Fé inclusiva

Abandonada pela mãe por ser trans, ela criou projeto para incluir travestis e transexuais na Igreja Evangélica

Paula Rodrigues de Ecoa Tuane Fernandes/UOL

A única herança que Jacqueline ganhou dos pais foi a fé em Deus. Desde recém-nascida, era levada pela família aos cultos na sede da Igreja do Evangelho Quadrangular, em Belém (PA). O templo foi durante muitos anos a sua segunda casa. E não apenas pela presença frequente nas celebrações religiosas, mas também por ter vivido no quartinho dos fundos da igreja dos 13 aos 19 anos. Morou lá após ser abandonada pela própria mãe no local.

A desculpa era que só a religião conseguiria "mudar o jeito afeminado" dela - como Jacque descreve o comportamento que tinha na infância antes da transição de gênero. A mãe a deixou no templo com uma única mala e o aviso de que o pastor, Rui Beckman, seria a partir daquele momento o responsável pela criação da garota. Só mudou de casa - e de Igreja - quando ele, a quem hoje se refere como "pai", foi morto a tiros por traficantes do bairro, em 1983.

Do pastor, herdou o sobrenome que adotou no começou da transição de gênero, aos 23. Atendia, então, pelo nome de Vatusa Beckman. Agora, aos 56, chama-se Jacqueline Chanel. Mudou-se para São Paulo, virou cabeleireira, acaba de ser eleita organizadora da Caminhada Trans da capital paulista e não anda só. Debaixo de suas asas, acolhe LGBTQI+ que já passaram por exclusão social.

A maioria possui um passado religioso. Por terem sofrido algum tipo de preconceito, porém, todas se afastaram das igrejas mais tradicionais que frequentavam. Pensando nisso, há seis anos, Jacque criou o projeto Séforas. Queria ajudar, especialmente transexuais e travestis, a se reaproximarem da doutrina evangélica. Toda segunda-feira reúne quem a procura em uma roda na ICM (Igreja da Comunidade Metropolitana de São Paulo). Na hora de começar a pregar para quem deixou de ser convertido há um tempo, ela parece escolher com cuidado as palavras quando, ao microfone, diz:

Que vocês reconquistem o direito a ter uma fé."

Tuane Fernandes/UOL
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Expulsão da Universal

A ideia do projeto Séforas começou a tomar forma há dez anos, dentro de uma sede da Igreja Universal do Reino de Deus, em São Paulo. Após perder o emprego de administradora em uma companhia de Belém (PA) por causa de um corte de funcionários, Jacque decidiu migrar para a capital paulista à procura de trabalho. Encontrou uma vaga na antiga Telesp. Também diz que começou a sentir um grande vazio no peito e sabia que tinha a ver com a falta da religião em sua vida.

"Passei a frequentar os cultos na Universal. Depois de um tempo, comecei a me enturmar muito com os LGBTs de lá. Começamos a participar mais ativamente das atividades religiosas. Até que, um dia, durante um culto, o pastor nos chamou até o altar e nos expulsou da igreja na frente de todo mundo", afirma.

A expulsão veio seguida pela demissão na empresa que trabalhava. O motivo, segundo Jacque, foi o de que ela podia prejudicar a imagem da companhia. "Não falaram como eu causaria esse prejuízo diretamente, mas viviam pegando no meu pé por eu ser trans," conta. Decidiu, então, que sairia de vez do mercado formal de trabalho e iria para o informal. Como havia feito um curso de cabeleireira em Belém, decidiu abrir um salão de beleza.

Um certo dia, um homem gay entrou no salão para cortar o cabelo. Jacque o atendeu e, durante a conversa, ele contou que era pastor. Também a convidou para ir a um culto em uma igreja inclusiva, em Santo André, região metropolitana de São Paulo.

Sempre ouvi em igrejas fundamentalistas que igrejas inclusivas eram coisa do demônio. Mesmo assim, fui por curiosidade. Chegando lá, encontrei um público de pessoas LGBTQI+, e o pastor cumprimentava um por um com um abraço antes da oração. Quando ele começou a pregar falando como Deus era bom e amava todos sem fazer distinção, eu pensei: finalmente encontrei um Deus inclusivo, um Deus que acolhe

Jacqueline Chanel, líder religiosa e fundadora da ONG Séforas

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Para todos

Os resultados da pesquisa realizada pelo projeto #VoteLGBT em Paradas do Orgulho LGBT, entre 2016 e 2018, mostram que há um expressivo número de cristãos entre os frequentadores do evento em três capitais brasileiras. No Rio de Janeiro, 39% se declaravam cristãos; em São Paulo, o número sobe para 42%; já Belo Horizonte possui mais da metade: 51%.

