A Favela Radical

Surf, escalada, natação: Jefferson Quirino levou esportes para o morro do Turano (RJ)

Tony Marlon De Ecoa, no Rio de Janeiro Marcelo de Jesus/UOL

Faltava pouco mais de uma hora para a entrevista quando o empreendedor social Jefferson Quirino, 32, mandou uma mensagem para mim: "Hoje pela manhã as coisas ficaram um pouco complicadas por aqui, aconteceu uma ocupação por parte da polícia. Nosso encontro está confirmado?"

Estava.

A conversa aconteceu em frente à sede do Favela Radical, um projeto que nasceu em 2015 usando o surf, a escalada e outros esportes radicais para desenvolver crianças e adolescentes no Morro do Turano, uma favela entre os bairros da Tijuca e do Rio Comprido, na zona norte fluminense. Como ele é figura conhecida por ali desde os tempos de adolescente, não há como seguir a conversa sem as pausas para acenos e respostas a convites como "Que dia a gente vai surfar, Jefferson?".

Entre um vizinho e outro, ele contou: "A minha infância foi muito tranquila, pois eu não tinha muitas opções, né? Então, eu não sabia querer outras coisas além das que eu já conhecia", começou dizendo. "Os problemas apareceram mesmo foi na adolescência, quando eu entendi tudo que me faltava".

Nascido e criado ali, Jefferson normalmente é contado como alguém que, em dois anos, passou quatro vezes pelo sistema prisional. Quirino é essa história também, mas ele não é apenas isso. "As pessoas me escutam por horas e, quando eu vou ver, me resumem a um ex-presidiário que criou um projeto de esportes, sabe?".

Líder do Favela Radical, ele é também o mais novo empreendedor social da Redbull Amaphiko, um programa global que apoia o desenvolvimento de pessoas que estão propondo soluções inovadoras para desafios sociais.

Marcelo de Jesus/UOL
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Asfalto é tudo que não é o morro

Pai da Sofia, 4 anos, filho do Seu Inácio e da Dona Gilda, o irmão mais novo do Jonathas só começou a entender que o asfalto tinha uma história já pronta para ele quando passou a romper os limites do morro em que nasceu. "Asfalto" é o nome para tudo que não é o morro, tudo que não é favela.

"Eu descia para o asfalto e escutava as pessoas me dizendo que favelado é bandido. Sentia as pessoas me seguindo no supermercado, achando que eu iria roubar. Era a gente que a polícia achava que precisava parar para não usar droga, não assaltar ninguém. E eu acabei acreditando nisso tudo, entendeu? Pensei: bom, já que acreditam e falam que essas são as minhas opções, agora eu vou fazer isso mesmo". E fez.

Dos 15 para os 16 anos, Jefferson deu seu primeiro mergulho na criminalidade. Pequenos furtos, depois vieram os assaltos. Ao contrário do senso comum, ou os estereótipos, este encontro entre adolescentes de periferias e favelas e o crime não é uma história em linha reta, linear: nasceu, quis, passou a fazer parte. Ele explicou desta maneira o que o restante do mundo insiste em entender bem pouco, ainda hoje: "O cara do crime é aquele que vive a mesma realidade que você, mas tem uma casa, um carro, leva uma vida boa. A família dele tem acesso ao que as outras famílias da comunidade não têm. Então, ele é, sim, de alguma maneira, uma referência de sucesso naquele contexto".

Para cada nova visita de Jefferson ao asfalto, noites que nunca terminaram até hoje de conversas e mais conversas em família. Ele contou: todo mundo sofria com suas escolhas naquele momento da vida. Teve desgaste com a família, com os amigos, e a história toda foi ficando ainda mais confusa com idas e vindas ao sistema prisional. "Entre 2004 e 2006, eu entrei e saí quatro vezes. A última foi em 2009, quando eu já era maior de idade. Graças a Deus, eu fui preso, senão estaria morto agora".

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A favela que os jornais não contam

Nessa época, ele se equilibrava entre os dias como soldado na Aeronáutica e as noites com o crack. "Em 2007, eu entrei para a Aeronáutica, mas hoje vejo que não estava preparado para aquela oportunidade. Eu não soube aproveitá-la", analisa. Aos poucos, Jefferson deixou transparecer para os colegas que era um dependente químico. Acabou sendo expulso do serviço militar. "Quando eu fui descartado, voltei a ser apenas mais um favelado, um viciado em drogas e ex-militar".

