Mais uma formiguinha

Com mutirão e doações, Thiago Ávila ajuda a levantar R$450 mil para levar cestas agroecológicas a quem precisa

Juliana Sayuri Colaboração para Ecoa, de Toyohashi (Japão) Diego Bresani

"Sou de Brasília, mas juro que sou inocente. Brinco que nasci e cresci na Brasília 'bolha', mas me tornei adulto no Distrito Federal, uma unidade profundamente segregada, a cidade mais desigual do Brasil. Era um jovem comum de classe média, tive oportunidade de estudar, viajar, viver experiências incríveis - nenhuma delas tão impactante quanto chegar na Bolívia, por puro acaso, na vitória do primeiro presidente indígena da história, Evo Morales.

Era 2006, tinha 19 anos e foi ali que descobri meu propósito de vida. Vi o povo em festa e quis entender o que estava acontecendo. Rodei Bolívia, Chile, Equador e fui vendo uma onda de esperança que tomava a América Latina. Aprendi com os povos originários uma outra lógica, um outro modo de conviver no mundo: o bem viver.

Bem viver é um conhecimento ancestral, é como muitos povos latino-americanos pensam sua relação com o planeta, os bons conviveres. Quer dizer construir uma sociedade boa, uma sociedade bela, livre de exploração e todo tipo de opressões, fazendo um link entre cidade, campo e floresta. Na volta, decidi mergulhar no Brasil, o Brasil real, não a Brasília bolha. Passei meses em aldeias, assentamentos, ocupações. Dormi em cima de árvore, acampamento, barraco.

Era super curioso, mas cru, na ânsia de querer mudar o mundo em um dia. Precisei parar e aprender a ouvir: fui atrás de lideranças indígenas e camponesas, que felizmente me abriram as portas e me mostraram a dinâmica de vida nos seus territórios. Essas experiências foram me moldando. Decidi dedicar minha vida à causa do bem viver, que é um trabalho de formiguinha, uma construção coletiva dia após dia. Todo mundo junto. Não sou líder, nem porta-voz de nada. Sou só mais uma formiguinha."

O Garoto dos Panfletos

Diego Bresani/UOL Diego Bresani/UOL

Thiago Ávila é um ambientalista brasiliense de 34 anos. Foi um dos articuladores do "Mutirão do Bem Viver", uma iniciativa que arrecadou mais de R$ 450 mil em um crowdfunding para distribuir cestas agroecológicas a populações vulneráveis na pandemia de covid-19 - a palavra "mutirão", lembra ele, vem do tupi antigo e quer dizer "trabalho coletivo pelo bem comum".

Com o valor arrecadado, o movimento comprou hortaliças de 63 famílias agricultoras (a fim de garantir renda para pequenos produtores que ficariam com as safras encalhadas) e as entregou a mais de 2 mil famílias de assentamentos, favelas, ocupações, quilombos e ruas (para nutrir quem, caso contrário, poderia passar fome na pandemia).

A iniciativa mobilizou mais de mil voluntários para organizar e distribuir as cestas agroecológicas, 6.582 até fins de outubro, alcançando 101 territórios, em 47 cidades, espalhadas em 18 estados, de Porto Velho (RO) a Porto Alegre (RS). "Esta é a fase 1. A fase 2 é voltar e montar hortas, cozinhas e creches nessas comunidades. A 3 é incentivá-las a participar de outras ações para construir uma sociedade do bem viver. Faz parte de um projeto revolucionário. É pequeno, mas é imenso", considera.

"Não cuido diretamente das finanças, fujo disso [risos]. Meu papel foi mais convidar gente para doar", diz o ativista, um dos organizadores do Festival do Bem Viver, uma live que contou com a participação de artistas como Chico César, Badi Assad e Kaê Guajajara. Ávila abriu o festival tocando "É só imaginar", versão de "Imagine", de John Lennon, abrasileirada por Arleno Farias.

Ávila sorri. Casado com a socióloga Sabrina Fernandes, filiado ao PSOL, integrante do coletivo Subverta e apresentador do Bem Vivendo no YouTube, ele lembra um estilo bicho grilo, de barba, bata branca e violão a tiracolo. Discreto, não faz alarde de sua trajetória e diversas vezes deixa de lado a performance de influencer na internet para priorizar ações "mais mão na massa", como projetos coletivos de bioconstrução e agrofloresta.

