Direito ao cuidado

Sheila perdeu seis irmãos por negligências, e hoje luta para que ninguém passe pelo racismo médico que viveu

Adriana Terra Colaboração para Ecoa, de São Paulo Foto: Keiny Andrade/UOL

"Fui diagnosticada aos sete anos, sendo a sexta criança com a doença falciforme em casa. Devido a medicamentos errados, até então eu havia recebido tratamento para reumatismo, o que me gerou complicações ósseas. Minha mãe já tinha perdido cinco filhos e ficou desesperada quando soube, porque ela levava toda a culpa quando as crianças morriam: falavam que era negligência, que ela não nos alimentava direito. Só que a negligência não era dela.

Infelizmente, com 36 anos ela faleceu. Aos 14, tive de aprender a cuidar de mim e da minha irmã de dez, que também tinha a doença. A situação piorou muito pra gente: meu pai arrumou uma madrasta que não entendeu nossa condição e me colocou para trabalhar em casa de família, o que prejudicou ainda mais minha parte óssea, porque eu carregava criança, lavava roupa. Foi uma época em que parei o tratamento, parei de estudar, sofri um AVC, usei muleta... Tive uma adolescência tão difícil que cheguei a tentar suicídio. Até que minha irmã contraiu hepatite em uma transfusão errada. Aí eu falei: "ou a gente aprende a se cuidar ou não vai longe".

A doença falciforme é das mais antigas e comuns no país. Todos podem ter, mas devido a sua origem o número de pessoas negras com ela é maior. O primeiro caso no Brasil foi diagnosticado em 1910, mas só conseguimos políticas públicas em 2005. Sabemos de situações em que homens negros chegaram ao hospital gritando de dor e chamaram a polícia achando que eram 'drogados'; em que chegaram infartando e acharam que era bebedeira...

A falta de escuta e de um olhar humanizado vão causando sequelas irreversíveis. Por isso, quando a gente fala da necessidade de uma política nacional de saúde da população negra, os profissionais têm de entender que não é que queremos um tratamento diferenciado. O que a gente quer é um tratamento igualitário."

Foto: Keiny Andrade/UOL

Racismo médico

São 9h da manhã de uma terça-feira chuvosa em uma casa no distrito central da Bela Vista, em São Paulo, quando a assistente social Sheila Ventura se despede de Débora, que veio do Jardim Danfer, bairro na zona leste a 18 km dali, para receber orientações sobre os direitos da filha. Em um ano atípico, o trabalho de Sheila se tornou ainda mais importante: é preciso se cuidar diante da covid-19, sem deixar de lado outros cuidados que pessoas com a mesma patologia que ela tanto precisam.

Aos 41 anos, a assistente social nascida em Suzano, região metropolitana de São Paulo, é presidente da Aprofe (Associação Pro Falcemicos), organização não governamental que atua pela qualidade de vida de quem tem a doença falciforme. Hereditária, a patologia que afeta a circulação do sangue surgiu a partir de uma alteração nos glóbulos vermelhos em populações principalmente da África subsaariana (ao sul do Saara), mas também da Índia, Arábia Saudita e de países mediterrâneos.

Os deslocamentos tornaram esta a doença genética mais comum no mundo, especialmente entre pretos e pardos: no Brasil, afeta de 6% a 10% da população negra, e de 2% a 6% da população total. O país pode ter hoje até 50 mil pessoas vivendo com ela. O número sobe muito ao observar quem tem o traço falciforme, ou seja, quem não tem a patologia, mas carrega hemoglobinas modificadas junto a hemoglobinas regulares no corpo: cerca de 7 milhões de brasileiros. A cada 35 paulistas, um tem a mutação. Na Bahia, estado com maior incidência da doença, um a cada 17 nascidos vivos tem o traço, segundo o Ministério da Saúde.

Aproximadamente 3500 crianças nascem com a doença falciforme no Brasil por ano. Elas podem ser filhas de pais portadores do traço, ou da doença, ou um do traço e o outro da doença. Para ter a patologia, é preciso que as hemoglobinas modificadas estejam, em algum grau, presentes no corpo de ambos os genitores.

O racismo fez a doença ser tratada sem a devida atenção pelo poder público, e vista com preconceito. No caso de Sheila, é o seu pai, branco, quem tinha a patologia. A mãe, negra, tinha o traço, mas levava a "culpa": "Isso é coisa de vocês", ouvia. Para a assistente social, o resultado disso foram vinte anos de batalha mesmo contra quem devia ajudá-la, mas nem sempre era capaz de ouvi-la.

