Uma rede de amparo

Melissa Couto descobriu no conforto a famílias de vítimas de tragédias sua vocação para ajudar o próximo

Sibele Oliveira Colaboração para Ecoa, de São Paulo Arquivo pessoal

Se cada um de nós escolher fazer um pouquinho de bem pelo outro e propagar isso, o outro também vai propagar aquilo que recebeu. E assim a gente vai formando uma rede no Brasil e no mundo de pessoas que cuidam de pessoas. De pessoas que distribuem o bem que receberam e continuam multiplicando essa semente tão importante e necessária. em dias tão difíceis que estamos vivendo.

O que tem nos sustentado, nos mantido em pé, e não adoecido, são as relações: a família, o afeto, o amparo, o cuidado, a proteção.

Sei que essas pessoas precisam tanto quanto as outras que eu já atendi. E isso me fortalece. Ao mesmo tempo tenho um aperto no peito de pensar: 'Meu Deus. Até quando vai isso? Até quando eu vou ter que amparar essas pessoas sem ter o mínimo para dizer para elas a não ser a minha compaixão, o meu afeto? O que me faz ser uma melhor profissional é eu me permitir ser a profissional humana que sou. Que ama, sofre, sente, acolhe, ampara, briga, luta por um mundo melhor, por pessoas que façam as coisas de forma correta, por um cuidado que seja integral. É nosso direito e dever, enquanto cidadãos, promover isso.

Que as pessoas se unam. Que a gente tenha uma humanidade unida. Não uma humanidade que um acha que vai ocupar o lugar do outro. A gente precisa entender que pode construir muito mais juntos, que pode ser muito mais forte.

Se pudesse voltar no tempo, Melissa Haigert Couto, 42, faria tudo igual. Mesmo que precisasse reviver situações difíceis, como o acidente de carro que quase a matou dois meses antes de se formar psicóloga. Ou chegar ao velório dos adolescentes e jovens que morreram no incêndio da boate Kiss, em janeiro de 2013, e encontrar a maneira certa de amparar tantos pais desesperados. Foram experiências como essas que fizeram dela uma mulher forte e objetiva, de jeito doce e emotivo, que se dedica a cuidar de quem está passando por uma dor avassaladora.

Melissa parece incansável. Quando não está em campo, é encontrada em universidades e órgãos públicos falando sobre a importância do apoio psicossocial em emergências e desastres. Ou capacitando psicólogos de todos os cantos do país para fazer esse trabalho.

A vocação para cuidar de pessoas surgiu na infância. O emprego do pai de Melissa exigia que, de tempos em tempos, a família se mudasse de cidade. Sempre que chegava a um endereço novo, a gaúcha procurava um trabalho voluntário para fazer, geralmente em grupos de igreja ou ONGs que atendiam crianças em situação de vulnerabilidade social.

Viveu essa rotina até sofrer o acidente, aos 23 anos. Depois de 11 dias em coma, Melissa acordou com a certeza de que tinha sobrevivido para fazer algo importante no mundo. Ali, decidiu transformar sua vocação em missão de vida.

O que estamos vivendo agora está sendo muito difícil. Cada atendimento é único, cada dor é a mais difícil

Melissa Couto, psicóloga

Arquivo pessoal

Chamada para a boate Kiss e Chape

A clareza de qual seria esse caminho veio em janeiro de 2013, quando a psicóloga estava acompanhada da família, voltando de férias. Na estrada que a levaria de Balneário Camboriú para Santa Maria, sua terra natal, recebeu uma ligação do presidente da Cruz Vermelha da cidade, avisando do incêndio da boate Kiss. Voluntária da instituição, foi convocada para ir até lá.

"Foram as minhas pessoas, da minha cidade. Estava na minha casa, então pude dar mais amparo para as famílias e para a comunidade como um todo", conta. Embora tenha sido sua experiência mais difícil, ali ela se encontrou de maneira definitiva. "Foi um divisor de águas na minha vida e na minha carreira. Porque foi a primeira vez que a gente teve no Brasil uma resposta satisfatória dentro de todos os protocolos de comando internacional", afirma ela, que criou, na Cruz Vermelha, o primeiro curso brasileiro de apoio psicossocial em emergências e desastres.