"Foi um processo gradativo de aprendizado para não cair na síndrome do branco salvador. Sei dos mil privilégios que tenho na hierarquia de opressão - homem, hétero, cis, classe média, branco. Tive muita sorte de encontrar pessoas que tiveram muita paciência com minhas falhas durante minha desconstrução. É paciência de quem está ensinando e vigilância constante de quem está querendo aprender", diz ele, que começou fazendo panfletos para movimentos.

Um agente internacional

Diego Bresani/UOL  Diego Bresani/UOL

Ao voltar da aventura latino-americana, Ávila começou a contribuir com os movimentos com o que podia: cartazes. Tentava produzir peças com design mais atrativo, para comunicar melhor a mensagem dos protestos. "Primeiro foram os panfletos. Depois fiz traduções, releases, atas. Não chegava lá dizendo que o movimento devia fazer isso ou aquilo, assim ou assado. Ia lá e perguntava: onde posso ser útil?", lembra.

Embora tenha um diploma de publicidade e propaganda do IESB, o ativista nunca se adaptou ao estilo de ensino formal, mas queria aprender mais - um aprendizado que não viria dos campi, mas de uma poltrona de hospital.

Catorze anos atrás, a mãe de Ávila teve três AVCs, quase morreu, foi reanimada, ficou em coma, acordou e até hoje tem sequelas, que lhe levam diversas vezes à UTI. "Foi o momento da minha formação política. Ficava dias, semanas em uma cadeira de hospital como visitante, ao lado da minha mãe, lendo. Li os clássicos da história das revoluções, pedia a amigos apostilas e livros que estavam nas ementas de cursos de pós de ciência política, serviço social, sociologia, relações internacionais. Nunca quis um título, um diploma, só queria aprender", conta.

Os pais de Ávila eram servidores públicos, um do Senado, outro do Judiciário. Com o adoecimento da mãe e as altas tarifas do tratamento médico, mesmo com o convênio de saúde, a família se deparou com uma dívida de cerca de R$ 1 milhão. O pai também adoeceu e depois o casal se separou. "Virei o responsável legal por minha mãe. De repente, lá estava eu, na casa dos 20, com uma dívida milionária. Pensei: preciso trabalhar e ganhar dinheiro para cuidar da minha mãe."

Na época, ele colaborava com uma organização que estava intermediando o ingresso de refugiados colombianos no Brasil. Abriu uma cooperativa para lidar com migrações e causas humanitárias e que, no paralelo, passou a oferecer consultoria internacional, com serviços como assistência para obter passaportes e vistos. O negócio deu certo e passou a pagar as contas da casa.

Ávila rodava o Brasil de carro para promover a consultoria internacional, visitando agências de intercâmbio e de turismo. Estava em Florianópolis às vésperas da Páscoa de 2013, quando se deu conta que não via a família fazia dias. "Estava trabalhando tanto, tentando equilibrar a vida entre pagar os boletos, bancar a causa e militar, que não tinha tempo para mais nada. Lembro como se fosse ontem: descobri que era domingo de Páscoa e que minha mãe estava me esperando. Precisava vê-la."

Chovia na Rodovia Régis Bittencourt. O ativista pegou a estrada de madrugada para encontrar a família a tempo e, por volta das 4 horas da manhã, capotou. O carro ficou destruído, à beira de um abismo. Ávila só teve pequenos cortes. "Nasci de novo. Não estou nesse mundo para ficar em cima do muro, decidi de vez nesse dia. Quero é mudar esse mundo", diz.

O acidente foi crucial. Após conversar com a família, ele decidiu deixar a consultoria e se dedicar ao ativismo. Fez uma transição lenta ao longo de 2013, literalmente contando os dias no calendário para se desvincular da companhia - 1º de janeiro de 2014 foi o marco dessa virada. "Preferi desacelerar, diminuir padrão de vida e dedicar minha vida à luta por um mundo melhor", lembra ele, que quitou uma das dívidas milionárias, mas deixou a outra pendente no banco. "Hoje minha fonte de renda vem exclusivamente do Apoia-se."

Cada vez mais envolvido com movimentos sociais, entre mutirões de bioconstrução e agrofloresta, protestos e brigadas, o ativista foi ganhando fama, bem ou mal. De um lado, passou a recrutar novas "formiguinhas", ajudou a instituir o MTST no Distrito Federal, articulou-se com famílias ambulantes, campesinas, indígenas Guarani-Kaiowá, ajudou a mobilizar comunidades agroecológicas no assentamento Canaã, em Brazlândia, e na aldeia Morro dos Cavalos, em Palhoça (SC).