Foi nessa época que Jefferson encarou pela última vez as prisões fluminenses. Um ano de pena. Entrou no mês do seu aniversário, outubro, e saiu imaginando que era preciso aproveitar a data importante para nascer de novo para a sua favela, para a sua família e, especialmente, para ele mesmo.

"Lá, eu fiquei pensando como estava desperdiçando os meus talentos, meu tempo, meus dias em algo que não estava contribuindo em nada. Então, passei a imaginar o que eu precisava fazer para que essa minha história nunca mais fosse contada. Para que outras crianças não precisassem passar pelo que passei", explica.

O mundo do lado de fora o acolheu com um trabalho no arquivo do Jornal do Brasil, graças a um amigo que fez a ponte. Foi a partir daí que Jefferson começou a entender que uma de suas grandes habilidades era conectar pontos, pessoas e oportunidades.

"Procurei nos arquivos notícias sobre o Turano, para entender o que havia acontecido por aqui no começo dos anos 1990, que foi um período muito violento. Não encontrei nada, mas percebi que os jornais só falavam da violência e do que faltava na favela. Apenas essas histórias eram consumidas pelos jornais e pelos leitores. Não havia nada sobre o monte de coisas boas que aconteciam, elas eram anuladas. Cheguei a essa conclusão, mas ainda não sabia bem o que fazer com ela".

No dia 10 de agosto de 2010, policiais do Bope (Batalhão de Operações Especiais) subiram o Complexo do Turano para colocar em funcionamento a 11ª Unidade de Polícia Pacificadora - UPP. A política, na época, consistia em duas frentes: ocupação das forças de segurança e a chegada de cursos profissionalizantes e outros serviços para a comunidade.

Graças a essa segunda frente de trabalho, a partir de 2011 ele passou a atuar como mobilizador comunitário, conectando população e oportunidades que chegavam todos os dias. Foi a brecha que a imaginação de Jefferson queria para conectar o segundo ponto que faria nascer, três anos depois, o Favela Radical.

"Minha maior descoberta foi ver que as crianças eram atendidas pelos projetos que existem aqui, mas o pai e a mãe, inclusive muitos deles sem trabalho, que ficavam o dia inteiro dentro de casa, não se relacionavam com as oportunidades que chegavam. Eram duas coisas isoladas, e isso chamou muito a minha atenção. A gente não saía do morro para captar oportunidades fora."

À essa altura, Jefferson começava a desenhar na sua cabeça algo que misturasse tudo, mesmo sem saber bem o que gostaria de fazer, e como. "Eu fui juntando as informações: até ali eu sabia que os jornais só contavam sobre a criminalidade do bairro. Entendi como a gente era vulnerável, pois eu estava todos os dias conversando diretamente com as pessoas. Vi o quanto a comunidade precisava ser estimulada a acessar as oportunidades. Não era só apresentar uma e dizer para ir lá buscar".

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"O que eu faço com essa prancha de surf?"

O terceiro ponto que precisava ser conectado desembarcou depois de 12 horas de vôo entre a França o Brasil. "Um amigo francês foi embora e deixou uma prancha de surf na minha casa para facilitar para quando ele voltasse. Eu ficava todo dia olhando para ela e pensando que eu precisava usar aquilo, não deixar lá encostado. Aí um dia eu a peguei e fui para o Arpoador", se lembra.

"Entrei no mar e, quando subi na prancha, eu entendi que ela era uma poderosa ferramenta de transformação social, um símbolo e um jeito de mudar a realidade aqui no Turano, especialmente com as crianças. A maioria nunca esteve na praia", explica.

Foi nas aulas de surf com Rodrigo Carvalho que Jefferson foi organizando as ideias, e fazendo brotar algumas novas. Até que chegou um dia que propôs ao professor, àquela altura seu mais novo amigo, se juntarem para usar o esporte para apaixonar as crianças do Turano por outras possibilidades de caminho e de futuro. Isso era o ano de 2015. Começaram, nos dias de sol, levando a criançada para aprender a surfar, mesmo que ele admita que nunca foi apenas sobre isso: aprender a surfar.

