A consultora

Após criar manual em casa, Gabriela Augusto já ajudou dezenas de empresas a pensar sobre diversidade no Brasil

Marcos Candido De Ecoa, em São Paulo Duda Gulman/UOL

"Durante a faculdade, entrei em contato com várias outras realidades e acabei criando a força para viver a minha transgeneridade de forma pública. Foi nesse momento que a Gabriela nasceu. Junto dela, a necessidade de falar para as pessoas do meu entorno que eu não era mais ele e sim ela.

Eu nunca "contei" para a minha mãe que eu sou trans. Simplesmente fui deixando de lado as coisas atreladas ao gênero masculino e me permitindo viver aquilo que estava relacionado com o universo feminino. Ela não precisou dizer que me aceitava como sou, apenas seus gestos já demonstravam seu sentimento.

Tenho certeza de que esse apoio que recebi me deu coragem para enfrentar os desafios da vida. Com 26 anos me formei em direito em uma importante universidade, fundei uma empresa de consultoria e assumi um cargo de gestão, passando a trabalhar com importantes projetos no Brasil e na América Latina.

Percebi que tinha que trabalhar ainda mais para promover mudanças. Isso me fez ficar até mais tarde, conversar com as empresas. Ir até elas abriu as portas para que a Transcendemos virasse uma referência em diversidade e inclusão. Muita coisa mudou nos últimos anos: há um movimento global de tomada de consciência e as pessoas estão mais em busca de seus direitos, com mais pessoas falando sobre racismo, colorismo, LGBTs."

No começo da carreira, a consultora Gabriela Augusto, 26, bateu de porta em porta para tentar cumprir a missão de mudar o mercado de trabalho. Claro, isso não soa nada fácil. E não é.

Hoje, Gabriela é fundadora da consultoria Transcendemos. As empresas telefonam para ela, enviam mensagens e pedem ajuda por e-mail para se tornarem mais diversas, plurais e responsáveis. Também foi eleita entre as Top Voices, ranking para se ficar de olho no LinkedIn. Mas nem sempre foi assim.

Em 2017, Gabriela criou um pequeno livro chamado "Manual Empresa de Respeito", tudo foi por ela - texto, diagramação, impressão e distribuição - e com dinheiro do próprio bolso. O material era distribuído de graça e tinha dicas para combater a LGBTfobia, o assédio, o racismo e o capacitismo no ambiente de trabalho.

Nem todos os empresários, porém, pareciam entendê-la. Alguns marcavam reuniões e não apareciam. Outros gentilmente recusaram o material, mesmo sem custos. A recepção fria foi uma decepção na época, mas também serviu de estímulo.

A primeira empresa a recepcioná-la foi uma hamburgueria de São Paulo, onde chefes e os funcionários queriam aprender a atender bem a clientes LGBTQIA+ e Gabriela ministrou cursos para auxiliá-los. No ano seguinte, continuou a conquistar novos clientes. Em 2018, tinha a própria empresa.

"Eu converti a frustração em força", diz ela que esteve junto a Ecoa nos últimos meses com parte de nossa Curadoria.

Duda Gulman/UOL Duda Gulman/UOL

Gabriela é formada em Direito pela PUC-SP, onde estudou como bolsista. Durante o curso, se apresentou como mulher trans após um longo processo de amadurecimento. Antes da transição de gênero, sofria com o racismo, que foi somado a uma série de novas violências.

"Houve amigos mais conservadores que me entenderam mais facilmente do que quem era mais ligado a uma postura progressista e, na teoria, seria mais aberto", diz. A mudança de nome nas universidades ainda era um processo burocrático e exigia idas e vindas entre solicitações.

Após se formar, tinha o receio de como seria quando enviasse seu currículo. A transição tinha acontecido há menos de um ano, e agora ela teria que enfrentar o mercado de trabalho como mulher trans. Vários pensamentos passavam pela cabeça: Como vão reagir a uma pessoa trans? Será que eu perderia uma vaga por ser quem eu sou?