De outro, a presença constante em manifestações lhe deixou no radar das autoridades. Nos protestos contra a Copa de 2014, por exemplo, cogitou-se que Ávila era "um agente internacional infiltrado para desestabilizar o governo distrital", segundo lhe relatou uma amiga que trabalhava na EBC (Empresa Brasil de Comunicação), a agência pública de difusão de notícias do governo federal.

"O pessoal presume que é o cara branco que está liderando a manifestação, que tem segundas intenções, que tem interesses, quer se eleger ou algo assim. 'Thiago, tu quer uma guerra?', uma vez um coronel me perguntou. Eu? Vocês é que estão espancando trabalhador. Eu quero é que vocês parem para ouvir as reivindicações de quem está sendo despejado, atropelado, agredido todo dia", diz.

Na trave

Diego Bresani/UOL  Diego Bresani/UOL

Ávila concorreu a um cargo público apenas uma vez, nas eleições de 2018. Durante uma viagem à Chapada dos Veadeiros para o Fórum Alternativo Mundial da Água, o Fama 2016, ele conheceu o grupo liderado por João Yuji em Alto Paraíso (GO), que foi eleito com a primeira proposta de mandato coletivo no país. Foi o estalo para a ideia de propor um mandato coletivo em Brasília: com o número 50555, Ávila disputou uma vaga de deputado distrital junto a três companheiros, a ativista indígena Airy Galvão, o coordenador do MTST-DF Eduardo Borges e a advogada feminista negra Nádia Nádila - receberam 6 mil votos e não foram eleitos. "Bateu na trave."

Nádila e Ávila se conheceram durante a bioconstrução de casas no Sol Nascente, uma das maiores favelas da América Latina, em um mutirão que reuniu cerca de 700 pessoas, no fim de 2017. Bioconstrução quer dizer construir com materiais e técnicas sustentáveis, com o menor impacto ambiental possível, como bambu a pique, baldrame de superadobe e estrutura para captar água de chuva. "Thiago é simples, super carismático, sorridente e diplomático. Tenta construir a melhor relação com todas as pessoas e eu tô sempre aprendendo com ele, a ver o lado bom das coisas, a ter esperança. Porque a esperança é revolucionária", diz Nádila, 30, natural de Teresina (PI) e instalada em Brasília.

Na segunda seguinte às eleições, com a passagem de Jair Bolsonaro (então no PSL, hoje sem partido) para o segundo turno, eles montaram "banquinhas pela democracia" na rodoviária do Plano Piloto, uma das campanhas de "vira-voto" a favor de Fernando Haddad (PT), que também bateu na trave.

Ávila lembra as derrotas nas urnas sem rancor. O tom otimista e esperançoso se tornou sua marca registrada nos movimentos. Foi Plínio de Arruda Sampaio (1930-2014) que certa vez, na campanha de 2010, lhe ensinou como lidar com contratempos na política. "Estava todo moído e encontrei Plínio, um senhor de uns 80 anos que sobreviveu ditadura e tudo mais, nas ruas com todo gás. 'Como você dá conta?', perguntei. 'Tem três pontos para sobreviver tempos terríveis', ele me respondeu: 'não se render, não se deixar destruir e celebrar pequenas vitórias'. Virou meu mantra", conta.

Embora não tenham vencido com o mandato coletivo ou com a campanha vira-voto pró-Haddad, o ativista já considera uma vitória a mobilização de setores da sociedade para causas novas, como o projeto ecossocialista, impulsionado, por exemplo, pelo Subverta. Lançado em 2017, o coletivo reúne mais de 200 militantes, entre eles expoentes de influenciadores digitais de esquerda como Sabrina Fernandes, Samuel Silva Borges e Dimitra Vulcana.

O pessoal brinca que é a organização com mais youtuber por metro quadrado.

Thiago Ávila

Viver bem, bem viver

Enquanto o Subverta é uma organização política, a Sociedade do Bem Viver é uma ideia que aglutina diferentes movimentos, de ambientalistas a sindicalistas. "O bem viver", diz o ativista, "não tem líder. Ninguém pode ser dono disso."

