Fora só das quadras

Ana Moser, atleta que fez história no vôlei, levou a garra do esporte para projeto educacional

Rômulo Cabrera De Ecoa Lucas Seixas/UOL

Ana Moser, então com 32 anos, saiu do vestiário, deu uma volta olímpica pelo ginásio Lauro Gomes, em São Caetano do Sul (SP), e seguiu em direção à área onde os familiares estavam reunidos. Ela segurou as mãos da mãe, dona Julieta Moser, e caminhou até o centro da quadra para receber as honrarias. Momentos depois, um jornalista perguntou o já clássico "o que sentiu ao percorrer o local?". "Eu me dei conta de que era a última vez que eu iria saudar a torcida de dentro da quadra", disse, com a voz embargada.

Atleta olímpica e uma das maiores atacantes do voleibol mundial, Ana Moser se despediu das quadras no dia 19 de março de 2000, em partida que reuniu as melhores jogadoras daquela geração. "O joelho não está reagindo mais, tenho muitas dores", revelou, durante o anúncio de que encerraria as atividades no vôlei, meses antes. Ela passou por quatro cirurgias, a primeira, aos 16 anos, no joelho esquerdo. A última, em 1996, no direito.

A aposentadoria, no entanto, não foi uma despedida total do esporte.

Um ano depois, em 2001, Aninha, como também ficou conhecida nas quadras, fundou o Instituto Esporte e Educação (IEE), que há 18 anos desenvolve e dissemina a cultura da prática esportiva em comunidades de baixa renda pelo Brasil.

De lá para cá, a entidade presidida pela ex-atleta, que hoje tem 51 anos, já atendeu 6 milhões de crianças e adolescentes em ações por todo o país, segundo informações do Instituto, além de ter capacitado mais de 45 mil educadores para a formação cidadã por meio do esporte.

Lucas Seixas/UOL
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Um vício

Pessoalmente, Ana parece tímida, de poucas palavras. Costuma andar rápido, como se não quisesse ser reconhecida. "Não gosto de chamar a atenção." Em sua autobiografia, "Pelas minhas mãos" (2003), ela disse que por muitas vezes fantasiou ter uma máscara, como disfarce, para ser usada dentro das quadras. Mas isso nada tem a ver com o sentimento da atleta. "Muitas vezes confundem esse meu mal-estar com convencimento, com desprezo. É uma pena", escreveu.

"Eu não jogava vôlei para ser notícia, para ser clicada e filmada a todo momento. Joguei porque era uma apaixonada, porque a competição é um vício. Tenho as mesmas carências, as mesmas virtudes, pequenos e grandes pecados, como qualquer outra pessoa."

Durante a conversa com a reportagem de Ecoa, Ana só abriu o sorriso quando alguém sugeriu que segurasse uma bola de vôlei durante a sessão de fotos realizada nas dependências do Instituto Esporte e Educação, na Vila Tramontano, zona oeste de São Paulo. A mudança foi quase instantânea: "Agora estamos falando a minha língua", brincou, enquanto fazia alguns truques e poses com a bola nas mãos.

Os "levantadores"

Quando pequena, a catarinense assistiu a um jogo ao lado dos pais — a irmã Isabel Cristina, dois anos mais velha, era umas das atletas em quadra. Ana ficou muitíssimo assustada. O pai, Acari, tremia como vara verde. A mãe, Julieta, tinha as mãos ensopadas de suor. "Parecia que iam ter um ataque", lembra. "Fico imaginando o que eles devem ter passado nas várias decisões de que eu participei ao longo da carreira."

Ana Beatriz Moser nasceu em Blumenau (SC), em 14 agosto de 1968. Ela começou a jogar voleibol aos sete anos de idade junto com a irmã. "Sou cria de uma família que sempre praticou esportes na cidade, seja o futebol, o basquete, o vôlei. Portanto, foi um processo natural para mim. Era algo que fazia parte da minha vida."

As duas irmãs frequentaram os ginásios de Blumenau desde muito cedo. "Meus pais iam para torcer, eu para bagunçar com as outras crianças." Julieta acompanhou as filhas nas escolinhas e esperava na arquibancada até que os treinos acabassem — matava o tempo bordando ou tricotando. "A presença dela era um apoio muito importante para nós, que adorávamos aqueles momentos de diversão e convívio."

