Fé e reparação

Com museu comunitário e luta por patrimônio, padre evidencia história negra em Belo Horizonte

Adriana Terra Colaboração para Ecoa, de São Paulo Magê Monteiro/UOL

"Impossível discutir Belo Horizonte sem falar de racismo religioso. A partir de 1920, um bispo chamado Antônio dos Santos Cabral começa um projeto de expulsão das irmandades de negros das igrejas católicas, que vão se multiplicar e ocupar as periferias: hoje há em torno de 41 capelas dedicadas à Nossa Senhora do Rosário, sem vínculo com a Arquidiocese.

Essas irmandades ocupavam o antigo Largo do Rosário, no centro da cidade, onde havia também um cemitério. Mas não há nenhuma placa contando isso, ou documento falando se os corpos permaneceram debaixo desse solo sagrado. Isso é uma questão muito séria, porque se eles foram abandonados ali, quem os abandonou foi a própria Igreja Católica. Para onde vou, se eu não sei nem para onde foram os corpos dos meus antepassados?

Só consegui me identificar como negro aos 33 anos, quando me mudei para o Morro do Papagaio, já como padre. Dali, comecei a perceber que há uma forma de organizar a cidade feita para segregar racialmente. Junto a moradores, organizei o Muquifu, o Museu dos Quilombos e Favelas Urbanos, e desse grupo nasceu o NegriCidade, projeto que vai atuar na recuperação dos territórios negros.

Agora estamos com a proposta do reconhecimento do Largo do Rosário como patrimônio. Porque somos formados pensando que nunca habitamos aquele lugar - hoje são apenas 2% de negros vivendo no interior da cidade planejada. Saber que a habitamos teria mudado a minha história. O objetivo então é falar que essa cidade nasceu muito antes de 1897."

Chegar e se reconhecer

Quando pisou no Morro do Papagaio no fim dos anos 1990, duas coisas impactaram o mineiro Mauro Luiz da Silva, 54. A primeira foi a visão das casas de uma das maiores favelas de Belo Horizonte refletida na barragem Santa Lúcia, produzindo uma imagem que ele classifica como celestial, que o fez ter certeza de que gostaria de viver ali. A segunda foi a percepção de que os moradores se pareciam com ele, algo sobre o qual ele não havia pensado muito até então.

Padre Mauro, como é conhecido, já havia entendido sua vocação para o trabalho social. Formado pela Teologia da Libertação, durante a graduação em Filosofia na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG) ele conheceu o trabalho voltado aos direitos humanos do bispo chileno Dom Juan Isern de Arce, a quem passou a visitar anualmente ainda como seminarista, com o desejo de atuar no país latino-americano. No entanto, após sua ordenação, teve de passar um ano como padre na capital mineira.

O período que era para ser de espera acabou sendo de aprendizado. O religioso assumiu uma paróquia no Gutierrez, bairro de classe média, local bem diferente de onde queria atuar. No entanto, logo soube de uma favela perto dali, dentro do território que estava sob sua responsabilidade. Áreas mais pobres muitas vezes não têm como manter um padre, explica, ficando vinculadas a bairros vizinhos. Passou a ir diariamente ao local. E a entender que, onde houvesse desigualdade, poderia buscar fazer a diferença com sua atuação.

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Dessa experiência no Morro do Cascalho até o Morro do Papagaio se passaram três anos. No segundo endereço, já escolhido por ele, fez lar: passou a viver no bairro e a criar laços. Lembra-se de quem o olhava, de fora, como se atuar ali fosse um castigo. E de moradores da região terem achado que ele vinha de outro país - o comum, afinal, era receber padres estrangeiros. "Os belorizontinos não vão para lá, tem de vir os missionários", percebeu. Situações assim foram lhe provocando reflexões sobre os valores dados aos lugares.

Aproximou-se então de um grupo local articulado em torno da luta por direitos humanos. Participar das conversas foi transformador. Um encontro com a escritora Cidinha da Silva, hoje sua amiga, também o marcou. Após um evento de lançamento da autora no Morro do Papagaio, pensativo, ele decidiu dividir com ela uma angústia: não sabia se podia se dizer negro. Ela pediu que ele lhe contasse sua história - filho de pai negro e mãe branca, mineiros; neto de um carroceiro e uma empregada doméstica por parte paterna, e de um militar e uma operária por parte materna; nascido próximo, mas não dentro de uma favela. A conversa gerou pertencimento. "Foi como nascer de novo, entendendo meu lugar social."

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Construir junto a memória

É também em torno da ideia de pertencimento que surge o Muquifu, o Museu dos Quilombos e Favelas Urbanos, nascido a partir das ações desse coletivo de moradores. "Cada um tinha uma área de atuação: teatro, história, letras, jornalismo", conta Padre Mauro, contextualizado como as políticas públicas de acesso ao ensino superior a partir do governo Lula foram importantes para o Morro. "Quando cheguei, não tinham nem dez pessoas com faculdade na região. Saímos de menos de dez universitários para mais de 50 em poucos anos."