Segundo Ávila, a ideia se inspira nas filosofias "sumak kawsay" do povo quéchua, "suma qamanã", dos aimarás, "teko porã" dos guaranis, com influência do "swadeshi" da Índia e "ubuntu" de alguns povos bantu. "Bem viver é almejar um mundo onde caibam vários mundos."

Para se construir esse mundo, os ativistas veem duas estratégias. De um lado, atuar dentro das instituições, disputando eleições com mandatos coletivos e campanhas. De outro, mobilizar "maioria social" na sociedade para formar "uma aliança revolucionária entre cidade, campo e floresta, capaz de acabar com a exploração e as opressões - de classe, gênero, sexualidade, raça, religiões - e de frear a destruição do planeta". Uma aliança, exemplifica ele, "de ativista, acadêmico e agricultor, indígena, quilombola, quebradeira de coco, biólogo, catadora de mangaba, catador de reciclável, mãe crecheira e por aí vai".

"Bem viver não quer dizer se isolar e ir viver em uma ecovila, abraçar árvore e torcer que tudo vai dar certo. É buscar construir, pouco a pouco, as bases para uma sociedade socialista em harmonia com a natureza. Isso acontece na cidade, campo e floresta - você está construindo uma casa e discutindo concentração de terra, está colhendo um pé de alface e conversando sobre agrotóxicos, está lá na rodoviária com os camelôs e conversando sobre direito à moradia digna, informação, renda e assim por diante. Cada encontro a gente conversa para discutir o sentido político do trabalho que está sendo feito", relata. "São as pequenas revoluções do cotidiano. Revolução no século 21 não quer dizer pegar no fuzil, quer dizer trabalho de formiguinha", define.

Ávila sorri cada vez que cita as conquistas dos movimentos, mesmo as mais singelas como ouvir de jovens até então despolitizados as palavras "poder popular" pela primeira vez. "No início, eu era muito duro e bravo nas minhas intervenções. Continuo indignado, mas com o tempo vi que as pessoas tendem a ouvir mais se você transmite ideias com amor e alegria. O projeto revolucionário é pesado, pede muitas renúncias e muitas vezes perdemos amigos para a violência sinistra de capangas, cavalaria e tudo mais. Por isso é tão importante lembrar das pequenas vitórias", diz. Lembra da mãe que, apesar das sequelas e do vaivém de internações na UTI, está recuperando movimentos. "Ela me ensina como a gente consegue arrancar muita alegria da vida. É o objetivo final: transformar o mundo e ter o máximo de felicidade até lá."

Sou pau para toda obra. Cozinho, costuro, faço faxina, lavo, reciclo. Sempre fiz trabalhos voluntários, mas não sabia exatamente o porquê. Conheci o trabalho do Bem Viver no Facebook, dei like e mandei inbox: quero participar, como faz? Foi Thiago quem me respondeu, me convidou para mutirões e até me arranjou carona para ir aos assentamentos do Sol Nascente e de Planaltina. Foi aí que descobri o porquê: pôr a mão na massa, mexer na terra, levantar uma casa, construir um mundo melhor. Na hora abracei a causa. Virei uma formiguinha

Maria Vilma Reis, 40, ativista de Brasília

Na Brazlândia, a gente vive da roça. Planta alface, cheiro verde, espinafre, rúcula, rabanete, goiaba, morango. Foi Thiago que me incentivou a plantar uns anos atrás. Aí comecei, gosto de trabalhar na terra. Na pandemia, ia tudo murchar, porque não tinha como entregar. Aí os meninos do Bem Viver vieram comprar tudo e foram entregar na casa de outras famílias. Eles ajudaram todo mundo. Se não fosse por eles, a gente nem tinha renda. A gente fica feliz por saber que vai plantar e vai ter quem entregar e para quem entregar

Maria Rosa, 50, agricultora, de Brazlândia

+ Especiais

Nicolas Noel

Nádia Nádila

"Não é o agronegócio quem põe comida na mesa"

Ler mais
Karime Xavier/Folhapress

Sabrina Fernandes

A doutora marxista pop que une socialismo, veganismo e YouTube em uma frase

Ler mais
Iago Aquino/Acervo Pessoal de Hamangaí

Hamangaí Pataó

"Maior potência de mulher indígena jovem" luta pela causa, mas refuta rótulo de ativista

Ler mais
Topo