Foto: Keiny Andrade/UOL Foto: Keiny Andrade/UOL

Fruto da luta

Para quem tem a doença falciforme - também conhecida como anemia falciforme, por se manifestar mais comumente como uma anemia -, um resfriado pode se transformar em uma temporada de meses no hospital.

A causa é que as hemoglobinas ficam em formato de foice, daí o nome da doença. Sheila explica: "Nossas hemácias são redondinhas e amassadas, maleáveis e conseguem circular pelos vasos levando oxigênio para os órgãos. Eu também tenho essas hemácias, mas quando há mudança de tempo brusca, período menstrual, gripe, elas sofrem mutação e ficam rígidas, aglutinam e entopem os vasos sanguíneos. Essa crise gera dores insuportáveis, e quando as hemácias se rompem soltam a bilirrubina, deixando olhos e pele amarelados."

Durante crises como essa, além das dores a assistente social lidava com olhares e comentários. Na condução, via pessoas se levantarem, quando ela se sentava ao lado. Uma mulher chegou a sugerir que ela fosse dependente química ao ver as marcas de transfusão em seu braço. Na escola, recebia apelidos como "olho de coruja" e "sanguessuga".

No bairro, era alvo de boatos. "A ambulância parava todo mês em casa, então a gente era aquela família visada: a vizinhança achava que eu estava grávida, tinha câncer ou Aids, porque era muito magra", conta. Já no hospital, não era Sheila ouvida com atenção. O que gerava mais dor e tempo internada. Um eterno recomeço, classifica.

Contrariando o que ouvia em casa, na rua e no consultório, Sheila conseguiu voltar a estudar, formando-se em Serviço Social. E também foi mãe de Henrique Miguel, hoje com 15 anos, filho e grande parceiro de Sheila. Nesse processo, foi fundamental compreender a doença e o seu organismo. Aos 20 anos ela conheceu a Aprofe em uma visita da instituição ao antigo Hospital Brigadeiro (atual Hospital do Homem), onde fazia tratamento. Ali teve esperança. "Saber que existam outras pessoas com a doença que viviam normalmente foi uma surpresa muito grande, porque a gente morava no Alto Tietê e ninguém conhecia nem os profissionais do hospital", conta.

Quando engravidou, aos 26 anos, Sheila tomava medicamento para não menstruar, por perder muito sangue e sentir muitas dores nesse período, chegando a usar adesivos de morfina. Estranhando seu corpo, que ficou mais inchado, mas sem alteração de peso ou barriga aparente, ela levou a desconfiança ao hospital. "Isso tem a ver com a doença", ouviu, sem receber muito crédito.

A confirmação da gestação só se deu quando Sheila já estava com seis meses e meio de gravidez, em uma consulta na Santa Casa de Misericórdia de São Paulo, quando finalmente foi pedido um ultrassom. Entre a descoberta e o parto, Sheila morou na casa da tia, na Freguesia do Ó, zona noroeste da capital, para facilitar as idas ao hospital - momentos sempre tensos.

"Quando eu chegava no pronto-socorro, diziam até que estava com gestação psicológica. Minha tia chegou a chamar a polícia uma vez que fizeram gesto de que eu era louca". Nessa fase, sentia dores ainda mais agudas, mas não podia tomar a mesma quantidade de morfina. "Tomei várias medicações que a grávida nem pode chegar perto", diz. Justamente por isso, ela não sentia o bebê mexer em sua barriga.

Minha família para exigir tratamento tinha de chamar a polícia. O médico ao ouvir o coração do neném, falou: 'Tem mesmo alguma coisa aí'. Então era desse jeito.

Sheila Ventura, assistente social e presidente da Aprofe

É preciso falar

Com oito meses e poucos dias de gestação, Sheila viveu o que chama de parto solitário. Internada para controlar sua pressão alta e o batimento fraco do coração do bebê, ouviu do médico: "Sheila, a gente precisa tirar a criança e há chance de perder os dois. E a gente quer salvar os dois". A bolsa estourou sem que a equipe percebesse e, ao se darem conta, ela foi levada às pressas para a cirurgia. "Não tinha ninguém da minha família, o medo era muito presente e a dor me impedia de respirar, com o neném preso entre as costelas. A equipe subiu em mim para empurrá-lo",diz.