Contudo, não é possível dizer quantos frequentam celebrações religiosas, seja em igrejas fundamentalistas ou progressistas. Os números sobre igrejas inclusivas no Brasil também são escassos. A antropóloga Fátima Weiss é uma das poucas que tentam monitorar o surgimento dessas instituições. Em 2012, ela diz ter encontrado 20 unidades pelo Brasil.

No estudo "Unindo a cruz e o arco-íris", a antropóloga as define da seguinte forma: "Igreja inclusiva é o termo êmico, usado no campo estudado, para as Igrejas que 'acolhem' pessoas LGBTs." Segundo Fátima, elas apareceram no país no final dos anos 90 com a formação de grupos GLS (Gays, Lésbicas e Simpatizantes) - antiga expressão usada para definir movimentos que hoje chamamos de LGBTQI+ - que debatiam sobre religião e homossexualidade, tendo como base experiências próprias em igrejas tradicionais.

"Porém, agora, nas igrejas mais institucionalizadas, como a ICM (Igreja da Comunidade Metropolitana), que é a primeira inclusiva no mundo, há uma autonomia e distanciamento das igrejas 'tradicionais' no que diz respeito à construção de uma teologia própria, uma teologia inclusiva", completa a especialista.

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Criando um grupo religioso trans

Jacque diz que, após descobrir as igrejas inclusivas, não parou de frequentá-las. Na maioria delas, porém, encontrou outro incômodo: todos ou quase todos os projetos religiosos eram voltados apenas para homens gays.

O G [gays] da sigla tem mais força do que as outras letras, isso porque o movimento ainda reproduz alguns conceitos da nossa sociedade, como a priorização da figura masculina. Muitas igrejas inclusivas seguem esse modelo também. Daí, quando você vê, o T [transexuais, travestis e transgêneros] fica sempre em segundo plano"Jacqueline Chanel, líder religiosa e fundadora da ONG Séforas

Nesse cenário, ela passou a cobrar os líderes religiosos para que desenvolvessem algum tipo de ação para fiéis trans. Seis anos atrás, recebeu como resposta da CCNE (Congregação Cristã Nova Esperança), em São Paulo, a autonomia para criar o Ministério Séforas, um grupo de louvor voltado para transexuais e travestis.

Segundo a Bíblia, Séfora foi a mulher de Moisés. Em estudo da PUC-SP sobre a personagem, a teóloga Francisca Suzuki a classifica como alguém que contradiz "eventuais preconceitos ao defender a sobrevivência de quem se vê ameaçado e ao assumir o protagonismo como mulher". Daí veio a inspiração para o nome do grupo de Jacque.

"Séfora era uma mulher proativa. Responsável por salvar Moisés da morte. Eu queria representar essa vontade de agir, de fazer algo para quem amo. No caso, minha comunidade que quase nunca é lembrada ou respeitada," conta a líder religiosa. Há três anos, Jacque transformou o ministério em ONG, e há um ano realiza as atividades do grupo na ICM-SP (Igreja da Comunidade Metropolitana de São Paulo).

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Política e religião

É capaz que você já tenha ouvido falar que futebol, política e religião não se discutem. Durante as 2h30 da última reunião de janeiro da ONG Séforas, não deu para saber quem torce para o Corinthians, o que acham sobre o novo técnico do Santos ou se alguém ali tinha alguma opinião formada sobre a renovação de contrato do atacante Gabigol com o Flamengo. Tirando o futebol, porém, os dois outros temas não apenas foram discutidos, como também misturados.

De forma orgânica, começaram falando sobre a dificuldade de conseguir matrícula na escola sendo uma pessoa trans sem nome social na carteira de identidade, passaram por críticas à bancada evangélica no Congresso Nacional - que elas dizem não representar o verdadeiro cristão - e terminaram discutindo o momento bíblico em que Daniel foi lançado na cova dos leões.

