Tiros na floresta

Casal que já educou 69 mil crianças e cria reservas para proteger a Mata Atlântica sofre atentados em SC

Juliana Domingos de Lima de Ecoa, em São Paulo (SP) Divulgação

"As pessoas não respeitam a floresta. Se eu tivesse uma plantação de eucalipto, de soja, um reflorestamento de pinus ou uma área de pastagem, não teria tanto problema como estou tendo, porque não invadem uma área assim.

Já a mata nativa, acham que está lá esperando alguém derrubar. Pensam que está abandonada. Eles não entendem que eu valorizo muito aquilo, que dou importância para a biodiversidade.

Passamos a vida inteira com medo do pessoal que quer desmatar e acha que vamos denunciá-los.

Só o fato de gostar da natureza já te torna um inimigo que precisa ser combatido. Gostar da natureza no Brasil é uma subversão".

Germano Woehl, físico e fundador do Instituto Rã-bugio

Divulgação

Desde os anos 1990, Germano e Elza Woehl investem dinheiro do próprio bolso para adquirir áreas privadas de Mata Atlântica preservada em Santa Catarina, com o objetivo de mantê-las protegidas.

Em uma dessas propriedades, em Guaramirim, o casal mantém o Instituto Rã-bugio, que já atendeu 69 mil estudantes ao longo de mais de 20 anos em projetos de educação ambiental.

Em vez do reconhecimento da comunidade, porém, os Woehl têm sido alvo de ataques. Na noite de 28 de junho de 2022, uma série de disparos foram feitos contra a residência do casal, atingindo também as placas que indicam se tratar de uma Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN).

Em setembro de 2021, segundo Germano, alguém já havia provocado um incêndio em outra de suas propriedades, também reconhecida como RPPN e localizada em Itaiópolis (SC). O fogo atingiu cerca de um hectare de vegetação nativa.

Apesar desses episódios, que veem como tentativas de intimidação, eles acreditam na educação e no contato com a natureza para mudar a mentalidade das novas gerações.

Trazemos os estudantes aqui para mostrar como a natureza é bonita e frágil também, que precisa ser protegida e que todas as formas de vida merecem compartilhar esse planeta conosco.

Germano Woehl, físico e fundador do Instituto Rã-bugio

Haroldo Palo Jr./Divulgação Haroldo Palo Jr./Divulgação

Casal pela biodiversidade

Atualmente, Germano e Elza são donos de 11 unidades de conservação que totalizam cerca de mil hectares de área, o equivalente a pouco menos de mil campos de futebol. 80% das terras foram adquiridas com recursos próprios e 20% com o apoio de doações.

A reserva de Guaramirim fica mais próxima do litoral e as demais estão localizadas no Planalto Norte Catarinense, perto de Itaiópolis, onde Germano nasceu.

"Antes, as matas encostavam na minha casa lá em Itaiópolis. De repente aquilo começou a sumir, começaram a desmatar tudo", conta.

Vendo a paisagem ser devastada, Germano e a esposa quiseram fazer alguma coisa para mudar esse cenário. Em 1994, o casal comprou com as próprias economias a primeira área de mata.

Pouco depois, entre 1997 e 1998, começaram a atuar como voluntários na divulgação da rica biodiversidade do lugar, com foco nos anfíbios. Realizaram exposições fotográficas e palestras em escolas e começaram a receber alunos para aprender em contato direto com a natureza.

Arquivo Pessoal Vista parcial da área preservada de Mata Atlântica com 40,6 ha cedida ao Instituto Rã-bugio, localizada na Serra do Mar (SC)

Vista parcial da área preservada de Mata Atlântica com 40,6 ha cedida ao Instituto Rã-bugio, localizada na Serra do Mar (SC)

Divulgação

Infância no meio do mato

O projeto cresceu e em 2003 foi formalizado como ONG. Foi também a partir do início dos anos 2000 que o casal começou a adquirir áreas maiores, dessa vez no Planalto Norte de Santa Catarina, antes pertencentes a uma madeireira.

A ligação de Germano com a natureza vem desde a infância. Quando era menino, chegou a escrever cartas para autoridades pedindo a proteção do rio Itajaí do Norte. Ele já gostava de anfíbios e se lembra de proteger os sapos dos colegas que queriam maltratá-los de brincadeira.

"Eles matavam, apedrejavam os sapos nas lagoas perto de casa. Eu achava aquilo errado pela própria educação que eu tive, de respeitar os animais. Minha mãe sempre [os] defendeu, em casa era proibido ter estilingue", disse.

Filha de agricultores, Elza também cresceu "no meio do mato" em Goioerê, no interior do Paraná. Não foi ensinada a manter a floresta em pé, mas mudou sua visão com o tempo.

Eu venero a natureza. Já tinha contato com ela, mas não esse contato de cuidado, de preservar. A gente era meio que educado a destruir. Na época, meus pais destruíam tudo para plantar lavoura.

