O repórter

Otimista mesmo na crise, Caco Barcellos acredita que o jornalismo pode ajudar a distribuir empatia

Marcos Candido De Ecoa, em São Paulo Maurício Fidalgo/TV Globo

Caco Barcellos está isolado no apartamento onde mora sozinho, em São Paulo. Na última terça (23), assistiu de casa a mais uma estreia de "Profissão Repórter". O programa global apresenta os bastidores da reportagem desde 2008, quando Caco já tinha muita bagagem a oferecer. Só na emissora dos Marinho está desde 1982.

O jornalista começou a trabalhar na década de 1970, fez coberturas históricas como a queda do Muro de Berlim e é autor de livros premiados como "Rota 66" e "Abusado". As obras tratam de violência policial e tráfico, com histórias coletadas no ambiente favorito de Caco: a rua. Antes do jornalismo, ele morou na periferia de Porto Alegre e foi taxista para pagar a universidade de engenharia e ajudar o pai frentista. Gostava de conhecer novos lugares e pessoas da cidade. "A cada viagem era uma história", diz.

Aos 71 anos, esta é a primeira vez em décadas que Caco se afasta das ruas. O noticiário, porém, não para de chegar até o trabalho em home office. E as notícias nem sempre soam bem. "Parte das pessoas decidiu por um governo defensor do ódio", diz. Ele afirma que já foi agredido durante o trabalho na árdua batalha contra as notícias falsas. Mas se considera otimista e tenta sensibilizar a quem assiste a ele e também enxerga uma união inédita e solidária em um momento tão delicado do país. "É uma tentativa de distribuir empatia", conta a Ecoa.

Ecoa - Acompanhar histórias sobre mortes, pobreza e fome pode endurecer quem as ouve demais. Você ainda se entristece com o que presencia?

Caco Barcellos - Sim, bastante. É essencial que me abale e sofra. É muito grave viver em um país com este nível de desrespeito à vida e sofrimento entre quem está longe dos privilegiados. A indignação com essa anomalia me dá energia para continuar a contar histórias. Tenho uma expectativa ingênua em acreditar que o trabalho jornalístico pode ajudar as pessoas a tomar decisões mais humanitárias. É uma tentativa de distribuir empatia, que parece estar em falta na nossa sociedade.

Por que você considera uma ideia ingênua?

Passei por um regime de exceção da ditadura e atribuía ao Estado as extravagâncias da violência. Mas mesmo no governo democrático, ninguém tocou na violência histórica do estado, além da violência comum do cidadão. Depois de mais de 20 anos de ditadura, achei que com o fim dela, pronto, a violência iria acabar. A ditadura fez coisas gravíssimas, mas a polícia de São Paulo matou quase o mesmo só no primeiro semestre de pandemia. Se somarmos o Rio de Janeiro, então. Por isso falo em ingenuidade. Acreditava em um poder transformador com o fim da ditadura, mas com isso veio a desilusão: parte da sociedade apoia os dados de violência.

Maurício Fidalgo/TV Globo Maurício Fidalgo/TV Globo

E existe uma solução para a violência?

Não é minha praia, nem função de buscar soluções. Eu e minha turma fazemos uma apuração rigorosa, sem análise, sem opinião. Tenho somente a expectativa que as pessoas exijam respeito à vida, sobretudo com relação à violência do Estado e é descontrolada. Não me meto a palpitar.

Você me parece melancólico com a situação social do país. Está?

Aceito sua definição, mas estou sempre animado com meu trabalho. A melancolia se deve à observação dos acontecimentos. É muito triste que no cinema tenham sido criados personagens matadores tratados como heróis nacionais e com aceitação da sociedade. Vejo matadores eleitos e entre os mais votados em alguns estados. Vejo o Congresso Nacional com 25% formado pela Bancada da Bala, com delegados e policiais militares; comunicadores que só falam em violência.

O que temos pela frente é duro, mas nem por isso deixo de trabalhar com afinco, com rigor. A imprensa tem um poder de transformação a trilhar.

Caco Barcellos

Você ainda está isolado devido à pandemia, enquanto muitos retomam a vida. Você já cobriu violência policial e não se recolheu. O vírus te botou mais medo do que a polícia?

