Periferia é o centro

Amanda Costa ensina vizinhos da Brasilândia, em São Paulo, sobre reciclagem, consumo consciente e mobilidade

Maiara Marinho Colaboração para Ecoa, de São Paulo (SP) Eduardo Knapp/Folhapress

"Em 2017, tive a oportunidade de representar a juventude brasileira na COP23, Conferência de Clima da ONU que aconteceu em Bonn, na Alemanha. Lá, eu me senti muito incomodada, porque não via pessoas parecidas comigo abordando esse tema. O que eu via eram pessoas se apropriando do meu lugar, da minha narrativa, para falar de um problema que me atravessava.

A gente não teve uma educação climática, então muitas vezes esses debates são lidos como pertencentes a pessoas brancas, elitizadas, ricas, privilegiadas. Mas, quando a gente aprofunda o debate, trazendo intersecções, a gente entende que a maioria preta e de quebrada está sendo mais impactada.

Mas também foi lá na COP que conheci o pessoal do Engajamundo e fiquei 'uau, que legal, tem bastante jovem que fala com propriedade e domínio, ao mesmo tempo em que estou mobilizada com meus pares'. Voltei para o Brasil e entrei no Engajamundo.

O sentimento de 'por que não tem pessoas parecidas comigo nesse ambiente?' foi cristalizando em mim quando fui para a Polônia para participar da COP24. Em 2019, apliquei para um programa que estava selecionando jovens do Sul Global que tinham ideias para transformar sua realidade.

Fui para os Estados Unidos, fiquei lá desenvolvendo o Perifa Sustentável, voltei e o projeto nasceu. Coloco a minha dor para mobilizar, pois queria criar algo para fazer pontes: juntar o que está acontecendo a nível global com o que está acontecendo a nível local."

Ações comunitárias na Brasilândia

"O Perifa surgiu baseado em três pilares: educomunicação; participação política; e ações comunitárias no próprio território", explica Amanda, 25 anos e moradora da Brasilândia, bairro na zona norte de São Paulo,.

Apesar de ter retornado ao Brasil cheia de planos para a criação do Instituto, Amanda precisou refazer seu planejamento devido à pandemia de covid-19. Para não perder o feeling do projeto, concentrou-se nas redes sociais. "Por um lado foi importante ", conta, "porque consegui ampliar o alcance da mensagem e fui reconhecida por isso".

Em 2021, a ativista e mais três jovens do Perifa, todas mulheres negras, fizeram uma campanha de arrecadação financeira para participar da COP26, em Glasgow, na Escócia. Foi a primeira vez na história do evento que o movimento negro brasileiro esteve presente, com representantes da Coalizão Negra por Direitos, UneAfro, Alma Preta, PerifaConnection, Conaq e Instituto Perifa Sustentável.

Atualmente, o Perifa promove reuniões de planejamento para dar início às ações territoriais na Brasilândia, enquanto estrutura o estatuto da organização. Para desenvolver as ações locais, foi criado um grupo de atuação em dois eixos: o de comunicação e mobilização, e o de mapeamento e diagnóstico.

O grupo quer "pensar como a gente mobiliza a comunidade para elencar um desafio dentro do próprio contexto e criar uma solução local para esse problema, sustentado pela missão de mobilizar juventudes para desenvolver uma nova agenda de clima sustentável a partir da perspectiva de raça e de clima".

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O que a crise climática tem a ver com periferia?

Embaixadora da ONU e delegada do Brasil no G20 Youth Summit, Amanda conta que quando fala sobre levar o tema da crise ambiental para o bairro, muitas pessoas se espantam, pois não percebem a relação do meio ambiente com a sua realidade na periferia. "Falar de crise climática é falar de alimentação, de transporte, de mobilidade, de habitat, de verde urbano, de saúde, de tudo", explica.

Então, o Instituto olha para ativismo no dia a dia da população e incentiva ações como reciclagem, consumo sustentável, uso de bike para mobilidade e também promove a #SegundaSemCarne. O objetivo é fazer o diagnóstico das necessidades da Brasilândia e integrar com as ações já existentes. "As pessoas periféricas são as que mais sofrem nesse sistema estruturalmente excludente", comenta.

