Uma poliana na tecnologia

Criadora da PretaLab, Silvana Bahia quer ver mais mulheres negras tomando decisões em carreiras tecnológicas

Juliana Domingos de Lima De Ecoa, em São Paulo (SP) Lucas Seixas/UOL

"Tenho me entendido hoje como uma ativista de sonhos. Primeiro, porque sou uma poliana. Eu acredito no afeto, na transformação do mundo, e, acima de tudo, que a nossa capacidade de sonhar faz com que a gente transforme a realidade. Matam a gente quando tiram a nossa esperança, nosso poder de imaginar um outro tipo de vida.

A PretaLab tem muito a ver com a minha trajetória e com essa ideia de 'Será que dá para fazer o impossível? Será que dá para ter mulheres negras codando, trabalhando com tecnologia, tomando decisões?'

Eu queria atingir a subjetividade dessas mulheres. Tenho certeza de que ver mulheres negras falarem a partir dos seus trabalhos em tecnologia dá um gás para que outras sintam que esse universo é uma possibilidade."

Em 2022, a PretaLab, um projeto voltado à inclusão de mulheres negras nas áreas de tecnologia e inovação, completa cinco anos de existência. Elas ainda são minoria nas empresas de tecnologia do Brasil — correspondem a 11%, segundo o relatório mais recente divulgado pela PretaLab, mesmo sendo 28% da população brasileira.

Mas houve avanços nesse tempo: o projeto conseguiu mapear e conectar centenas de mulheres negras que atuam na área, dando a elas maior visibilidade e tornando esse campo de atuação uma possibilidade para aquelas que não se enxergavam trilhando um caminho na tecnologia. Ofereceu palestras, formações e oportunidades de trabalho para mulheres negras em tecnologia e pautou, junto a empresas e organizações, a urgência de ter mais representantes delas na área para a construção de tecnologias melhores e menos enviesadas.

Tudo isso nasceu do incômodo da jornalista carioca Silvana Bahia com a falta de mulheres como ela nos espaços de tecnologia e inovação. A idealizadora da PretaLab também é uma das diretoras executivas do Olabi, ONG voltada à transformação social por meio da democratização das tecnologias, e, como muitas, jamais se imaginou ocupando esses lugares.

Silvana nasceu na Lapa, no centro do Rio, filha de uma empregada doméstica e costureira afroamazônica com um músico negro. Viveu parte da adolescência no Capão Redondo, em São Paulo, depois de sua mãe ficar viúva.

Com o estímulo de professores e o apoio da mãe, que sempre a incentivou a estudar e ser uma mulher independente, Silvana trilhou o caminho que a levou à criação da PretaLab em 2017.

Lucas Seixas/UOL Lucas Seixas/UOL

Com a benção de Jurema

Em 2016, Silvana Bahia foi convidada a falar de um projeto de comunicação no Festival Latinidades, encontro de artistas e intelectuais negras em Brasília. Mas ela também queria apresentar para o público do evento, pela primeira vez, sua criação mais recente: uma iniciativa voltada à inserção de mulheres negras na área de tecnologia.

Foi ali, diante de uma plateia formada por intelectuais negras que ela admirava, como Sueli Carneiro, Cida Bento e Jurema Werneck, que a PretaLab deixou de ser uma ideia para ganhar impulso e concretude.

"Eu estava muito nervosa, com muito medo de falar besteira, de ser rechaçada. Ficava pensando: são tantas as mazelas das mulheres negras e eu aqui querendo falar de tecnologia", conta a Ecoa.

Para sua surpresa, a resposta foi positiva. Depois da apresentação, ela conversou com a médica e ativista pelos direitos humanos Jurema Werneck, que a parabenizou e tranquilizou. Disse que o projeto era importante e que as mulheres negras precisavam estar dentro da tecnologia, que não era possível esperar que todas as "mazelas" fossem resolvidas para pensar nisso.

"Quando a gente começou a desenhar o que seria a PretaLab, algumas pessoas falavam que não ia dar certo, que era o recorte do recorte e ser uma mulher em tecnologia já era muito difícil", diz. "E eu falava: vamos ter que esperar as mulheres brancas se inserirem para depois inserir as negras? Por que não chega todo mundo junto?"

Assim, ainda em 2017, o projeto colocou em prática suas primeiras ações: um mapeamento das mulheres negras que já atuavam na área no país e uma série de vídeos com profissionais negras que tinham um trabalho reconhecido em tecnologia e inovação.

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Alguém parecida comigo

A proposta da PretaLab de inspirar mulheres negras a se enxergarem trabalhando com tecnologia bateu forte em uma advogada recifense que buscava encontrar seu caminho profissional.

Isabelle Lemos tinha interesse em tecnologia, mas nunca havia considerado seguir uma carreira na área, algo que atribui ao sexismo e ao racismo. Em busca de mulheres que se parecessem com ela nos campos da ciência, tecnologia e inovação, caiu em um dos vídeos lançados pela PretaLab.

Ela ainda lembra uma fala de Silvana: "se o mundo é cada vez mais digital e a gente está fora disso, perdemos muito poder de intervenção no mundo". "Aquilo se conectou muito com o meu coração, com a minha verdade", diz Lemos.

Ela decidiu cursar uma especialização em direito digital e, em 2019, passou a integrar a rede da PretaLab, participando de cursos, palestras e podendo trocar experiências com mulheres negras que já atuavam na área.