Após uma cesárea de urgência feita por uma equipe da qual a assistente social lembra com carinho, apesar das situações ruins que viveu em hospitais, Henrique nasceu com pouco peso: 1,3 kg e 29 cm. Depois do parto, Sheila foi para a UTI - todo o sangue que recebia, perdia. Após 31 dias, recuperada, conheceu o filho.

"Hoje ele é enorme e tem uma saúde maravilhosa, de prematuro não tem absolutamente nada, tem 1,81 m de altura e pesa 80 kg", conta, mostrando a foto do adolescente em seu celular. Henrique nasceu com o traço, que não afeta em nada a vida da pessoa. Na época, já era obrigatório no estado o teste do pezinho, capaz de identificar a doença. "Se o bebê tiver traço, após quatro ou cinco meses repete o exame para confirmar", explica Sheila.

A partir da história de Sheila foi criado o Grupo de Gênero com Doença Falciforme pelo Ministério da Saúde, além do primeiro Manual de Mulheres Gestantes com Doença Falciforme. "Porque há 20, 30 anos era frequente morrer a mãe e a criança. Atualmente, não é. Já se sabe que a mulher tem que ser incluída no grupo de risco para ter tratamento adequado: fazer transfusões durante a gestação, ser acompanhada por obstetra e hematologista", diz. "Muita luta acaba dando resultado."

"Hoje eu aprendi que falar é a melhor coisa, porque você encoraja outras pessoas", diz Sheila. Para a assistente social, isso estimula tanto a aceitação por parte de quem tem a doença, quanto combate o capacitismo da sociedade. "Meu pai parou o tratamento porque não se aceitava. Minha irmã também. Ela era dançarina de axé e nunca disse ao grupo com quem trabalhava que não poderia fazer todo aquele exercício. Uma vez desmaiou no palco, mas disse aos colegas que foi porque ficou sem comer. Ela já se sentia diferente por ser muito magra", conta.

"Você tem que ficar sempre mostrando que não é porque tem uma doença limitante que não tem capacidade de pensar, de articular. A gente pode trabalhar, com limitações: se for uma faxineira, vai ter um dia em que passar um pano vai ser difícil, se for servente de pedreiro a mesma coisa. Por isso a gente fala para estudar para ter um serviço sem esforço físico, mas muitos não têm essa oportunidade", diz a assistente social.

Sheila perdeu a irmã quando ela tinha 29 anos, e carrega uma frustração em meio a uma saudade profunda ao falar sobre o caso. Sua luta é, também, por Michele. "Erros médicos causaram uma insuficiência orgânica, prejudicaram o baço, o fígado e os rins. Ela perdeu um rim aos 23 anos e seis anos depois faleceu, devido à insuficiência. Sofreu muito e não aguentou", conta.

A cura da doença falciforme, atualmente, está no transplante de medula, mas ele só pode ser feito entre irmãos compatíveis, o que torna a cura rara. O acompanhamento e o cuidado constantes passam então a ser uma forma de aumentar a qualidade e a expectativa de vida: entender a manifestação das dores, quando é necessário repousar ou ir ao hospital. Mas é preciso que isso seja mais sabido por todos. Uma pesquisa de maio deste ano feita pelo Ibope mostrou que 47% dos brasileiros desconhecem a patologia.

Foto: Keiny Andrade/UOL Foto: Keiny Andrade/UOL

Conquista do Movimento Negro

A visibilidade da doença e uma linha de cuidado, com a criação do Programa Nacional de Anemia Falciforme em 2005 são uma conquista da militância negra. "Por volta de 2000, 2001, quando o movimento negro começa a fazer pressão, a informação passa a contemplar mais detalhes e, sobretudo, detalhes sobre como as pessoas que portam a doença são atendidas", disse em 2017 ao jornal A Tarde o antropólogo Altair Lira, fundador da Associação Baiana de Pessoas com Doença Falciforme. "Nas ciências sociais, a discussão sobre o racismo é muito antiga. No campo da saúde, essa discussão nem começou", falou o antropólogo na ocasião.

Em 2009, quatro anos depois, instituiu-se a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, visando "a promoção da igualdade a partir do reconhecimento das desigualdades e da ação estratégica para superá-las", diz a portaria nº 992.