"Rodrigo e eu sentamos, chamamos amigos que tinham experiência em projetos sociais ou são praticantes de modalidades e começamos a fazer o projeto acontecer aqui na comunidade", explica. O Favela Radical é um encontro entre a geografia do Morro do Turano, pessoas que amam esportes de aventura e a inventividade brasileira para enxergar possibilidades de ampliar o acesso à cidadania usando um Skate ou uma bicicleta como estratégia. O nome da iniciativa, explicou Jefferson durante a entrevista, já resume duas coisas que não podem faltar nessa reportagem, por isso o destaque:

"A palavra favela precisa ser ressignificada. E isso vale para dentro e para fora dela. Hoje escutamos o termo favelado e a gente já associa isso a violência, a pobreza, a falta de oportunidades. Isso não é a favela, isso tem na favela. Nosso trabalho é para que o Turano seja a primeira favela radical do Brasil".

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A piscina emprestada de Iasmin

Neuzilene Vale Pereira é a mãe de Iasmin Dulce, de 14 anos. A garota é uma das 56 crianças e adolescentes que frequentam a faculdade Estácio de Sá, parceira do Favela Radical nas aulas de natação. Iasmin, Neuzilene e Jefferson se encontraram quando, sem lugar para treinar, a adolescente pediu emprestada a piscina de uma amiga e por lá se preparou para uma competição entre os colégios públicos do Rio de Janeiro, em 2018. Jefferson soube da história e Iasmin passou a treinar com o Favela Radical, bem ao lado de casa. A mãe conta que o amor pela água vem de longe.

"Quando Iasmin era criança, íamos à casa de uma amiga e ela não saia da piscina", conta a mãe. "Foi neste momento, eu acho, que ela passou a amar ficar na água, foi aprendendo a nadar. Daí encontrou um professor que foi dando dicas, ensinando as coisas para ela. Com o tempo foi se desenvolvendo".

Neuza, como prefere ser chamada, equilibrava as contas de casa para garantir que a filha pudesse, ao mesmo tempo, estudar no colégio GEO Juan Antonio Samaranch, escola municipal que trabalha com o conceito de aluno-atleta-cidadão, onde podia treinar com apoio e acompanhamento profissional. E fazer aulas de natação em um clube próximo. Então veio o desemprego, a saída das aulas no clube e um problema na piscina do colégio, e todas as oportunidades de praticar o esporte sumiram de uma hora para outra. Foi neste momento que entrou na história a amiga com a piscina emprestada, o Jefferson, o Favela Radical e a Estácio de Sá. Para Neuza, não é mais sobre oportunidade, apenas. É sobre uma possibilidade de futuro:

"Este projeto transforma vidas. É você pegar alguém que já traz nas costas vários rótulos, um monte de estatísticas, e fazer essa criança, essa mãe, enxergarem tudo com outros olhos", explica. "Toda criança deveria poder acessar a creche desde cedo, acessar a escola. E hoje eu posso te dizer que todas precisam, também, ter direito a fazer um esporte. Seja ele o radical, como é o caso de alguns do projeto, ou até mesmo a natação. Eu vi a natação transformando vidas".

E construindo outras possibilidades de futuro, como é o caso de Iasmin, que já participou de diversas competições estudantis na cidade, sempre com bons resultados. A inspiração, explica Neuza, vem também da história e da vontade de Jefferson de fazer as coisas diferentes.

"O Jefferson mesmo é um exemplo de transformação, um exemplo vivo. As crianças enxergam nele uma esperança de que é possível mudar, pois ele próprio mudou", diz Neuza.

Muitos anos e pontos conectados depois, Jefferson continua bastante conhecido, igual era no passado. Mas agora é diferente. Seu nome, sua história e o seu trabalho desceram o morro e alcançaram o asfalto para provar que destino não é algo dado. Com as ferramentas certas é possível inventar um futuro bastante ensolarado, igual ao verão carioca em janeiro. Um dos sonhos que ficou para trás, ali na adolescência tão agitada e confusa que teve, surgiu quase no fim da entrevista: "Se tivesse existido um Favela Radical quando era criança, hoje eu seria um surfista profissional".

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