Lucas Seixas/UOL Lucas Seixas/UOL

Aos 16 anos, saiu de casa e entrou em quadra para fazer história como jogadora profissional de vôlei. Ana foi considerada a melhor atacante em 1990, no Mundial de Pequim. Em 1992, o seu saque foi eleito o melhor das Olimpíadas em Barcelona.

Ao longo de 15 anos como profissional, ela atuou em oito equipes no Brasil. Em duas delas teve passagens marcantes. Pelo Sadia (1988-1990), conquistou três títulos nacionais. Depois, pelo Leite Moça (1993-1995), levou outros três títulos brasileiros. Ana foi titular absoluta da seleção durante 13 anos seguidos.

Ela chegou ao alto rendimento no voleibol por vários fatores, como talento, incentivo e dedicação, embora reconheça que alguns deles foram independentes da própria vontade: "É o que carrego em minha genética, como a altura, a força". Mas, para a ex-atleta, algo é inegável: sua escalada na modalidade só foi possível por causa do acesso que teve ao esporte desde muito cedo.

Tive sorte por ter uma família que me apresentou o esporte para descobrir as minhas potencialidades. E uma das minhas maiores alegrias, depois de todos esses anos, é ter podido recompensar o esforço deles e deixá-los orgulhosos com minhas vitórias."

Ana Moser, ex-atleta de vôlei

Barreira 'intransponível'

Ana Moser era imponente nas quadras. Destacava-se não só pela força dos seus ataques mas pelos clássicos duelos travados com a seleção de Cuba ao longo da carreira. "Respeito! Respeito! Respeito!", ela repetia, com o dedo em riste para a cubana Regla Bell, que a provocara em derrota nas semifinais dos Jogos Olímpicos de Atlanta, em 1996. As brasileiras conquistariam a inédita medalha de bronze — "com sabor de ouro" — na partida seguinte contra a equipe da Rússia. "Foi a batalha mais difícil que enfrentei e a conquista mais importante da carreira."

Sete meses antes, em 22 dezembro de 1995, Ana sofreu uma grave contusão no joelho direito em partida pela Superliga Feminina, quando era jogadora da equipe Leite Moça, de Sorocaba (SP). Ao aterrissar de um salto simples de ataque, convertido em ponto para a equipe paulista, Ana sentiu uma forte dor "e a sensação de estar quebrando a perna ao meio". Ela caiu deitada e, por um instante, antes de ser socorrida, passou-lhe todo o filme do drama que iria enfrentar até os Jogos Olímpicos, em junho do ano seguinte.

Ana rompeu o ligamento cruzado do joelho direito, "a perna boa". Precisaria reconstruí-lo e fortalecê-lo em pouquíssimos meses. "Não existia dúvida quanto ao diagnóstico. Naquela altura, eu tinha total consciência de que teria que fazer uma cirurgia de reconstrução de ligamento. Dormir naquela primeira noite foi um suplício. Não conhecia nenhum atleta, principalmente de vôlei, que tivesse se recuperado tão rápido para estar em plena forma em tão pouco tempo. Por alguns dias eu vi o meu mundo cair."

France Presse France Presse

"As chances de recuperação de Ana são muito grandes", garantiu na época o médium Waldemar Coelho, ao jornal Folha de S.Paulo. Segundo ele, se os "médicos da terra", conforme denominou os cirurgiões da medicina tradicional, trabalhassem aliados aos "cirurgiões mediúnicos", a atleta estaria recuperada para disputar a Olimpíada de Atlanta.

A gana de participar da competição era tamanha, que a catarinense se apoiou em terapias alternativas para complementar o tratamento médico. "Ficar de fora da disputa entre os três primeiros está fora de cogitação", disse. "Qualquer resultado que não inclua uma medalha olímpica será considerado uma derrota pessoal."

