Pitch de buzu

Karine Oliveira torna linguagem do empreendedorismo acessível e fortalece pequenos negócios

Juliana Domingos de Lima De Ecoa, em São Paulo Tiago Caldas/Fotoarena

"Eu só conheci empreendedorismo em 2016. Até ali eu nem sabia que existia essa palavra. Pra mim era o corre, o bico. E foi esse primeiro choque, choque mesmo, porque, enfim, esse mundo do empreendedorismo tem um bocado de palavra em inglês, só falavam de empresa de fora. Eu fiquei assim, mas meu deus, por que eu vou falar de brainstorming se chuva de palpite é tão mais gostoso? Por que diabos eu tenho que falar somente do Google se tem uma mulher ali na Liberdade [bairro de Salvador] que vende um acarajé de um quilo que ninguém consegue copiar? Por que não regionalizar isso?

Comecei a descobrir uma outra cara do empreendedorismo, que me fez enxergar uma empreendedora em cada mulher da rifa que eu vejo aqui na rua. Foi a partir daí que resolvi traduzir para a linguagem informal, que é tão cultural, tão gostosa.

Por exemplo, no meio do empreendedorismo tem o glamour do 'elevator pitch', que é essa ideia de fazer um pitch [vender uma ideia ou projeto e um potencial cliente ou investidor] no elevador e tal. Mas qual é a técnica que o baleiro, a baleira usa quando entra no ônibus ou no metrô? Não é um pitch também? Só que é sem glamour. Ele tem que ser rápido. E, em vez de colocar um milhão, você investe R$ 10, R$ 15. Quem entende mais de pitch do que essa pessoa que faz o dia inteiro? Daí que o elevator pitch se transforma no pitch de buzu [termo popular para ônibus coletivo].

Não ensino ninguém a empreender. Potencializo o que já tem de bom e mostro para as pessoas que na verdade elas sabem muita coisa de empreendedorismo, Elas só não sabem o termo técnico. A ideia é criar uma ponte entre o empreendedorismo informal de rua e esse mundo de negócios que a gente conhece."

Cria da economia solidária

Karine Oliveira, 27, nascida e criada no bairro do Engenho Velho da Federação, em Salvador (BA), é a criadora da Wakanda Educação Empreendedora, iniciativa que ensina micro e pequenos empreendedores a impulsionarem seus negócios.

A metodologia idealizada por Karine busca aproximar o universo codificado e inacessível do empreendedorismo daqueles que empreendem desde sempre, só não tratam a coisa por esse nome.

"O problema é que a imagem do empreendedor infelizmente ainda fica sempre atrelada àquele homem branco da bolsa de valores. Só que ela é minha, é sua, é da gente que faz a economia girar", disse a criadora da Wakanda em entrevista a Ecoa.

No ano passado, Oliveira participou do Shark Tank Brasil, reality show de empreendedorismo e negócios do canal a cabo Sony. Recebeu propostas de quatro dos seis "tubarões", como são chamados os investidores do programa, e foi elogiada por todos eles. Saiu de lá tendo como sócia a empresária Camila Farani, que investiu R$ 200 mil por 15% da empresa.

"Foi a validação que eu precisava para a minha metodologia. Eu nunca tive dificuldade de dar aula pra minha comunidade. Minha dificuldade era que o mundo do empreendedorismo entendesse que existe um outro jeito de ensinar negócios. Fui para o Shark Tank mostrar que uma outra linguagem é possível", disse.

Em 2020, ela entrou para a lista Forbes Under 30 da revista "Forbes Brasil", que destaca a cada ano os mais brilhantes empreendedores e criadores brasileiros abaixo dos 30 anos.

Lane Silva Lane Silva

A história de Karine Oliveira com o empreendedorismo começou muito antes da aparição na TV. Filha do mestre de obras Valmi Oliveira e da ativista comunitária Katia Santos, Karine cresceu acompanhando os esforços dos pais e de outras pessoas da comunidade para gerar renda e se sustentar.

Foi inspirada especialmente pela mãe, que, envolvida em iniciativas que iam da alfabetização à economia solidária, tornou-se gestora pública e chegou a ir para a Itália falar sobre sua experiência com a Coopaed, cooperativa que fornece alimentos para eventos e mantém cantinas universitárias, originada como projeto de geração de renda para a comunidade do Engenho Velho da Federação.

"Eu ia pras formações com minha mãe, ia pras feiras com ela, via montar as coisas e fui gostando muito disso. Meu primeiro trabalho foi com 19 anos, como agente de desenvolvimento, indo nos bairros e fazendo assessoria a grupos de economia solidária", disse.

Graduanda em Serviço Social, Oliveira formulou a ideia do que viria a ser a Wakanda Educação Empreendedora em um projeto da faculdade, em 2018. "Eu me apaixonei pelo que tinha escrito. Falei: 'meu deus, que coisa linda! Pronto, isso aqui é meu'. Eu tinha saído empolgadíssima do filme do 'Pantera Negra'. Achei que Wakanda não podia ser só um lugar fictício", disse.

O tema do empreendedorismo tinha aparecido para ela pela primeira vez algum tempo antes, durante um curso, mas se incomodou com o foco no exterior.

"Por que minha mãe não se sente empreendedora se na vida dela sempre fez isso de gerar renda, crescer negócio?", questionou. Para ela, grande parte do problema estava na linguagem.

Para validar sua metodologia, Oliveira realizou em julho de 2018 a primeira imersão da Wakanda. "Graças aos orixás vieram 52 mulheres. Foram três dias de muito perrengue, das 52 apenas 12 terminaram o curso, mas estão comigo até hoje na nossa rede", disse.