Para Sheila, reconhecer que a doença afeta mais os negros envolve considerar questões sociais derivadas do racismo. "Essa mãe que acaba de sair daqui, por exemplo, teve de parar de trabalhar para cuidar da filha, então imagina o impacto que isso tem na família. Tem gente que chega às 5h no hospital para fazer exame, vindo de longe com a ambulância da prefeitura sem dinheiro algum, e fica esperando horas sem comer", relata a assistente social. Sheila conta que essas questões muitas vezes passam despercebidas por profissionais de saúde. A Aprofe faz ações para que essas pessoas ouçam casos como os narrados acima.

Arquivo pessoal

"Não haveria mudança se não fosse a gente"

"Sheila é incansável", diz a enfermeira sanitarista Valdete Ferreira dos Santos, 64. Atuante desde o início da década de 1980 no serviço público de saúde, Valdete lutou pelo surgimento do SUS, em 1988, e por ações de enfrentamento ao racismo institucional que perpetua desigualdades.

Há uma década ela trabalha na Área Técnica da Saúde da População Negra na Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo, criada em 2003. "Não haveria mudança se não fosse a militância negra. Nossas conquistas são sempre assim", afirma. A enfermeira situa o teste do pezinho como passo fundamental no cuidado à doença. "Até 2002, muitas crianças morriam sem diagnóstico: 80% não passavam dos 5 anos."

Acervo Pessoal

"Buscamos também ajudar uma à outra"

Foi por meio do teste do pezinho que Débora do Carmo Vaz, 38, descobriu que a filha Kauanny, 8, tinha a patologia. Ela conheceu Sheila Ventura por recomendação da hematologista do hospital em que a filha nasceu, e desde então se tornaram próximas. "A Aprofe tem me ajudado muito em questão de orientação, de como fazer para ter uma qualidade de vida melhor", conta Débora.

Ela precisou parar de trabalhar para se dedicar aos cuidados de Kauanny, e a assistente social a ajudou a obter o auxílio-doença nesse processo. "Ela é uma mulher guerreira, muitas vezes está acamada e hospitalizada. Procuramos, também, ajudar uma à outra", diz a mãe de Kauanny.

Foto: Keiny Andrade/UOL Foto: Keiny Andrade/UOL

Pelo bem viver

Sheila diz que tanto o programa de 2005 quanto a política de 2009 ajudaram a tornar a doença mais conhecida e a capacitar profissionais, mas ainda há muito a se fazer. "O problema é que portarias acabam caindo se entra outra gestão que não acha isso interessante, então elas têm que virar lei. Só assim asseguramos direitos", diz ela. "A gente está vendo hoje o sucateamento do SUS. Essa desconstrução impacta muito nossa qualidade de vida: falta de leito, ter que ficar com dor em casa", detalha.

A assistente social sente falta de campanhas massivas: cartazes na rua, orientações na televisão. "E a população também tem que saber se autodeclarar (cor/raça), porque a gente precisa disso para exigir pesquisa, políticas. Enquanto não mostrarmos um número impactante, não vamos conseguir avançar", acredita.

A Aprofe atua tanto na conversa com a população, quanto na pressão por políticas públicas junto a entidades governamentais. Na Bela Vista, onde está com a associação e onde mora hoje, Sheila organiza rodas de conversa, bazares, almoços comunitários. Participou recentemente de um projeto chamado Negros no Bixiga, que evidencia a origem africana do bairro por meio de histórias de moradores negros, falando sobre a doença em um encontro público e um documentário. A comunicação territorial permitiu que pessoas do entorno também descobrissem ter a patologia.

Na esfera macro, a associação integra o Conselho Estadual e Municipal de Saúde e o Fórum dos Portadores de Patologias. Pela sua atuação, a assistente social recebeu na Assembléia Legislativa de São Paulo, em 2019, a medalha Theodosina Ribeiro, entregue pela deputada estadual e sambista Leci Brandão (PCdoB).

"Antes eu morava no hospital", diz. "Hoje mães veem que o filho pode chegar aos 40, 50 anos". É por essa qualidade de vida que Sheila atende ligações de familiares, visita casas de portadores da doença, ouve demandas e as leva ao poder público. Espera que venham novas Sheilas. E que a patologia não impeça o bem viver de ninguém. "Porque, para a medicina, eu não passaria dos 15 anos. Hoje estou com 41."

Para saber mais sobre a anemia falciforme
A Secretaria de Saúde da Prefeitura de São Paulo reúne nesta página material informativo sobre a doença, incluindo orientações aos portadores da patologia, aos familiares, profissionais da saúde e da educação.

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