As duas vidas de Christina

Ela morou em uma caverna e dormiu nas ruas de SP até ser adotada por família da Suécia. Hoje, ajuda crianças

Ana Prado Colaboração para Ecoa, de São Paulo Arquivo pessoal

"Acho que decidi escrever um livro quando tinha oito anos e saí de um abrigo na periferia de São Paulo para morar em uma pequena vila de 2.500 pessoas na Suécia.

Lembro de dizer para a minha mãe adotiva 'um dia eu vou contar minha história', porque era tudo muito novo. Eu estava começando a entender que a sociedade podia ser muito diferente daquilo que havia experimentado até então.

Essa vontade reapareceu alguns anos atrás, quando comecei a notar mudanças na sociedade sueca com a chegada de imigrantes e o surgimento de grupos de extrema direita.

Queria fazer alguma coisa para promover a união, e acredito que, ao compartilhar a história das minhas duas vidas em culturas tão diferentes, posso ajudar os leitores a se colocarem no meu lugar e entenderem que somos todos iguais. Além disso, uma parte do dinheiro com as vendas do livro é destinada a ajudar crianças do Brasil a terem um futuro melhor".

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Brasileira e best-seller na Suécia

Apesar de viver desde criança no norte da Suécia, Christina Rickardsson atende a videochamada com a reportagem de Ecoa reclamando do frio em Diamantina (MG). "As casas na Suécia estão preparadas para o frio, o que significa que elas são aquecidas por dentro. Aqui no Brasil, elas estão preparadas para o calor, então são incrivelmente frias no inverno", explica, em inglês. "O chão, as paredes, tudo é muito gelado".

Ela está no Brasil desde o fim de 2020 para ficar perto da mãe biológica, com quem ficou sem contato por 24 anos. "Vi as fronteiras se fechando e fiquei preocupada. Minha mãe está com problemas de saúde e se algo acontecesse eu não poderia visitá-la. Achei melhor estar por perto", conta.

Christina nasceu Christiana Mara Coelho, em 1983. Teve a infância atravessada por carências e violências comuns às de milhares de famílias empobrecidas no Brasil. Seu nome, assim como toda a sua vida, mudou quando foi adotada por uma família sueca. Christina tinha passado parte da vida até então morando em uma caverna em Diamantina (MG) ou nas ruas de São Paulo.

Sua história a inspirou a escrever o livro "Nunca deixe de acreditar" (editora Novas Ideias), que se tornou best-seller na Suécia e foi traduzido para mais de uma dezena de idiomas. Hoje, aos 38 anos, dá palestras pelo mundo e mantém uma fundação para ajudar crianças brasileiras. Enquanto passa esses meses no Brasil, está aproveitando para terminar seu segundo livro, que será uma continuação do primeiro.

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A vida em uma caverna

As lembranças mais antigas de Christina se passam todas em meio às florestas e cavernas de Diamantina. Sua única companheira era sua mãe, Petronilia; sua única ferramenta, um machete (espécie de facão) com a qual as duas se defendiam de inimigos silvestres, arrumavam comida, cortavam vegetais e abriam caminho na mata fechada.

Apesar das dificuldades, Christina se lembra com carinho daquele período. "O tempo que passamos juntas na caverna foi o mais feliz da minha vida. (...) O mais difícil para nós era a fome, a busca pela comida e a sobrevivência a todos os animais, como cobras, aranhas e escorpiões. Mas sentia-me segura e aconchegada", conta ela no livro.

Animais peçonhentos e plantas venenosas eram o principal perigo por ali, mas Petronilia treinou a filha para reconhecê-los e evitá-los. A mãe também costumava trançar folhas de palmeiras para proteger a entrada da caverna e para servir como colchão para dormir.

Na maior parte do tempo, os únicos sons por ali eram os da floresta, e as únicas vozes eram as de mãe e filha. "Poucas vezes ouvi o barulho do motor de um carro, que andava pela estradinha de terra lá embaixo", escreve.

A última coisa de que ela se lembra sobre aquela vida é uma perseguição misteriosa. Era noite, ela tinha cinco anos e estava dormindo sozinha na caverna quando foi acordada pela mãe com uma sacudida. Pedindo silêncio, a mulher indicou que era preciso correr.

As duas fugiram pela floresta e se esconderam em um buraco ao ouvir as vozes de homens e perceberem a luz de uma lanterna próxima. Não foram pegas, e Christina nunca descobriu de quem fugiam. Mas pouco depois as duas pegaram a estrada com destino a São Paulo.

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Christina e Patrick após a mudança para a Suécia

Nas ruas de São Paulo

Sair de uma floresta para se virar sozinha nas ruas de uma megalópole foi o primeiro grande choque na vida de Christina. Depois de adulta, ela entendeu por que a mãe havia preferido viver na caverna por tanto tempo: "As pessoas são mais perigosas que os animais venenosos", costuma dizer em palestras.