Não eram questões apenas dela, mas que afetam tantas outras pessoas trans. Gabriela tinha um retrato desse abismo de oportunidades cada vez que percebia ser a única pessoa trans não só como candidata em processos de seleção, mas em toda a empresa onde trabalhava.

A transfobia, às vezes, era velada. Em outras, aberta e cruel. As barreiras, que começam ainda dentro de casa, aumentam a informalidade de pessoas trans. No Brasil, 90% das mulheres trans e travestis têm a prostituição como fonte de renda e possibilidade de subsistência, segundo a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra).

Gabriela sentiu que precisava lutar para incluir mais pessoas trans, como ela. Foi quando desenvolveu o manual e deu o pontapé na Transcendemos.

Na medida que eu vi que o desafio era ainda maior do que eu havia calculado, eu percebi que tinha que trabalhar ainda mais para promover mudanças

Gabriela Augusto

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Enquanto isso, crescia a ideia pelo mundo de que empresas mais diversas têm ambientes mais saudáveis para trabalhar, estimulam mais a criatividade e a produtividade e aumentam o faturamento. O posicionamento também não se restringiu aos números.

Grandes companhias decidiram ajudar no desenvolvimento econômico e na conquista de direitos de populações vulneráveis, como negros, LGBTQIA+, mulheres e PCDs. A palavra "diversidade" foi difundida no mercado de trabalho por corporações como Google, Microsoft e Amazon.

Empresas criaram grupos internos — os chamados "comitês" — para unir e ouvir as demandas de funcionários negros, LGBTQIA+, PCDs, mulheres e pensar ações de diversidade. A seleção de candidatos passou a considerar a origem social, a classe, a cor dos profissionais.

Apesar disso, muitas empresas ainda não sabem como atender clientes, acolher, contratar, treinar e promover funcionários que não são brancos, cisgênero e heterossexuais. É aí que entra Gabriela.

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A Transcendemos promove palestras, produz material para comunicação interna, externa, leciona workshops, organiza rodas de conversa, apoia comitês internos de diversidade, faz logística de eventos de diversidade, faz gerenciamento de crise e propõe metas para empresas cumprirem no futuro.

Nem todas as companhias sabem detalhadamente o perfil de seus funcionários. Por isso, a consultoria também faz um censo para mapear as características de quem trabalha. A consultoria também desenvolveu o "Empresa de Respeito", selo para reforçar a responsabilidade de uma empresa com a diversidade.

De 2017 para cá, a consultoria de Gabriela atendeu a mais de 100 empresas. "São de vários setores: e-commerce, bancos, restaurantes, games", explica. Além do Brasil, também presta consultoria em países da América Latina, como México e Argentina.

Uma das empresas é a montadora Hyundai. A gigante do setor automotivo promoveu uma palestra com 190 mulheres, da produção ao administrativo, que refletiram sobre o que é ser mulher na sociedade e no mercado de trabalho. "Entendemos que a Gabriela ofereceria às nossas colaboradoras e, também a nós do RH, reflexões para contribuir para um ambiente igualitário entre diferentes gêneros", explica Lilian Amorim, supervisora sênior de T&D, Cultura e Desenvolvimento Organizacional da Hyundai Motor Brasil.

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Segundo Gabriela, as empresas continuam a demonstrar vontade em diversidade. "Quando olhamos para os cargos mais elevados, ainda temos poucas pessoas pretas e trans", diz.

Para ela, é comum a exigência de qualificações como cursos internacionais e outros idiomas, requisitos difíceis de serem alcançados por pessoas trans. As dificuldades são comprovadas por números.

O primeiro mapeamento da população trans na cidade de São Paulo revelou em janeiro que apenas 29% das travestis concluíram o ensino médio. Cerca de 80% já sofreram violência verbal com xingamentos transfóbicos, enquanto 58% das travestis e 45% das mulheres já foram vítimas de algum tipo de violência física.

É um caminho difícil, mas que Gabriela se propôs a cruzar. Hoje, ela emprega sete pessoas na Transcendemos e já impactou centenas de funcionários por todo o país.

Ainda falta muito, mas é muito bom que as empresas estejam direcionando esforços para um mercado mais inclusivo

Gabriela Augusto, fundadora da Transcendemos

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