Com o tempo, sua bagagem de experiências em campo foi ficando mais volumosa. Três anos depois da tragédia de Santa Maria, a psicóloga foi chamada para Chapecó, após a queda do avião com o time de futebol e a delegação da Chapecoense em 2016. Antes de embarcar, pensou que estava preparada para o que iria encontrar. "Lá não tinha só pais enterrando os filhos, mas também filhos enterrando os pais", lembra.

Melissa precisou reunir forças para criar uma estratégia para que os psicólogos locais pudessem oferecer àquelas pessoas o cuidado necessário ao momento. A sensação de que esse tipo de trabalho nunca é fácil voltou quando se deslocou para Brumadinho, no início de 2019, para oferecer afeto e um ombro no qual as pessoas poderiam se apoiar após a tragédia provocada pelo rompimento das barragens.

Arquivo pessoal

Acolhimento na pandemia

Foi em Brumadinho que Melissa e outros dois psicólogos, Marly Perrelli e Marcelo Perpétuo, decidiram fundar a Rede de Apoio Psicossocial, para vencer a burocracia excessiva e ter condições de oferecer uma resposta rápida, adequada e ética em situações de calamidade como aquela, sem atravessamentos políticos e econômicos.

Com mais autonomia, o trio ofereceu, dentro de igrejas locais, um treinamento baseado em publicações científicas, compaixão, cuidado e afeto, para profissionais da cidade que estavam socorrendo as vítimas. Também capacitaram psicólogos da PUC-Minas (Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais).

Melissa passou o ano de 2019 percorrendo o Brasil presencial ou virtualmente com cursos e palestras sobre como acolher e apoiar pessoas que sofrem grandes perdas, para que elas ativem a capacidade de resiliência e sigam em frente.

Com o agravamento da pandemia, a psicóloga foi procurada pelo comitê de crise de Lageado, primeira cidade gaúcha sob bandeira vermelha por causa das UTIs superlotadas. Eles precisavam que uma estratégia fosse criada para ajudar a preservar a saúde mental no município e que garantisse a segurança no atendimento para profissionais da saúde e pacientes.

Assim que o Conselho Federal de Psicologia autorizou o atendimento remoto para situações de emergência, Melissa e os outros psicólogos da RAP criaram protocolos de primeiros socorros psicológicos para atendimentos à distância em parceria com a Univates (Universidade do Vale do Taquari). O próximo passo foi reunir psicólogos voluntários para acolher profissionais da linha de frente via call center.

A Rede de Apoio Psicossocial já capacitou cerca de 4.000 psicólogos brasileiros nestes protocolos, além de 350 argentinos. Além disso, Melissa atua em cursos para bombeiros civis, socorristas, brigadistas de incêndio, entre outros.

Arquivo pessoal

O trabalho continua

Hoje, além de seus pacientes, Melissa atende quem perdeu pessoas queridas na pandemia. Junto com a amiga Adriana Cogo, também oferece treinamentos a membros do Sincep (Sindicato dos Cemitérios e Cemitérios e Crematórios Particulares do Brasil), para rituais de despedida quando não há velório e cerimônias de memórias póstumas para homenagear as vítimas da covid-19. E não vê a hora de tirar do papel outro projeto: convidar psicólogos capacitados pela RAP a separar algumas horas semanais para atender quem não pode pagar terapia.

A rotina de partir para diferentes lugares do país assim que recebe um chamado, ela diz, só é possível pelo apoio e o colo que recebe da família e dos amigos. Todo o trabalho que Melissa faz pela RAP é gratuito. Além disso, continua sendo voluntária da Cruz Vermelha. Acredita que recebe muito mais do que doa porque tem o privilégio de acompanhar as pessoas se recuperando das tragédias e ressignificando a própria história.

"Que a humanidade se converta no sentido de querer, fazer e multiplicar o bem. Precisamos de relações mais humanas, mais afetivas e de compaixão. A única coisa que vai nos curar de tudo isso será o amor que a gente vai distribuir. Só ele vai nos salvar porque a pandemia veio para nos mostrar o quanto somos vulneráveis", diz. Todos os dias a psicóloga acorda disposta a construir um pedacinho desse sonho.

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