Além da bagagem técnica, o ambiente de pertencimento e acolhimento e as referências que encontrou ali foram fundamentais. Hoje, Lemos é analista de inovação do Porto Digital, parque tecnológico localizado no centro da capital pernambucana.

A PretaLab tem o mote de mulheres negras pautando o futuro, construindo novas realidades e possibilidades. É algo com que eu me conecto porque na minha vida precisei fazer muito isso, expandir, alargar os meus horizontes quando a sociedade dizia que eles eram estreitos.

Isabelle Lemos, aluna da PretaLab

Qualquer um pode programar

Por muito tempo, a tecnologia também não era um caminho cogitável para a idealizadora da PretaLab. "Eu falava: 'sou de humanas, isso não é pra mim. Sou miçangueira, trabalho com direitos humanos, não vou entender disso'", diz. Sil vinha de uma trajetória profissional em organizações como a Agência de Redes para Juventude e o Observatório de Favelas.

Essa mentalidade começou a mudar quando ela aprendeu um pouco sobre programação em uma oficina voltada para mulheres chamada RodAda Hacker: "Me senti muito poderosa. Se eu tinha aprendido, qualquer pessoa podia aprender".

Foi convidada pela fundadora do Olabi, Gabriela Agustini, a coordenar uma maratona de rodadas em São Paulo. Silvana fez questão de levá-la para bairros periféricos como Parelheiros e Capão Redondo. Queria contribuir para descentralizar o conhecimento sobre tecnologia.

Em dezembro daquele ano, ela assumiu um cargo de gestão de comunicação no Olabi. Nos eventos de tecnologia e inovação que ela havia começado a frequentar, porém, quase não havia pessoas negras, muito menos mulheres negras.

Foi assim que teve a ideia de criar um coletivo de mulheres negras na tecnologia, nos moldes de iniciativas como MariaLab, PrograMaria e Minas Programam que àquela altura já pautavam a inserção de mais mulheres nessa área. Ainda faltava incluir o recorte de raça — hoje mais presente graças ao trabalho da PretaLab, que se tornou um projeto dentro do Olabi.

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'A saída é pelo amor'

A PretaLab ainda atua na outra ponta da formação, facilitando a entrada e a retenção de mulheres negras em empresas de tecnologia por meio de consultorias e parcerias. A principal delas é com a consultoria global de tecnologia ThoughtWorks, com quem já desenvolveram uma série de projetos. Segundo Juliana Oliveira, gerente de programas da Thoughtworks Brasil, a empresa conseguiu aumentar significativamente o número de pessoas negras em seu quadro de funcionários já no primeiro ano após o processo. Atualmente, segundo Oliveira, a Thoughtworks Brasil conta com 38% de pessoas negras, sendo 25% lideranças negras.

Hoje com mais de 600 mulheres, a rede da PretaLab também funciona como um banco de profissionais negras da área de tecnologia - de todo o Brasil e especialidades diversas - que pode ser usado por recrutadores.

Em 2019, o projeto começou a ganhar outra dimensão: Silvana passou a receber convites para falar sobre o que vinha fazendo em diferentes países.

"Muitas portas foram se abrindo. Nunca nem pensei que pudesse fazer o que eu faço hoje. Nunca imaginei que seria diretora executiva de uma organização, liderar um projeto como a PretaLab e gerar empregos para outras mulheres negras", conta Silvana.

Nos últimos dois anos, durante a pandemia de covid-19, o projeto se dedicou a ouvir quais eram as necessidades das mulheres da rede, tentando dar a elas diferentes formas de suporte. Foi a partir dessa escuta que, em 2020, a PretaLab lançou seu primeiro ciclo formativo, formação técnica gratuita que já alcançou mais de 250 mulheres negras. O ciclo também se propõe a impulsionar o desenvolvimento pessoal e a saúde emocional das participantes, e tem a psicóloga e professora Mônica Santana à frente desse trabalho.

Ver a quantidade de mulheres negras que se conectaram através da PretaLab, várias das quais já desenvolveram juntas seus próprios projetos, reforça a "polianice" de Silvana. Ela cita o livro da feminista negra bell hooks "Tudo sobre o amor", que lê atualmente.

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Eu me sinto uma pessoa que ganhou na Mega-Sena. Não porque eu ganho muito dinheiro, mas porque ganho dinheiro fazendo uma coisa que eu amo, que eu acredito. Eu realmente acho que a saída é pelo amor: pelo amor ao próximo, pelo amor à causa, pelo amor à vida, pelo amor a essa ideia de se transformar e de transformar a realidade

Silvana Bahia, fundadora da PretaLab

Você precisa conhecer, por Sil Bahia

  • Maria Rita Casagrande

    Desenvolvedora, consultora, mentora de empreendedorismo e participante ativa de debates sobre negritude, questões LGBTQI+ e empoderamento feminino através da tecnologia.

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  • Biamichelle Miranda

    Consultora em diversidade e inclusão, desenvolvedora de software front-end e pesquisadora da Aceleradora Inclusiva, parceria entre PUC-RS e ThoughtWorks. É militante dos movimentos LGBTQIA+ e negro.

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  • Lais Silva Gomes

    Desenvolvedora Full Stack, trabalha na ThoughtWorks e defende a democratização e a diversidade no processo de desenvolvimento de softwares.

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  • Gabriela Mattos

    Formada em Ciência da Computação pela Ufscar, atua como desenvolvedora de software e ministra palestras e cursos sobre programação aliada a questões de gênero e inclusão.

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  • Jéssica Osko

    Desenvolvedora back-end, colaboradora dos projetos Minas Programam, Programaria e PretaLab.

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