Logo que chegaram a uma comunidade no bairro da Brasilândia, na zona norte de São Paulo, as duas dormiram sobre pedaços de papelão no canto de um túnel. Antes de pegar no sono, conversaram sobre a vida e sobre Deus. "Adormeci muito feliz naquela noite. No outro dia, acordei com o ruído dos carros (...) e com pessoas andando sem ao menos notarem nossa presença", escreve.

As lembranças de nossa infância costumam ser pontuadas por buracos na cronologia. Para Christina, em algum momento após a ida para São Paulo, ela ganhou um irmãozinho. No livro, conta que não se lembra da gravidez da mãe: "Só sei que um dia ele apareceu na minha vida. Era um bebê que dava pouco trabalho, não chorava nem gritava muito."

Christina passava muito tempo sozinha ou cuidando do irmão, Patrick, mas logo fez amizades que a ajudaram a sobreviver naquele novo ambiente permeado por violência e fome. A situação só mudou quando Petronilia levou as duas crianças para um abrigo. Foi ali que, quando o menino tinha quase dois anos, ambos foram adotados pelo casal de Vindeln, uma pequena vila de verões curtos e invernos rigorosos.

Somos feitos para superar muito mais do que imaginamos

Christina Rickardsson, autora e palestrante

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Christina e sua mãe sueca, Lili-Ann Rickardsson

Adaptação a um novo mundo

Ao lado do irmão, Christina chegou à Suécia no verão, aos oito anos. Sua casa era como as tradicionais construções suecas, de madeira pintada de vermelho, e tinha uma cerca marrom que contornava o jardim. "Eu olhava a vizinhança e tudo era tão em ordem e limpo. Não havia pessoas morando na rua e todo mundo tinha um emprego", conta. Uma de suas maiores surpresas foi o fato de ninguém trancar a porta ao sair de casa. "Eu pensava 'Vocês serão roubados!'. Era uma sociedade muito diferente".

A Ecoa, ela descreve a experiência como um grande choque tanto para o corpo quanto para a mente: "Tudo o que era familiar para os sentidos ficou diferente. O calor do sol, o ar, a grama, as árvores, a comida, os cheiros...". Internamente, dois sentimentos lutavam entre si: a curiosidade natural para uma criança em um mundo novo e o medo daquelas pessoas cuja língua, cultura e religião ela não entendia.

Mas a menina logo entendeu a importância de se adaptar. "Não tive tempo para pensar sobre como eu estava me sentindo - só estava preocupada em sobreviver, como fiz na caverna, nas ruas de São Paulo e no orfanato. E para isso é preciso se enturmar", explica.

Movida por essa urgência, aprendeu sueco em apenas dois meses. Sua técnica consistia em apontar as coisas para que a mãe adotiva ensinasse seus nomes. Christina então repetia e memorizava as palavras.

O método funcionou, mas fez com que esquecesse a língua materna. "Mais tarde, um linguista e alguns psicólogos me disseram que se simplesmente dissesse o nome dos objetos em português antes de falar em sueco isso não teria acontecido", conta ela, que está aproveitando a vida em Minas para reaprender o idioma.

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De volta às origens

Em 2015, com 32 anos, Christina decidiu contratar um detetive para encontrar sua família no Brasil. Algum tempo depois, ele conseguiu localizar a mãe, duas tias e alguns primos. Animada e um pouco assustada, ela embarcou naquele mesmo ano para o país natal junto com uma amiga brasileira que lhe ajudaria como intérprete.

Ela revisitou a comunidade e o orfanato em que viveu em São Paulo e seguiu para Belo Horizonte, onde sua família estava morando. Naquela ocasião, as tias lhe contaram que Petronilia lutava contra diabetes e doenças psiquiátricas - que já existiam quando Christina nasceu.

"Fico impressionada com ela, pois, apesar da doença, pôde me dar amor, educação, carinho e um grande sentimento de lealdade. Sei que todos esses sentimentos salvaram a minha vida muitas vezes", escreveria mais tarde no livro.

Ao voltar para a Suécia, Christina entendeu que precisava fazer mudanças em sua vida: queria ajudar outras pessoas. Passou a dar palestras contando sua história, escreveu o livro e criou uma fundação, a Coelho Growth, para ajudar crianças e jovens em situação de vulnerabilidade no Brasil. O orfanato onde morou foi uma das primeiras instituições a serem beneficiadas.

"Para fazer uma mudança, é preciso falar sobre o problema, não fingir que ele não está lá. Eu falo, mas tento trazer diferentes tipos de soluções também. Como tive dois tipos muito diferentes de vida, sinto que tenho outra perspectiva e faço o que posso para educar e ajudar", diz.

A fundação recebe doações de empresas e pessoas físicas, além de parte do lucro com a venda do livro de Christina. O dinheiro é usado em ações educativas e de combate à fome em orfanatos, comunidades e outras instituições em São Paulo, Diamantina e outras cidades. O trabalho da fundação também envolve jovens na Suécia, ajudando a combater a xenofobia.

Acredito que a educação seja a pedra angular de qualquer sociedade. Temos que educar as pessoas para que elas entendam seus direitos, cobrem os governantes e trabalhem juntos para que todos tenham uma vida melhor

Christina Rickardsson

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