O racismo ambiental no Brasil tem suas raízes nos cortes de políticas públicas de habitação, somado ao aumento do desemprego nos últimos anos e a ausência de demarcação de terras indígenas, que deslocam forçosamente milhares de pessoas para áreas de risco. Com isso, quem vive na linha da pobreza, em sua maioria pretos e pardos, também é o recorte mais afetadas pelos efeitos da crise climática.

"As pessoas periféricas estão sofrendo com os principais problemas de um sistema que é estruturalmente excludente e fundamentado na exploração da mão de obra preta e na disputa pelos nossos territórios", explica Amanda.

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Meio ambiente e raça no centro

Quando Amanda Costa começou a cursar Relações Internacionais, em 2016, a pauta climática já fazia parte do seu cronograma de ações. Por ter nascido e crescido na periferia de São Paulo, levava o debate ambiental a partir da realidade do território urbano por onde passava. Mas foi em 2019 que se percebeu preta e passou a mobilizar a luta antirracista lado a lado com a luta climática.

"Depois que comecei a olhar mais para essa questão de raça, racializando o debate climático, vi a potência e a dor desse lugar. Em março de 2019, aconteceu a minha epifania racial, quando eu me reconheci enquanto mulher preta", conta.

Na Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (COP23), em 2017, Amanda conheceu a ONG Engajamundo e começou a atuar na organização. O processo de identificação racial aconteceu após um curso de formação sobre o tema e foi fundamental para compreender como a transversalidade de raça e classe estão no centro dos principais problemas humanitários.

Com a oportunidade de participar de mais uma COP, em 2018, Amanda foi ganhando experiência, além da chance de trocar expectativas, angústias e ideias com outras pessoas e organizações.

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Um espaço para ter voz ativa

Atual diretora-executiva do Instituto Perifa Sustentável, Mahryan Sampaio tem um histórico bastante amplo de atuação em outras organizações. Ela conheceu a Amanda em uma formação de Embaixadores da Juventude da ONU e foi convidada para integrar a equipe do Perifa. Mahryan conta que, até então, percebia alguns entraves em comum nos projetos em que participava como, por exemplo, a falta de escuta ativa e da presença de jovens como tomadores de decisão.

"Na maioria das organizações, os projetos direcionados à galera mais jovem são desenvolvidos por pessoas mais velhas. Eles cometem um dos maiores erros na hora de criar um projeto: pressupõem o que os jovens querem, sem realmente ter uma pessoa jovem na condução desse projeto, ou realizar pesquisas adequadas", relata.

No Perifa, ela encontrou um espaço totalmente diferente. "Ele desafia essa lógica normativa no mercado do trabalho e coloca os jovens no processo de tomada de decisão, organização e mobilização. Isso é revolucionário", afirma.

Mahryan teve uma sensação adicional de empoderamento ao viajar para a COP26, no ano passado, "por estar representando parte da juventude negra e feminina naquele espaço". Para ela, oferecer palestras, participar de entrevistas e em protestos pela causa foi crucial para entender a importância de levar pautas locais para espaços internacionais, que muitas vezes acabam invisibilizadas no Brasil.

Quero ser o agente político que vai desenvolver a ação. A mudança vai vir da base, dos territórios, nas comunidades, mobilizadas, engajadas

Amanda Costa, ativista pelo clima e criadora do Perifa Sustentável

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Mudança vem da base

A presença do movimento negro nesta última COP fez Amanda lembrar da primeira conferência que foi e ver a evolução das pautas sobre clima, ainda que o centro do debate esteja longe da vida das população em situação de vulnerabilidade.

"Tenho duas visões sobre a COP. Primeiro: fiquei muito feliz por ver mais pessoas pretas frequentando aquele espaço, ver o movimento negro articulado puxando agenda, debatendo, questionando. E, segundo, o fato de que não é apenas ocupar um espaço, mas é pensar onde esse discurso está chegando".

Os debates mais presentes na COP26, segundo Amanda, diziam respeito sobre temas distantes da periferia como, por exemplo, a taxa permitida para emissão de dióxido de carbono. Para ela, discussões como essa são apenas "um desdobramento desse sistema capitalista que coloca o lucro no centro do debate".

Ainda assim, é um espaço fundamental para "entregar mensagens", comenta. Para Amanda, criar o Perifa Sustentável é uma oportunidade para que pessoas lidas como brancas não falem por ela.

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