile era o ápice de uma preparação das jovens para a vida adulta que começava bem antes. Elas eram levadas a conhecer lugares como a Assembleia Legislativa e a Câmara Municipal de São Paulo e empresas do ramo da construção civil ou farmacêutico. A ideia era despertar nelas o desejo de se inserir nessas áreas, na época ainda pouco acessíveis às mulheres e ainda menos às mulheres negras.

"Lá [no Aristocrata] eu consegui ter minha base, minha autoestima", diz Haydée.

'É por isso que criamos o Aristocrata'

"Puxa vida, que piscina bonita. Se tivesse trazido meu calção, daria um pulo nela", foi o comentário de um dos futuros fundadores do Aristocrata a um diretor do tradicional Clube Pinheiros, provavelmente em meados da década de 1950. O outro respondeu que ele não poderia entrar porque usavam na água um "preparado" que fazia mal à pele negra.

A história é contada por Mário Ribeiro da Costa, já falecido, no documentário de 2004 "Aristocrata Clube", dirigido por Jasmin Pinho e Aza Pinho, em tom tão corriqueiro quanto é corriqueira a experiência do racismo para a população negra no Brasil. Negros podiam entrar em clubes como o Pinheiros para disputar uma partida de futebol ou para trabalhar, mas não mais que isso. Não eram aceitos como sócios.

O episódio demonstra a discriminação velada que impedia negros de ingressarem nos clubes da cidade de São Paulo na época. Segundo o historiador e professor da Universidade Federal de Sergipe Petrônio Domingues, essa exclusão seguia o padrão do racismo à brasileira por não ser institucionalizada no regimento dos clubes, mas existir na prática.

"São Paulo ainda era uma cidade marcada por essa linha de cor muito evidente nos anos 1960", diz Domingues.

Em 1969, o Aristocrata inaugurou seu clube de campo no Grajaú. Com ele, o lazer se expandiu para várias modalidades de esporte, como futebol, basquete, tênis e natação. Cerca de 20 anos depois da discriminação sofrida por Mário Ribeiro da Costa no Clube Pinheiros, o Ari inaugurou, em 1970, uma piscina olímpica - marco para a comunidade de sócios - e um campo de futebol. No clube de campo, também havia quiosques com churrasqueiras, vestiários, um galpão para eventos e um restaurante.

Apesar dos avanços conquistados ao longo das décadas, a discriminação contra negros nos clubes da cidade não deixou de existir. Filho dos fundadores Gerson Policarpo e Haydée Amarante, Fábio Amarante, 48, disse ao pai no início da década de 1990, na adolescência, que queria se tornar sócio de um outro clube frequentado por seus amigos brancos no bairro de classe média alta em que moravam.

Quando pediu os papéis de adesão na administração desse clube, ouviu que não estavam aceitando novos associados.

"Contei para o meu pai, ele me falou: 'Não existe isso num clube, negar dinheiro novo. É por isso que nós criamos o Aristocrata, pra que vocês não passassem por isso'", diz Amarante.

Reprodução

Clubes sociais negros

Existem centenas de clubes negros espalhados pelo Brasil até hoje. Seu surgimento remonta ao final do período da escravidão - o primeiro de que se tem registro é o Floresta Aurora, fundado em 1872 em Porto Alegre. Experiências clubistas se multiplicaram a partir da abolição, a princípio sobretudo nas regiões Sul e Sudeste, com dezenas de "associações recreativas" negras, como eram chamadas na época, surgindo do fim do século 19 até os anos 1930.

Parque Municipal Aristocrata

Quando o clube de campo do Aristocrata nasceu, na estrada do Bororé, na Zona Sul de São Paulo, o que mais havia em seu entorno era mato. As chácaras eram poucas e espalhadas. Ali nascia o bairro do Grajaú, que anos mais tarde revelaria o cantor Criolo. Com o passar das décadas, a vizinhança foi crescendo e casas ocuparam parte do terreno que foi do Aristocrata.

Em declínio financeiro, tendo enfrentado uma queda no número de sócios e dificuldade de renovar seu público, o clube fechou as portas da sede social e teve suas atividades paralisadas por 14 anos, a partir do fim da década de 1990. Nesse período, filhos de fundadores e ex-dirigentes do clube continuaram se reunindo para articular uma retomada.

Quem vai até a Estrada do Bororé, onde ficava o Clube de Campo, não encontra mais vestígios físicos do seu passado imponente: a piscina foi coberta de terra, os quiosques e vestiários foram quebrados há muito tempo. Só restou o campo de futebol, que continuou sendo usado pela comunidade.

O terreno foi desapropriado em 2011 para a construção de um parque municipal. Depois de uma década de negociações e reivindicações junto à prefeitura, a inauguração do Parque Aristocrata está prevista para o primeiro semestre de 2023. Nele, haverá algumas referências ao clube, como um deck reproduzindo o espaço da piscina e um painel com imagens históricas.

No terreno em obras, em uma tarde de junho, o grupo de moradores do Grajaú que acompanha a construção do parque vai reconstituindo o clube, apontando em diferentes direções e mostrando algumas fotos reveladas.

Do grupo que observa, Jorge Cardoso lembra de subir no alto de um morro quando moleque para olhar o clube de cima e ficar atirando pedrinhas, ressentido de não poder entrar. João Mendes de Souza e Alexandre José da Silva davam um jeito de passar pela cerca e entrar nas festas da cerveja, ou até de pular o muro de madrugada para dar um mergulho na piscina, prontos para sair correndo ao ouvirem o caseiro do clube gritar. Eles enfatizam que só pessoas que tinham uma boa condição financeira podiam frequentar o Aristocrata, principalmente até a década de 1980 quando o clube ainda estava no auge.

Com a indenização recebida pela desapropriação do terreno no Grajaú, em 2014, os remanescentes do clube puderam comprar uma casa no Planalto Paulista para abrigar a nova sede. Hoje, segundo a presidente Martha Braga, o Ari tem cerca de 150 associados e quer atrair os mais jovens:

"Minha geração já não tem mais condições de levar o clube e a visão que sempre tivemos dele: um quilombo urbano dentro dessa cidade enorme que se chama São Paulo", diz Braga. "Esse patrimônio tem que ser preservado. Hoje muitos jovens estão interessados no problema do racismo estrutural, então acredito que a gente possa passar esse bastão para que eles carreguem a nossa bandeira".

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