Nós tentamos subverter essa lógica da Igreja, em que apenas o líder religioso tem espaço para falar. Muitas passaram por processos dolorosos: expulsas de casa, em situação de rua, sem ter qualquer tipo de ajuda... Isso faz com que elas não acreditem que têm direitos. Por isso, deixo sempre que falem o que quiserem, para se sentirem cada vez mais confortáveis para recuperar o poder da fala, principalmente dentro da religião.

Jacqueline Chanel, líder religiosa e fundadora da ONG Séforas

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Na maior parte do tempo da reunião, Jacque não abre a boca. Está sempre atenta, prestando atenção ao que as outras pessoas têm a dizer. Se mostra indignada quando o assunto é o presidente Jair Bolsonaro (sem partido). Um dos membros da roda lembra uma fala do presidente em 2002: "Se eu vir dois homens se beijando na rua, vou bater". Nesse momento, Jacque apenas balança a cabeça e levanta o questionamento: "Que tipo de cristão é esse? Que Deus nos ensina a violência?"

Ao fim da reunião, quando perguntada sobre as opiniões de Bolsonaro e de outros evangélicos mais tradicionais sobre o trabalho que ela desenvolve na ICM-SP, Jacque balança os ombros. Diz saber que "pessoas preconceituosas" tecem comentários ofensivos à população LGBTQI+.

"E quando o assunto é religião, eles nem nos consideram como Igreja ou pessoas de fé. Membros de templos fundamentalistas são radicalmente contra", afirma. "Minha fé no amor que Deus tem por mim e por todas as transexuais e travestis é muito certa. Nenhum desses comentários pode acabar com isso. Eu sei que muitas das pessoas que me procuram, precisam de acolhimento e amor. E é nisso que eu foco sempre", afirma.

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Um Deus que não é carrasco

Às 19h, enquanto rola a reunião, a pequena cozinha da ICM ganha uma movimentação frenética. Grandes caldeirões são colocados no fogão para o preparo do jantar, que será servido na sequência. No último encontro, rolou uma tensão inesperada: o gás acabou bem na hora de colocar o frango para cozinhar. Em minutos, Jacque resolveu a questão.

Assim como acontece com todos os gastos e investimentos do projeto Séforas, o dinheiro do gás também saiu do bolso dela. Semanalmente, ela investe de R$ 100 a R$ 150 com os jantares da reunião, além de sempre aparecer com roupas e sapatos novos, que ficam disponíveis para doação na ICM-SP.

Quem geralmente cozinha é Rafaela Lima, grande parceira de Jacque. Rafaela, que atualmente está em situação de rua, também vai àquela igreja e aos encontros do projeto Séforas toda semana. Filha de pastor de uma igreja tradicional, foi expulsa de casa quando contou para ele que era gay, aos 14 anos. Anos depois, já longe da família, se reconheceu como uma mulher trans.

Meu próprio pai pregava falando que Deus tinha nojo de homossexual. As meninas e meninos que vêm até a Jacque têm um histórico parecido. Crescemos acreditando nesse Deus que acha pecado falar sobre sexualidade, que vai punir quem gostar de alguém do mesmo sexo? A gente cresce acreditando nesse Deus que abomina a liberdade. E, consequentemente, passamos a nos odiar por ser tudo que nos ensinam que Deus condena. A oportunidade que a gente tem com esse projeto é a de conseguir falar sobre o verdadeiro amor de Deus. Sobre o Deus que não é esse carrasco, mas sim um Deus de amor, que acolhe e te ama igualmente.

Rafaela Lima , voluntária na ONG Séforas

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Liberdade para ser

Algumas meninas que fazem parte do projeto Séforas ainda precisam esconder sobre quem são de verdade. Uma delas conta que um dos únicos espaços em que pode se vestir como quer é na igreja. Para os familiares e colegas de trabalho, ainda aparece com "roupas consideradas masculinas".

Jacque conta que já passou pelo mesmo. "Eu sei que roupa e maquiagem não têm gênero e não são coisa só de mulher, mas eu gosto, e, por muito tempo, não usava por achar errado. Até que um dia, já com uns 23 anos, me maquiaram pela primeira vez. A liberdade de finalmente poder fazer o que você sempre sonhou é emocionante", conta.