Antes de ser museu, o Muquifu foi um memorial que nasce de uma pergunta feita em 2007 por outra integrante do grupo, a historiadora Josemeire Alves: por que a gente não cria um espaço que conte a nossa história sob a nossa perspectiva?

Fascinado com a ideia, o teólogo ficou refletindo sobre como poderia colaborar. Pensou em contribuir com sua fé, mas sentiu que corria o risco de "assumir o papel de colonizador". "Fui identificando que a experiência religiosa da qual faço parte também proporciona o racismo do qual sou vítima. Isso é uma reflexão de anos, não é algo que descobri de uma hora pra outra", conta. O enfoque em patrimônio foi um caminho que o interessou. Foi para a Itália estudar história com o apoio da igreja e, por lá, construiu as bases teóricas do museu que já vinha sendo cotidianamente feito pelos moradores, inaugurado em 20 de novembro de 2012.

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"A ideia é questionar quem preserva, o que é objeto colecionável", explica ele a natureza de atuação do espaço. "Quando vão exibir objetos que narram minha história, são objetos que me torturaram. Então uma criança negra que entra no museu pensa que os antepassados eram só escravizados?", questiona.

Em quase uma década, o Muquifu se tornou palco de lançamentos de livros, exposições e exibições de filmes. Passou, nos últimos anos, a integrar o circuito de museus da prefeitura de Belo Horizonte, sendo visitado por dezenas de escolas. Também se tornaram recorrentes projetos junto a cursos universitários, como da PUC e da UFMG. A instituição também já participou de palestras e mostras na Colômbia, Itália, França e Alemanha.

Mais do que isso, ela se tornou um organismo vivo de debate sobre o território envolvendo a comunidade, conta o padre. Por meio do Muquifu, articulou-se outro projeto: o grupo de estudos NegriCidade. E a partir das caminhadas propostas pela iniciativa, amplificou-se o debate sobre o Largo do Rosário, hoje em vias de se tornar patrimônio imaterial da cidade.

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Um solo sagrado

Por volta de 2016, durante uma conversa com a vizinha e historiadora Josemeire Alves, a mesma da pergunta que origina o Muquifu, na época secretária da paróquia no Morro do Papagaio, Padre Mauro ficou com uma pulga atrás da orelha. Ela lhe perguntou o que ele achava da Igreja Nossa Senhora do Rosário. Ele falou que conhecia o local, na rua Amazonas. Ela então rebateu: "estou falando da primeira, que não existe mais".

No século 19, havia um largo com capela e zona cemiterial entre as ruas Bahia e Timbiras, destruído para a construção da cidade. A nova igreja teve menos frequência da população negra, e as Irmandades do Rosário de Homens Negros se multiplicaram pelas periferias. "Elas são a prova de que tentaram nos matar e não conseguiram", diz o teólogo.

Nas caminhadas do NegriCidade, ir até onde era o largo e se deslocar para as favelas foram estratégias encontradas para pensar sobre histórias que ficaram soterradas. Nos últimos anos, Padre Mauro levou essa discussão para o doutorado e para o órgão de patrimônio local. Na pesquisa na área de Ciências Sociais na PUC mineira, ele questiona a participação da igreja nesse apagamento. Já com o poder público, busca registrar essa memória.

"Quero fincar como uma bandeira, falar que ali existiu uma comunidade de negros e negras, que esse é um local de reverência. Devolver à população o direito à sua memória", diz ele, explicando que o fato deste ter sido um cemitério desejado pelas pessoas o torna muito diferente de locais como o Cemitério dos Pretos Novos, no Rio.

Nos documentos encontrados pelo teólogo, há a proibição às festas do rosário em 1923, 1927 e 1944 pela Arquidiocese de BH. Fazer esse debate estando dentro da Igreja tem sido um desafio encarado com habilidade e firmeza por ele. "Há um conflito, mas nunca sofri perseguição. Creio que é preciso tornar isso público para falar de algo que está na base do racismo brasileiro que é a ideia de limpar a Igreja das religiosidades de matriz africana."

Para Padre Mauro, reparar essa história é buscar, acima de tudo, que não se cometa os mesmos erros. Ao olhar para sua trajetória, percebe como a vontade de ir para o Chile na juventude estava ligada ao fato de saber que a Igreja Católica poderia ser, também, combativa. Mas não via isso ao seu redor. Pavimentou, com sua caminhada, outra história.

Independente da religião, enquanto religioso devo poder fazer homenagens aos meus antepassados. E vou fazer onde, se não sei onde eles estavam?

Mauro Luiz da Silva

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