Direito de ir e vir

Ícone das Paralimpíadas, Clodoaldo Silva luta por espaços inclusivos e acessibilidade para todas as pessoas

Paula Rodrigues De Ecoa, em São Paulo (SP) Divulgação

Chovia muito no dia da abertura das Paralimpíadas do Rio de Janeiro, em 2016. Sem problemas para o nadador profissional Clodoaldo Silva, no centro do Maracanã. A tocha paralímpica queimava forte enquanto ele se movimentava até a pira. Mas no meio do caminho tinha uma escada. Clodoaldo gesticulou em sua cadeira de rodas enquanto olhava para aquela imensidão de degraus, que após alguns momentos de apreensão começaram a se mover, criando uma rampa que levaria o nadador até seu destino naquela noite.

"A mensagem que a gente passou foi a de que pode haver degraus, mas se constroem rampas. Todo mundo tem a mesma oportunidade de chegar no mesmo lugar. Fica justo para todo mundo", diz o atleta que já conquistou 14 medalhas paralímpicas e mais de 700 de outras competições.

Após a Rio 2016, sua quinta Paralimpíada, o nadador se aposentou, mas o sonho de passar os dias nas praias de Natal (RN) foi substituído pela necessidade de se envolver na luta por direitos, principalmente os relacionados à acessibilidade. Começou a se dedicar a dar palestras, treinamentos e consultorias em espaços acadêmicos, escolares, empresariais, entre outros, sobre inclusão de pessoas com deficiência. Criou também o Instituto Clodoaldo Silva para ajudar pessoas com ou sem deficiência em situação de vulnerabilidade social.

Ele, que também é colunista de UOL Esporte, conversou com Ecoa sobre os planos para o futuro e a vontade de contribuir com a sociedade com humanos melhores.

REUTERS/Sergio Moraes REUTERS/Sergio Moraes

Ecoa - Em 2019 você anunciou que iria se dedicar à criação do Instituto Clodoaldo Silva. Quais são os planos de ação que você tem em mente para esse projeto?

Clodoaldo Silva - Apesar de ser para todo mundo, eu acredito que a maioria dos atendidos serão pessoas com deficiência. Assim eu acho mais legal porque podemos fazer a inclusão inversa, né? Geralmente, é a pessoa com deficiência que tem que entrar no mundo da pessoa que não tem deficiência. E nesse projeto eu quero fazer o oposto, quero poder fazer a pessoa sem deficiência entrar no mundo de uma pessoa com. Um mundo com acessibilidade para todos, com mais integração também, porque as pessoas com e sem deficiência precisam conviver mais.

Acredito que isso trará ensinamentos e valores indescritíveis para esses jovens. Principalmente podendo ficar mais atento a questões de acessibilidade e sair dali com mais companheirinhos, mais humano, com outra cabeça para que ele possa passar essa visão para mais pessoas.

E acessibilidade é algo de que todos vão precisar um dia...

Pois é! Quando todos forem velhinhos... Mas, na verdade, eu acredito que hoje todos os dias alguém sem deficiência já precisa. Uma pessoa com um carrinho de bebê, por exemplo, precisa de acessibilidade. Em uma porta que não passa uma cadeira de rodas, não passa o carrinho de bebê. E a pessoa que usa um salto, imagina, ia preferir subir uma rampa ou um degrau? Entendeu?

Vê lá fora, nos Estados Unidos, em parte da Europa, uma pessoa com deficiência sai de casa e é só mais uma anônima na rua. Aqui, quando você anda pelo centro do Rio ou de São Paulo de cadeira de rodas, as pessoas ficam te encarando, te olhando com receio de como você vai conseguir passar por uma calçada esburacada, como vai subir um degrau. A falta de acessibilidade dificulta a independência da pessoa com deficiência.

Danilo Verpa/Folhapress Danilo Verpa/Folhapress

O que precisa ser feito no Brasil para essa realidade mudar?

É seguir a norma. É só seguir a lei, só isso, porque desde 1988, a nossa Constituição Federal fala sobre os direitos e deveres de todo cidadão, inclusive as pessoas com deficiência. Acredito que as leis vieram se atualizando e evoluindo, como em 2015, com o surgimento do Estatuto da Pessoa com Deficiência, que é a lei brasileira da inclusão.

Então, não precisa ser um gênio e inventar a roda. O manual do que precisa ser feito está pronto e disponível, basta ler e seguir. Não sei por que raios que a maioria dessa galera, grandes empresários, engenheiros e arquitetos, não seguem isso.

Talvez tenha alguma relação com a pouca convivência entre pessoas com e sem deficiência que você estava falando antes?

Acho que sim, mas faz parte do trabalho do engenheiro, do arquiteto e do político saber os padrões que existem para serem seguidos. Tem essa falta de convívio, mas não é desculpa. No nosso meio, no segmento da pessoa com deficiência, a gente tem uma frase que diz: "nada sobre nós, sem nós", ou seja, vai escutar uma pessoa com deficiência antes. Se não convive com ninguém, procura alguém que possa te ajudar nisso, pesquisa antes para saber o que já foi falado e feito, o que essas pessoas pensam e querem. É muito simples.