Elza Woehl, ambientalista e fundadora do Instituto Rã-Bugio

Divulgação/Instituto Rã-bugio Divulgação/Instituto Rã-bugio

Sala de aula ao ar livre

Em 2019, a professora de geografia Sandra Soares levou duas turmas do 7º e 8º ano de escolas públicas do município de Schroeder (SC) - cerca de 80 estudantes - para visitar o Instituto Rã-bugio.

Os alunos assistiram a uma palestra de Elza Woehl sobre conservação ambiental e depois passaram a manhã caminhando pelas trilhas do projeto, aprendendo sobre a reprodução das árvores, as nascentes de rios, o desenvolvimento dos anfíbios numa lagoa e outros pontos do ecossistema da Mata Atlântica.

Segundo Elza Woehl, eles se valem de uma abordagem simples para explicar às crianças as relações entre fauna e flora a partir do que encontram nas trilhas.

"Eles adoraram, aprenderam muito", diz a professora. "Acho o projeto muito importante, não são muitos os lugares que os alunos podem visitar para aprender sobre a natureza. E para ensinar a geração de hoje sobre preservação, a gente tem que levá-los para ver no concreto".

Sandra observou um efeito imediato nos alunos: ainda no ônibus de volta, eles se mostraram preocupados com o lixo gerado no passeio e separaram-no na chegada.

Os pais, de início apreensivos com a viagem, foram depois à escola agradecer, dizendo que os filhos estavam ensinando a eles em casa sobre, por exemplo, como plantar palmeiras e quais tipos de árvores fornecem alimento para quais animais.

A gente tem que mostrar que proteger a natureza é importante para o futuro. Esse nosso programa é uma maneira dos estudantes perceberem que o sapo precisa da água limpa, que as aves precisam da floresta. Tem espécies que são muito sensíveis e precisam de ambientes íntegros, com oferta de comida abundante o ano inteiro, espécies que você jamais vai ver numa área urbanizada,

Germano Woehl, físico e fundador do Instituto Rã-Bugio

Arquivo Pessoal Crianças vestidas de sapos em atividade do Instituto Rã-bugio

Crianças vestidas de sapos em atividade do Instituto Rã-bugio

Salve os sapos

Uma das ações que mais orgulha o casal é a força-tarefa que organizaram em Corupá (SC), em 2001, para salvar sapos que vinham sendo mortos por uma infestação de carrapatos. Os ambientalistas tomaram conhecimento do problema ao realizar uma de suas palestras em uma escola do município.

Ao ouvirem o relato de uma professora sobre os sapos encontrados mortos nos quintais e jardins, cheios de carrapatos, eles coletaram e enviaram uma amostra à Fundação Oswaldo Cruz no Rio de Janeiro.

Germano e Elza descobriram que a espécie que estava atacando os sapos de Corupá era a Amblyomma rotundatum, parasita de animais de sangue frio, como os anfíbios, mas que não tinha ocorrência natural registrada na região sul do país, e sim no norte e centro-oeste. Provavelmente, os parasitas haviam sido introduzidos pelo tráfico de animais.

Com isso, o casal se uniu à secretaria de educação do município e à Fundação Grupo Boticário para criar uma força-tarefa com os alunos da rede pública: cerca de 400 crianças passaram a observar e examinar os sapos encontrados em suas residências. "Eles envolveram a família, a cidade inteira foi mobilizada para fazer esse trabalho", conta Germano.

Quando se deparavam um sapo atacado por carrapatos, ele era medido, tinha o sexo verificado e os parasitas contados e removidos, conforme orientações dadas pelos criadores do Instituto Rã-bugio.

Essas informações eram anotadas em uma ficha - mais de mil sapos foram amostrados pelos alunos, gerando dados sobre a infestação e contribuindo para a proteção da espécie Bufo ictericus, sapo da Mata Atlântica que vinha sendo atacado pelo carrapato invasor.

A iniciativa também cumpriu um dos objetivos maiores dos ambientalistas: o contato das crianças com os sapos fez muitas delas perderem o medo e o nojo que tinham dos anfíbios, passando a protegê-los e a entender sua importância para o ecossistema.

Arquivo Pessoal

Vizinhos violentos

Embora as agressões tenham se tornado mais graves recentemente, não é de hoje que a atuação do casal incomoda alguns proprietários do Planalto Norte.

Segundo Germano, desde que compraram os primeiros terrenos na região começaram a vir as ameaças. Dentro das RPPNs, há lugares onde ele não pode ir por saber que corre risco de morte.

As pressões contra a reserva vêm de caçadores - que praticam a caça esportiva dentro das RPPNs apesar de sua proibição legal no Brasil - e de outros invasores que desmatam e soltam criações de animais nas áreas protegidas.

O fundador do Instituto Rã-bugio cobra uma maior fiscalização das RPPN pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). Para Woehl, a ausência do poder público fragiliza os proprietários das reservas, que ficam mais expostos aos infratores quando são praticamente os únicos responsáveis pelas denúncias.

"Sempre tivemos desafios, mas tudo que a gente fez valeu a pena. Hoje estamos passando por isso, imagina? Para muitas pessoas, a natureza atrapalha. Infelizmente isso não vai mudar tão cedo. Por isso a gente acredita muito na geração que está vindo. Eu ainda acredito", finaliza Elza Woehl.

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