Codificando o futuro

Rodrigo Baggio fundou primeira ONG de inclusão digital há 27 anos e influenciou políticas públicas

Juliana Domingos de Lima De Ecoa, em São Paulo (SP) Adriano Vizoni/Folhapress

"Tudo que a gente começa a vislumbrar de grandes desafios do capitalismo de vigilância - falta de liberdade, de proteção do usuário e da sua pegada de internet - gera problemas éticos e de valores sem precedentes na história da humanidade.

A base da metodologia da Recode é uma visão de mundo ética e cidadã, com o intuito de formar 'tech changemakers' [agentes de transformação na área de tecnologia].

Há temas que são disruptivos para a humanidade e é necessário um novo modelo mental, um novo sistema educacional para lidar com eles, com a Quarta Revolução Industrial. Precisamos criar no Brasil um plano nacional de empoderamento digital que possa integrar os diversos setores, criando um planejamento de curto prazo com inclusão, educação digital e 'reskilling' [requalificação], e de médio e longo prazo com agências que regulem o uso de inteligências artificiais e esses novos mercados criados através dessa tecnologia.

A Recode quer ajudar a construir uma sociedade com mais equidade, mais liberdade, mais solidariedade no uso dessas tecnologias.

Quando você cria inovação num campo, você inspira todo um ecossistema a se formar"

Aos 12 anos, Rodrigo ganhou um presente que mudou sua vida. Era 1982 e seu pai chegou em casa com um TK82, um dos primeiros modelos de computador pessoal a existirem no Brasil.

"Era daqueles que só tinha CPU. Você tinha que pegar o monitor preto e branco, uma fita cassete que ia gravar o programa, e programar o jogo que ia jogar. Eu fiquei absolutamente encantado com a perspectiva de ser programador. Foi aí que me apaixonei por tecnologia", disse.

Pouco mais de uma década depois, ele fundaria a ONG CDI, o Comitê para a Democratização da Informática, pioneira na área de inclusão digital. Rebatizada como Recode desde 2018, a ONG está em todos os estados brasileiros e em mais 11 países.

Um total de 52 mil pessoas passaram por alguma de suas capacitações apenas em 2021. Ao longo de seus 27 anos, calcula ter atingido mais de 1,8 milhão de pessoas atuando em parceria com centros comunitários, escolas públicas e bibliotecas, empregando uma metodologia de empoderamento digital para estimular o potencial de jovens como agentes de transformação social.

Ana Carolina Fernandes/Folhapress Ana Carolina Fernandes/Folhapress

Em busca de um sonho

Na mesma época em que ganhava intimidade com seu primeiro computador, Rodrigo teve outra experiência decisiva. Inspirado no avô, um pastor protestante que ele descreve como modelo de ética e cuidado com o próximo, e pela Teologia da Libertação, ainda forte na época, tornou-se voluntário em um projeto social na Arquidiocese do Rio de Janeiro com jovens em situação de rua.

"Aprendi muito sobre a vida, sobre situações de conflito, sobre capacidade de resiliência e amor ao próximo. Fez com que eu me apaixonasse pelo trabalho social", contou.

Mais tarde, escolheu cursar Ciências Sociais. Nem havia concluído o curso quando, em 1990, recebeu uma proposta para atuar na Andersen Consulting (atual Accenture) por conta de sua expertise em tecnologia. De lá foi para a IBM, onde trabalhou em um programa focado no uso de tecnologia em escolas públicas, e em seguida fundou uma startup voltada ao desenvolvimento de cursos de tecnologia para escolas do Rio - isso num intervalo de menos de cinco anos.

Tudo ia muito bem para o então empresário, até que, em 1992, ele começou a pensar sobre onde estaria em dez anos. "Eu me via mais rico, mas não mais realizado. Foi aí que comecei a refletir sobre a minha vida e sobre o que eu poderia fazer", disse.

Reinaldo Canato/Folhapress Reinaldo Canato/Folhapress

Da inclusão ao empoderamento digital

Segundo Rodrigo, a concepção do que viria a ser a Recode veio num sonho naquele mesmo ano. Nele, viu jovens de baixa renda usarem a tecnologia para transformar sua vida e sua realidade. Decidiu no dia seguinte se dedicar a concretizar essa visão, que tomaria forma com a fundação do CDI em 1995. Na época, o acesso à internet ainda era extremamente restrito no Brasil e na América Latina.

A proposta inicial da ONG era instalar escolas que aliassem informática e cidadania nas favelas cariocas. No segundo ano de operação, já atuava também fora do Rio de Janeiro, e no ano seguinte, fora do Brasil. Com esse trabalho, a Recode contribuiu para formar as primeiras políticas públicas de inclusão digital do país.

Muitas dessas políticas, porém, estavam restritas à distribuição de computadores e ampliação do acesso à internet - ações que, na visão de Rodrigo, são importantes mas constituem apenas o primeiro passo no processo de inclusão digital.

"A gente começou a mostrar que a população em vulnerabilidade poderia não só aprender [a usar a tecnologia], mas usar essa tecnologia para ser protagonista da sua própria transformação", disse.