Contrariando o histórico esportivo até então, Ana conseguiu se recuperar a tempo para os jogos nos EUA. "Eu queria muito estar lá. Foi a coroação do trabalho de uma geração talentosa — e da minha contribuição dentro disso." Ela já havia superado tantas barreiras, dentro e fora da quadra, que seria uma ironia muito grande ficar de fora daqueles Jogos Olímpicos por uma questão de tempo de recuperação.

É toda essa garra que Ana hoje direciona para o projeto que leva esporte e educação a comunidades com alto índice de vulnerabilidade social. "Eu tive o privilégio de viver o esporte nas suas mais diferentes dimensões, não apenas a do alto rendimento, a que devo toda a minha carreira." A dimensão social foi a base de tudo: "O esporte foi onde me formei gente". E o contato com outras experiências ao redor do mundo contribuiu não só para a evolução enquanto atleta mas para o amadurecimento de sua percepção sobre o papel do esporte na vida das pessoas. "O esporte é para todos, não só para os 'bons de bola'."

Lucas Seixas/UOL

Ensino do esporte

Em 2001, recém-aposentada das quadras e disposta a contribuir com o combate à desigualdade social e à falta de oportunidades, Ana liderou um grupo de profissionais para a criação do Instituto Esporte e Educação (IEE), que hoje é presidido pela medalhista olímpica.

À época, em parceria com a equipe paranaense de voleibol Rexona, o IEE passou a coordenar um primeiro núcleo esportivo na favela de Heliópolis, na zona sul de São Paulo. "Foi montada toda uma estrutura, como uma escolinha de esporte", explica.

O projeto passou a atender crianças e adolescentes com atividades de iniciação no vôlei, além da capacitação de professores e estagiários de educação física para atuarem diretamente dentro das comunidades por meio da metodologia esporte educacional, base de todos os projetos desenvolvidos pelo Instituto.

"Brincando de fazer esporte, enriquecemos não apenas o vocabulário motor das crianças, o que já é esperado, mas podemos ensiná-las inúmeras outras questões sociais e coletivas, como agir cooperativamente com o outro", explica educador físico e doutor em Psicologia Escolar pela USP João Batista Freire, 71, um dos coordenadores pedagógicos do IEE.

A rede de núcleos já soma mais de 20 polos, entre São Paulo, Rio de Janeiro e Pernambuco. A estrutura é montada em escolas e ginásios de comunidades de baixa renda, onde os educadores desenvolvem atividades regulares, abrangendo modalidades esportivas e educativas diversificadas, como voleibol, basquetebol, futebol, atletismo, ginástica, entre outras.

O objetivo é ampliar a cultura ao esporte, além de contribuir com a formação crítica de jovens e adultos para que sejam participativos e transformadores da própria realidade.

Sempre acreditei que a dimensão social do esporte ultrapassa a atividade profissional."

Ana Moser, ex-atleta de vôlei

Lucas Seixas/UOL Lucas Seixas/UOL

Voz pronta para o diálogo

Nesses 18 anos do Instituto Esporte Educação, Ana lembra com carinho de momentos em que a atuação do projeto possibilitou o diálogo e o acolhimento. "Um deles foi no Jardim São Luís, na zona Sul de São Paulo. A gente chegou lá há uns 15 anos, e havia alguns meninos gays em um grupo que jogava vôlei, o que muitas vezes gerava conflitos, inclusive com mães de garotos que não queriam os filhos perto deles durante as atividades."

Ana Moser e a equipe do projeto apostaram no diálogo como forma de entendimento. "Nós colocamos tudo na mesa, dialogando entre as partes. Dissemos: 'Nós vamos conviver aqui. Todo mundo tem que vir, todo mundo tem que se sentir bem aqui'. E deu certo. Não tem segredo, é botar na mesa e conversar. O diálogo é sempre importante. Partindo desse princípio, de incluirmos a todos, a gente constrói coletivamente."

Ana sabe que o fato de ser uma ex-jogadora famosa ajuda a ser ouvida, mas reforça: "Não sou melhor que ninguém, só ganhei visibilidade. Minha função como sortuda da história é dar a contrapartida a quem não teve as mesmas chances que eu tive".

Lucas Seixas/UOL Lucas Seixas/UOL

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