O momento que ela lembra aconteceu ainda em Belém, quando foi convidada por um amigo para ser "cobaia" de testes de maquiagem. O resultado a emocionou tanto que ela chora até hoje enquanto conta. Foi ali que diz ter conquistado segurança para ser quem sempre quis ser. Chegou até mesmo a participar de concursos de beleza LGBTQI+. Ganhou três. "Assim eu comecei a ser mais conhecida por Belém, saía em jornais locais. Comecei a utilizar isso a favor das pautas sobre transexuais que eu queria abordar naquele momento", afirma.

Foi nesse cenário que ela passou a convidar a população LGBTQI+ para montar uma força tarefa na tentativa de conscientizar e falar sobre a violência sofrida pelo grupo. "Toda semana a gente ficava sabendo de uma nova morte, principalmente de pessoas trans. Eu mesma cheguei a ver uma acontecendo na minha frente. Um homem matou uma travesti em plena luz do dia. Eu juro, morte mais cruel que a dela, só a de Jesus. E ninguém fez nada sobre isso," conta.

O grupo passou a distribuir panfletos pelas ruas convidando o povo a refletir sobre o respeito ao próximo. Promoviam debates sobre violência e morte de pessoas LGBTQI+. Jacque precisou, tempos depois, abandonar o grupo quando mudou-se para São Paulo. Com a mudança, decidiu também mudar de nome. Ela, que era Vatusa Beckman, tornou-se Jacqueline Chanel.

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Creio em Deus e nos direitos humanos, amém

Ela conta que perto da ICM-SP encontrou uma Igreja do Evangelho Quadrangular. igual àquela na qual foi abandonada pela mãe. Abre um sorriso grande ao pensar no local. Diz que sentiu um carinho gigantesco ao ver a sede em São Paulo e lembrar-se da similar de Belém. Porém, nunca entrou. Apesar de ter sido acolhida como filha pelo pastor Rui Beckman, ela diz que não se sente confortável em entrar em igrejas que considera fundamentalistas. Relembra que não dá para dizer que todas as pessoas que frequentam são preconceituosas, mas mesmo assim não quer arriscar.

Lembro de minha mãe, que sempre frequentou essas igrejas. Ela nunca me aceitou. Quando contei para ela quem eu era de fato, ela chorou por dias. Ficou se questionando onde errou. Nunca mais morei com ela desde os 13 anos. Aquilo marca. Eu também ficava mal. Orava todos os dias para Deus me curar. Só que não dá para curar o que não é doença, né?

Jacqueline Chanel, líder religiosa e fundadora da ONG Séforas

No último domingo de janeiro (25), Jacque passou a ser a organizadora da Caminhada Trans de São Paulo, antigamente chamada de Caminhada pela Paz. "A primeira coisa que fiz quando me deram essa responsabilidade foi trocar o nome. A paz não precisa de mais visibilidade. Todo mundo quer paz. Quem precisa de atenção e não está recebendo como deveria é a população trans," diz.

À frente da ONG Séfora, ela prega a "inclusão radical" na religião. Cravado na parede da ICM-SP, bem ao lado do altar, está um texto chamado "Confissão de Fé Inclusa", que Jacque classifica como o resumo de toda a ideia de inclusão e recuperação do direito a ter uma fé que prega em reuniões religiosas com transexuais e travestis. Nele, lê-se:

"Creio em Deus, Pai de todos, que deu a terra a todos os povos e a todos ama sem distinção. Creio em Jesus Cristo, que veio para nos dar coragem, para nos curar do pecado e libertar de toda a opressão. Creio no Espírito Santo, Deus vivo que está entre nós e age em todo o homem e em toda a mulher de boa vontade. Creio na Igreja, posta como um farol para todas as nações, e guiada pelo Espírito Santo a servir todos os povos.

Creio nos direitos humanos, na solidariedade entre os povos, na força da não-violência. Creio que todos os homens e mulheres são igualmente humanos. Creio que só existe um direito igual para todos os seres humanos, e que eu não sou livre enquanto uma pessoa permanecer escrava.

Creio na beleza, na simplicidade, no amor que abre os braços a todos, na paz sobre a terra. Creio, sempre e apesar de tudo, numa nova humanidade e que Deus criará um novo céu e uma nova terra, onde florescerão o amor, a paz e a justiça. Amém."

Tuane Fernandes/UOL Tuane Fernandes/UOL

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