Quando dei a formação pela primeira vez, vi o olhar daquelas mulheres dizendo então quer dizer que eu sou uma pequena empresária?' e falei é, exatamente. 'Então isso que eu tenho aqui é um pequeno negócio?' Exatamente, basta você começar a olhar assim e sua mente vai mudar. Foi o que aconteceu com várias delas

Karine Oliveira

Lane Silva/Divilgação

Wakanda em ação

Antes da pandemia de covid-19, a Wakanda oferecia imersões práticas de três dias, com oito horas de duração em cada um e voltadas para fortalecer aspectos frágeis dos empreendimentos, abordando gestão financeira, planejamento e vendas.

O objetivo, segundo Oliveira, é mudar a mentalidade das pessoas para que deixem de se imaginar apenas sobrevivendo e passem a entender que podem viver do seu negócio.

Tendo em vista o público majoritariamente feminino — 90% dos clientes são mulheres, e 80% delas são negras —, foi criado um produto específico para elas, chamada de "Deusas do Empreendedorismo".

A imersão voltada principalmente para mães solo disponibiliza um espaço com cuidadores onde elas podem deixar seus filhos e oferece alguns módulos extras, com conteúdos sobre violência doméstica, autocuidado e empoderamento. Além disso, todas as referências, fontes e histórias de sucesso apresentadas neste módulo são femininas. Foi esse produto que Oliveira levou para o Shark Tank em 2020.

De 2018 a 2020, foram atendidas cerca de 450 pessoas em Salvador. Com o lançamento do curso online, em 2020, o número saltou para 600, ampliando para participantes de todo o Brasil.

Os empreendimentos são diversos. A maioria está na área de serviços; alimentação e beleza lideram. Mas já foram atendidas empreendedoras que trabalhavam com imóveis, saúde, advocacia, tecnologia e design.

Arquivo pessoal

Divisor de águas

Um dos negócios que prosperaram a partir da formação ministrada pela Wakanda foi a Flor de Maio, empreendimento da soteropolitana Julia Morais criado em 2016, cujo carro chefe são absorventes ecológicos de algodão.

"Comecei costurando absorventes à mão, a partir dos aprendizados de uma oficina que participei. Inicialmente costurava para mim e para presentear amigas, que gostaram tanto que foram pedindo mais. Com o aumento da demanda, convoquei minha mãe, Fátima Cerqueira, que começou a costurar os absorventes na máquina de costura herdada pela minha avó Isaura de Cerqueira", contou a empreendedora a Ecoa, na foto ao lado da mãe. "Aos poucos, percebemos que aqui em Salvador não tinha um mercado de absorventes de pano reutilizáveis e ecológicos, muito menos voltado para mulheres negras. Então decidimos criar a Flor de Maio".

Em 2019, elas participaram de uma imersão da Wakanda. "Foi onde comecei a estruturar a Flor de Maio e entendê-la como uma empresa mesmo. Durante a imersão, fiz um plano de negócios e pude ter um panorama geral do estado do nosso empreendimento, entender aonde queríamos chegar e o que poderíamos fazer para alcançar esses objetivos, traçando um plano de ação", disse Morais.

No mesmo ano, a Flor de Maio participou da Feira Preta em São Paulo, intermediada pela Wakanda, ampliando seu alcance. "Foi um divisor de águas. Viramos MEI, desenvolvemos novos produtos e serviços e conseguimos rentabilizar ainda mais nosso trabalho. A Wakanda foi uma impulsionadora dos nossos sonhos, nos fez acreditar que é possível empreender, trabalhar para nós mesmas, ter autonomia e prosperar", disse a empreendedora, que hoje vive do negócio.

Tiago Caldas/Fotoarena Tiago Caldas/Fotoarena

Empreender por necessidade

Atualmente, devido à pandemia, o serviço da Wakanda só está disponível no formato digital. As imersões presenciais foram adaptadas para uma série de desafios enviados via WhatsApp.

"A pessoa faz a atividade em duas horas. Mostramos que é possível investir no negócio durante o corre do dia a dia", diz Karine Oliveira.

A atuação da Wakanda é custeada em parte por grandes empresas interessadas em gerar impacto em comunidades periféricas. Para quem participar, as imersões presenciais custam entre R$ 60 e R$ 120, enquanto o pacote online é R$ 10.

Segundo Oliveira, no ano passado, já durante a pandemia, muitas mulheres com qualificação perderam o seus trabalhos e procuraram a Wakanda desejando oferecer seus serviços de forma autônoma. Mesmo antes da crise atual, o cenário era de dificuldades, já que metade das mulheres brasileiras são demitidas após se tornarem mães, segundo pesquisa realizada pela Fundação Getúlio Vargas em 2017.

A realidade daqueles que empreendem por necessidade no Brasil é de fato muito distante do glamour do "elevator pitch" e se agravou com a pandemia de covid-19. Segundo a Pnad Contínua, do IBGE, 8,5 milhões de mulheres tinham deixado a força de trabalho no terceiro trimestre de 2020, em relação ao mesmo período do ano anterior. A crise afetou especialmente o setor de serviços, que é o que mais emprega a população feminina. Em paralelo a esses dados, o país registrou um número recorde de abertura de empresas em 2020. Os microempreendedores individuais, ou MEIs, responderam por 80% dos novos CNPJs.

"As mulheres negras, os pequenos empreendedores são responsáveis por muitos dos empregos que existem hoje. Se a gente começa a tomar isso pra gente, é o que vai fazer a economia girar. É redistribuição de renda e não somente acúmulo de capital", defendeu Karine Oliveira.

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