O lixo me salvou

Telines Basílio saiu da rua, abandonou as drogas e virou líder de cooperativa graças ao que você joga fora

Bárbara Forte De Ecoa, em São Paulo Iwi Onodera/UOL

"Eu não adotei uma filha. Fui adotado como pai.

Joselma costumava ir ao ferro-velho para levar comida ao tio José todos os dias. Com um olhar doce, ela não via a gente, que trabalhava como carroceiro, com os mesmos olhos do resto da sociedade. Não havia discriminação, mesmo com minha aparência maltrapilha e o cheiro de álcool.

Eu a ajudava com a tarefa da escola, e um laço de amizade foi sendo criado. Até que um dia ela olhou nos meus olhos e disse: 'Posso te chamar de pai? Se eu tivesse um pai, eu queria que fosse igual a você'. Isso acabou comigo.

Escondido de Margarida [a mãe da garotinha], eu comecei a frequentar as reuniões da escola - me arrumava todo, ficava cheiroso. Afinal, eu já me via como seu pai. Certo dia, a mãe me chamou na casa dela — preocupada, com razão — para saber por que eu estava me aproximando da filha de apenas 12 anos.

Joselma não fez apenas a ponte para eu conhecer minha esposa, mas também foi um anjo que me ensinou o valor da família. Ela mudou minha vida. Sabe, o mundo devia ser como ela, sem preconceitos."

Iwi Onodera/UOL

O Carioca chegou

Impossível não reparar na chegada de Telines Basílio do Nascimento Júnior, 55, à unidade matriz da Cooperativa de Trabalho de Coleta Seletiva da Capela do Socorro (Coopercaps). O sotaque denuncia de longe que é ele, o Carioca, que está rindo e conversando com os colaboradores de uma das primeiras cooperativas de material reciclável de São Paulo - e uma das maiores do Brasil.

Foi quase como um autodidata que ele deixou a carroça de lado e cresceu no universo dos resíduos, tornando-se uma liderança. Há 11 anos como presidente da cooperativa, ele se mantém firme no cargo.

Entre os 244 cooperados, ele é quase uma unanimidade. Afinal, sob sua administração, a renda de cada um saiu da média nacional (R$ 500) para dois salários mínimos (R$ 2.078). Por dia, 12 toneladas de resíduos são separados para reciclagem - 40% do material da coleta seletiva de São Paulo passa por uma das três unidades da Coopercaps (Interlagos, Paraisópolis e Central Mecanizada de Triagem Carolina Maria de Jesus).

Tamanha popularidade tem relação com a forma com que ele trata as "matérias-primas" do seu trabalho: os resíduos, é claro, mas também as pessoas.

O que é visto pelo mundo como lixo, na verdade, é luxo. Mas é importante lembrar que a reciclagem de resíduos e a proteção ao meio ambiente são consequência. Eu acredito mesmo é na humanidade. A reciclagem que a gente faz é de vidas.

Telines Basílio , presidente da Coopercaps

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Universidade da rua

Os olhos de Carioca lacrimejam toda vez que ele fala a respeito do resgate da autoestima das pessoas. Isso porque, no fundo, ele também está falando de si. Antes mesmo de embarcar rumo a São Paulo, ele enfrentava uma luta pesada contra a dependência química. Foi o vício caro da cocaína que fez com que ele parasse nas ruas.

"Minha experiência no Rio era como repositor de supermercado. Em São Paulo, cheguei a trabalhar na cozinha industrial de uma empresa e de um hospital, mas perdi o emprego. A rescisão? Cheirei todinha."

Carioca chegou na capital há 32 anos. Foi José, o tio da Joselma, que sem nem o conhecer, sugeriu que ele começasse a fazer bicos de carroceiro para o dono de um ferro-velho da região de Interlagos, na zona sul. Ele deixava o RG, pegava a carroça e, ao final do dia, recebia o dinheiro referente ao material coletado.

"'Dá para defender o do almoço ou o da janta', ele me dizia. Acomodado naquela situação, eu continuei pelos 12 anos que se seguiram", conta.