O direito de ir e vir é um dos principais fundamentos da nossa Constituição. Então, quando não existe acessibilidade, significa que 15% da população brasileira não tem o direito de ir e vir. Eu falo que hoje, graças a Deus, ao esporte, às oportunidades que tive e às minhas conquistas, eu poderia almoçar em qualquer restaurante, por exemplo, mas não dá porque nem todos têm rampa para eu passar, só degrau. Hoje eu ainda não posso ir onde eu quero, só onde eu consigo entrar. Só onde pensaram em acessibilidade.

Clodoaldo Silva, ex-atleta e ativista da luta PCD

Divulgação

Você escreveu que o esporte é o "braço forte da educação". Como essas duas coisas se relacionam e podem ajudar jovens e crianças no Brasil?

O principal seria tirar da gaveta o Plano Nacional do Desporto (PND), que nada mais é do que dar obrigações a municípios, estados e governo federal, como funciona na escola, né? No antigo ensino fundamental quem gere é o município, o primeiro, segundo e terceiro grau quem gere é o estado, e as universidades, o governo federal. É justamente isso que nós queremos para o esporte. O município vai cuidar da base. O Estado vai cuidar do alto rendimento e das competições nacionais. E o governo federal seria responsável pelos atletas de alto rendimento internacionais. E tudo isso ligado à educação, porque o PND é educacional.

Como você acredita que o Plano Nacional de Desporto (PND) vai auxiliar na parte educacional da criança ou adolescente?

Em setembro, eu, Thiago Pereira, Flávio Canto, Daiane dos Santos, Diogo Silva e Estevão Lopes fomos a Brasília justamente para representar a Atletas pelo Brasil e fazer pressão a favor do PND. Já são 23 anos de descaso com ele parado. Não entendemos o porquê. Fomos lá para falar: "galera, estamos aqui, o esporte está unido, então bora se mexer e fazer uma forcinha para ver isso agora porque as Olimpíadas e Paralimpíadas foram um sucesso esse ano, surgiram tantos novos atletas do Brasil e do mundo, a gente tem que fazer a nossa parte e dar oportunidades para essas pessoas para que elas possam fazer a parte delas".

Queremos que vire política pública para todo o país. Priorizando o esporte na escola, para que as escolas possam ter professores capacitados para ensinar, claro, mas também para reconhecer os talentos. E não só talentos no esporte, tá? A pretensão nem é formar novos atletas, mas gerar oportunidades. Se o cara não quer ser atleta, que ele possa ter oportunidades para se descobrir como um engenheiro, um arquiteto, um biólogo. Até mesmo porque atletas não conseguem ficar no esporte competindo por tanto tempo assim, e depois?

Luciano Amarante / Folha Imagem Luciano Amarante / Folha Imagem

A discussão sobre inclusão na educação voltou à tona com declarações do ministro da Educação dizendo que alunos com deficiência atrapalham o aprendizado dos que não têm. Como você enxerga essa questão?

É muito fácil para o governo segregar. Muito mais fácil para ele jogar as pessoas com deficiência para um canto porque aí ele foge da responsabilidade de pensar em capacitar professores e acessibilizar escolas.

E, no meu pensamento e pela minha experiência, pessoas com e sem deficiência conseguem conviver juntas. E isso é maravilhoso. Na minha infância e adolescência foram muitas dificuldades, o preconceito, a discriminação, mas ir para a escola fortaleceu o Clodoaldo Silva. Lembro que eu jogava futebol, era o goleiro, e, na época, eu usava muletas. Eu tomava muitos frangos, mas qual bom goleiro nunca tomou frango? Não tem! (risos). Aí quando eu tomava gol, os meus amigos vinham me xingar. Era "Clodoaldo, seu filho disso, seu filho daquilo". Cara, eu ficava feliz da vida! Só me fortaleceu, porque naquele momento ninguém tinha dozinha de mim, pelo contrário.

Ninguém é igual, talvez você tenha facilidade de aprendizado em uma matéria, e eu em outra. São especificidades que existem para pessoas com ou sem deficiência. O professor tem que observar, captar e dar esse auxílio. Muitas pessoas com deficiência podem estar na mesma sala que pessoas sem. É uma troca muito rica de mundos diferentes que se encontram e trocam entre si.

Você já afirmou que seu sonho era que um dia as pessoas com deficiência pudessem ser vistas com respeito e de uma forma "igual, normal e natural como qualquer outra". Qual caminho a gente precisa tomar para alcançar isso?

Eu acredito que a partir do momento que nós tivermos mais acessibilidade nas cidades, o jogo fica mais justo para todo mundo. Nós não precisamos ser tratados como coitadinhos. O que a gente precisa é de oportunidade. E essa oportunidade pode vir simplesmente se as pessoas cumprirem a lei. Quando isso acontecer, a pessoa com deficiência vai ser mais uma, com suas diferenças, claro, mas pô, isso é legal. A vida pode ficar mais gostosa por causa dessas diferenças, para não ficar todo mundo igual, né? É bom até mesmo para nós nos tornarmos seres humanos melhores.

Conviver com as diferenças faz você aprender e crescer pessoal e profissionalmente, porque eu vou aprender com você uma coisa que eu não sabia, que nunca tinha passado pela minha cabeça, e você vai aprender comigo algo que você não sabia.

Clodoaldo Silva

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