A ONG expandiu sua atuação, levando programas baseados numa metodologia de empoderamento digital a lugares como hospitais psiquiátricos, penitenciárias e comunidades tradicionais. Foi numa unidade para cumprimento de medida socioeducativa por adolescentes que Wanderson Skrock teve acesso a uma formação da Recode.

Skrock cresceu no Complexo do Alemão e ingressou no tráfico ainda na infância. Logo depois de concluir o curso, passou a instrutor no centro onde cumpria a medida. Ao sair, terminou o ensino médio e cursou uma faculdade de administração de empresas. Hoje, ele é coordenador de operações da Recode.

Consegui me tornar um educador graças à Recode, que me trouxe desenvolvimento humano e profissional. Além disso, pude ser uma referência para outros jovens que estavam na mesma situação

Wanderson Skrock, educador e coordenador da Recode

Divulgação

Vídeo imersivo construiu uma estrada

Rodrigo define a proposta pedagógica da Recode, que dialoga com Paulo Freire, como o coração da organização. Independente da tecnologia a ser ensinada, a metodologia estimula os alunos a partir de uma leitura de sua realidade. Eles identificam os principais problemas e desafios e escolhem um deles para ser abordado pela criação e implementação de um projeto que faça uso da tecnologia.

Um exemplo da aplicação dessa metodologia é o Cineastas 360º, desenvolvido desde 2018 em parceria com a Meta (antigo Facebook) em escolas públicas de todo o país. O projeto capacitou alunos e educadores a usarem a tecnologia de vídeo 360º para produzir filmes que retratassem questões relevantes para suas comunidades.

Uma das produções realizada no contexto do projeto em 2019, por um trio de alunos do Instituto Estadual de Educação, Ciência e Tecnologia do Maranhão, intitulada "Filhos da terra", conseguiu provocar uma transformação concreta a nível local.

Os estudantes retrataram a situação de isolamento do assentamento Baixão do Gato, em Tuntum, interior do Maranhão: sem nenhuma estrada que os ligasse a cidades próximas, os moradores precisavam caminhar pelo meio da mata para levar as crianças até a escola e carregar doentes em redes até o atendimento médico mais próximo.

Os jovens cineastas conseguiram mostrar o filme ao governador do estado Flávio Dino, que se sensibilizou e prometeu solucionar a questão. Uma estrada vicinal foi inaugurada cerca de um ano depois do primeiro contato dos estudantes com o assentamento.

Arquivo pessoal Arquivo pessoal

Democratizando a transformação digital

Foi depois de um período nos Estados Unidos que Rodrigo começou a "pensar fortemente na necessidade da humanização da Quarta Revolução Industrial", como ele mesmo define.

Em 2016, ele estava em São Francisco, na Califórnia, onde atuou como mentor na Singularity University (que fica em uma base de pesquisa da Nasa, a agência espacial norte-americana) e operava sua nova startup no Impact Hub da cidade americana.

Preocupado com como a difusão de novas tecnologias afetaria principalmente a empregabilidade da população mais pobre e com menor qualificação, idealizou uma nova leva de cursos a serem oferecidos pela ONG, com foco nas habilidades requeridas por empregadores nessa nova era.

Entre eles está o Recode Pro, programa anual que oferece formação gratuita a pessoas de baixa renda para se tornarem desenvolvedores full stack. De acordo com a ONG, 92% dos alunos formados em 2019 já estavam empregados 9 meses após a formatura, com remuneração média de R$ 4.985. Dos formados no ciclo 2020/2021, 65% estão empregados, com salário médio de R$ 4.088, e 99% dos demais estão participando de processos seletivos.

"Conheço o trabalho da Recode desde o início, quando o Rodrigo Baggio ainda criava os comitês para a democratização da informática. Esse trabalho é de grande inspiração para o Instituto Alok", disse a Ecoa Devam Bhaskar, diretor do instituto criado pelo DJ Alok, que está entre as organizações que apoiam o Recode Pro.

Segundo ele, as formações da ONG parceira têm "técnicas pedagógicas muito bem desenvolvidas, contam com aparato de recursos necessários, equipe multidisciplinar e amplo conhecimento sobre tecnologia. Reforçam sempre o pensamento criativo e empoderado, o que possibilita uma alta capacidade de inserção dos estudantes no mercado de trabalho."

A gente vê a disrupção massiva de todas as indústrias com a transformação digital, o que gera uma necessidade de reeducação. Isso necessita ações de política pública através de alianças intersetoriais entre ONGs, governos, empresas e academias em todos os países

Rodrigo Baggio, fundador da Recode

+ Causadores

Paul Watson

Ex-Greenpeace e procurado pela Interpol, capitão afunda navios para salvar baleias

Ler mais

Marcelo Rocha

Engajado desde adolescente, ativista discute crise climática e raça

Ler mais

Nina Silva

Ela fez carreira em tech e encontrou força do coletivo no Black Money

Ler mais
Topo