Certa vez eu estava com meu colega num prédio, fazendo a coleta de materiais, quando uma moradora abriu a porta, se assustou e começou a gritar. Ela achou que íamos roubá-la. Na hora, a única reação que eu tive foi explicar que a gente estava tirando o material que era lixo para ela, mas tinha muito valor para a gente. Era nossa sobrevivência.

Telines Basílio , presidente da Coopercaps

A universidade que a rua é ensinou muito a Telines. Ele não chegou ao fundo do poço, mas perdeu muitos amigos, inclusive José. "Quando o conheci, ele era um homem forte, mas foi se acabando, se acabando, até que o encontramos morto no ferro-velho", lembra.

O companheiro de trabalho era dependente do álcool e teve um ataque cardíaco dormindo. Àquela altura, conta Telines, ele já estava muito debilitado, não aguentava nem meia dose de cachaça.

Viver nessa situação não significa que as pessoas não têm para onde ir ou são bandidos. Para Carioca, a sociedade sabe muito pouco sobre a realidade dos moradores de rua. "Todo mundo tem um problema, foi parar ali por um motivo. No meu caso, o objetivo era me esconder atrás das drogas."

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Mudança de rumo

Não foi a perda de amigos que tirou Carioca das drogas. Foi a nova família. A conexão com Joselma, hoje com 32 anos, só cresceu desde então; a preocupação de Margarida com a filha abriu espaço para uma relação que virou casamento; e a chegada de Marcos, o filho mais novo, de 22, também impulsionou uma mudança brusca.

Telines se recorda como se fosse hoje o dia em que deixou a cocaína e o álcool para nunca mais consumir. Ele estava com um papelote da droga. Abriu, despejou duas carreiras sobre uma superfície e cheirou.

"Parecia que eu tinha cheirado um pó de vidro. Queimava tudo aqui dentro", diz. Na sequência, um colega chegou, usou, e não sentiu nada. Carioca tentou de novo, mas foi ainda pior a sensação.

"Eu digo que é coisa divina. Peguei todo o conteúdo, dei para o colega e nunca mais usei aquilo na minha vida. Nem o entorpecente, nem mais nenhum gole de cerveja. E isso já faz 20 anos", conta.

O significado da família mudou para Carioca. E o ajudou a ganhar o amor não apenas dos novos membros, mas também de reconquistar antigos. A mudança para São Paulo (e a relação com bebida e drogas) fez com que se afastasse do pai e do filho, hoje com 33 anos, fruto do primeiro casamento. A mãe de Carioca, Filomena, morreu quando ele tinha quatro anos.

Com a reaproximação, ficou sabendo até que o próprio pai chegou a ser um preso político na ditadura. Também chamado Telines, ele morreu em 2010, mas a tempo de retomarem o contato.

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Como um líder

Carioca atribui ao pai muitas de suas habilidades na relação com as pessoas. A herança fez com que ele - mesmo quando ainda era dependente químico - aproveitasse algumas das oportunidades que contribuíram para ele mudar de vida.

Foram 12 anos como carroceiro, até que a prefeitura de São Paulo, em 2002, reuniu 45 catadores num curso de cooperativismo. Eles recebiam uma cesta básica e o dinheiro da passagem. Carioca foi um dos 22 participantes que conseguiram concluir o treinamento.

No fim, a experiência culminou com a criação da Coopercaps, no ano seguinte. "Carroceiro eu fui, catador eu sou", diz o presidente da cooperativa reeleito a cada dois anos desde 2009.

A cooperativa me fez largar a maneira individual que eu via a minha vida e pensar no coletivo. Quando todos ganham, a possibilidade de eu ganhar mais é maior ainda. Essa liderança me conduziu até a presidência da cooperativa, e as coisas começaram a mudar."

A diversificação do trabalho foi um dos avanços dos últimos 11 anos. Além de coletar, separar, prensar e vender os materiais, a cooperativa começou a vender outros serviços e produtos, como palestras e gestão ambiental em edifícios, por exemplo. Os novos horizontes que se abriram para Telines o incentivaram a buscar mais conhecimento e se especializar em sustentabilidade. A faculdade e a pós-graduação de Telines ajudaram em seu crescimento pessoal, mas também no aumento do faturamento dos cooperados.

Como resultado, houve uma redução de rotatividade e aumento da percepção de bem-estar dos cooperados, principalmente das mulheres — 70% do quadro.

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Raimunda Pereira Varjão, 74 anos

"Das 7h às 17h, de segunda a quinta, e das 7h às 16h, de sexta-feira, eu trabalho na cooperativa. Apesar da aposentadoria que conquistei devido à idade, vir até aqui me ajuda a ter uma vida tranquila e confortável. Ninguém faz corpo mole. Aqui, quanto mais a gente se dedica, mais a gente ganha ao final do mês. No meu horário de trabalho, eu faço de tudo. Separo materiais na esteira, fico no papel, que é onde eu estou hoje. Conheci o Carioca há dez anos, quando ele virou presidente da cooperativa. Sua atuação também mudou nossa realidade por aqui. Desde que ele entrou, o salário aumentou, a alimentação melhorou, temos férias de 15 dias. Consigo pagar a minha casa. Sou mãe de duas meninas - uma chegou a trabalhar aqui. A outra é enfermeira e mora na Dinamarca. Guardando todo mês um pouquinho, consigo visitá-la de vez em quando. Quando penso no Carioca como gestor, só tenho a agradecer. Ele nos trata com respeito e nos faz crescer."

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Carolina dos Reis Carreiro, 32 anos

"Carioca entrou a faculdade de Gestão Ambiental comigo. Prestou vestibular, entrou, mas teve receio de ir à aula no começo. Esperou dois dias até aparecer. Uma professora, então, resolveu pedir que a gente se apresentasse. Ele, com aquele vozeirão e toda sua altura, começou a contar sobre seu trabalho com reciclagem, como catador de cooperativa. Inspirou a gente a perguntar mais, a saber sobre seu trabalho e sua história. E eu fiquei impactada com toda a experiência e ensinamento que ele tinha para passar para a gente. Eu absorvi tudo o que eu pude. O Carioca costuma dizer que eu o adotei na faculdade. Mas, hoje, eu que trabalho com ele aqui, na segurança do trabalho e como tesoureira. Levamos isso tudo muito a sério por aqui. Conseguimos vender os materiais direto à indústria. Criamos vínculos entre as pessoas, geramos valor agregado. Está errado quem fala que aqui tem lixo. Aqui tem resíduos, não rejeitos. E tem um tesouro que gera renda para muitas famílias."

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Jogados na caçamba

Madonna fazia sua turnê no Brasil, em 2012, quando mais uma cadelinha foi abandonada numa caçamba de lixo na região do Morumbi, local de um de seus shows, em São Paulo. Um catador que colaborava com a Coopercaps a levou até o local. O bichinho recebeu o nome da cantora e tornou-se o primeiro animal a viver na cooperativa.

Telines fala com afeto sobre os animais que vivem na sede, em Interlagos. Embora não tivesse muito contato com os animais antes de conhecer Madonna (a vira-lata), agora ele defende o ambiente cheio de gatos - há ao menos quatro por lá.

"Toda cooperativa tem que ter um cachorro e um gato. O dia que você for a uma central e não tiver um animalzinho, saiba que ali não é um lugar bom", comenta.

Além de Madonna, dois outros gatinhos são verdadeiros milagres, segundo Carioca. Os dois filhotes conseguiram passar por todos os processos de lixo, até o que eles chamam de rasga saco, que consiste em um equipamento que fura os sacos todos de resíduo antes da separação. Margaridinha e Carioca, em homenagem ao casal, vivem até hoje por lá

O descarte de animais é comum. Todo dia um cooperado se depara com algum novo animal na porta do espaço. Telines acredita que deixam ali, pois sabem que, pelos catadores, os cães e gatos são realmente cuidados.

Apesar da crueldade com os animais, o presidente da cooperativa avalia que não se pode perder a fé na humanidade.

Você não deve ter uma reação ruim para cada ação negativa. Pelo contrário. Eu acredito muito nas pessoas, se eu não acreditasse, eu não estava hoje aqui."

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