Eu não tenho medo da polícia. Tenho medo das pessoas que defendem o desrespeito à vida. Não é uma questão só sobre a polícia: tem gente com mais medo do Judiciário, que não dá importância para essa violência, e para pessoas que ignoram essa situação. Não é bem medo, é uma indignação. Seria de fácil solução a violência do Estado se envolvesse de maneira séria toda nossa sociedade. Sou grupo de risco do vírus, e é a primeira vez na minha carreira que saio das ruas. Me considero um privilegiado em ficar em casa e com respeito à minha empresa. Assim que tiver injeção, eu volto. Estou lendo muito. O livro é um belo parceiro dos solitários.

Você cresceu na periferia de Porto Alegre. De que forma isso te ajudou a entender o Brasil?

Morei na periferia de Porto Alegre em uma família simples, sem água encanada e com esgoto a céu aberto. Padres da região me davam livros que me ajudavam a interpretar a realidade e ver que não tinha nada exclusivo com minha família, que a pobreza e o descuido dos Estado se repetia pelo Brasil. Tive sorte. Um dos padres queria que eu virasse padre, mas perguntei: qual é o salário? Achava meu pai um herói e queria ajudá-lo. Ele era frentista, trabalhava dia e noite. Os padres me diziam que era uma ajuda de custo apenas e perdi o interesse.

Maurício Fidalgo/TV Globo Maurício Fidalgo/TV Globo

E por que começou no táxi?

Queria ajudar meu pai e pagar minha faculdade de engenharia na PUC. Escrevia crônicas sobre o bairro, e no táxi cada viagem tinha uma história e um lugar para conhecer. Escondi que era taxista quando arrisquei escrever em um jornal por achar que me prejudicaria. Mas me enganei: minha primeira reportagem [na Folha da Manhã de Porto Alegre] foi sobre taxistas. Assinei com nome completo: Cláudio Barcellos de Barcellos. Meu editor riscou um Barcellos, cortou o Cláudio e criou o Caco. Foi assim que virei Caco Barcellos.

O Profissão Repórter tenta inserir repórteres com origens diversas, bem como negros?

Sempre tivemos negros e mais pobres na equipe, mas não é regra. Na seleção queremos só que o candidato seja apaixonado por reportagem, mas, sem dúvida, ouvimos a trajetória pessoal, as dificuldades, a dedicação. A televisão tem uma peneira dura com candidatos. É a torcida do Flamengo e Corinthians querendo entrar. Por considerarmos a luta de cada um, chamamos repórteres neste perfil. Me lembro da Valéria Almeida, uma das primeiras do "Profissão Repórter". Ela tremia muito na entrevista. A gente disse que havíamos gostado dela, que é uma moça negra, de uma família muito simples da Baixada Santista. Perguntamos por que ela estava tão nervosa e ela esperava que a mandassem cortar o cabelo, que parecia o da Angela Davis. Nós jamais faríamos isso. Ela ficou aliviada e ficamos emocionados.

Maurício Fidalgo/TV Globo Maurício Fidalgo/TV Globo

Ficou mais difícil informar na época das fake news?

Se de um lado falei da minha ingenuidade em achar que temos poder de transformação, precisamos dar a contrapartida contra quem inventa mentiras. O consumidor não tem obrigação de saber o que é mentira e não podemos deixar as notícias falsas se misturarem ao nosso trabalho. Já fui agredido na rua por conta disso: algumas pessoas acham que nós, profissionais da comunicação, somos do grupo que cria as fake news e que algumas destas pessoas estão no Palácio do Planalto. A principal ferramenta é a reportagem: não estamos atrás de um computador inventando mentiras. Estamos onde a notícia nasce, em sua captação mais pura. Não temos juízo de valor, análise, opinião. Além disso, vivemos em um momento interessante. Durante a ditadura, empresários da comunicação, jornalistas e publicitários se uniram a favor da liberdade democrática. Novamente, estamos unidos contra a desinformação, estamos orientando com conhecimento científico o melhor a se fazer na pandemia.

Mesmo com fake news, vacina fake, falta de vacina, morte por falta de vacina, você acredita que o Brasil uma hora vai dar certo?

Eu sou otimista. Tenho três filhos, acredito nos jovens, que têm mais empatia pela sociedade. Mas não sei. Parte das pessoas decidiu optar por um governo defensor do ódio, que parece que não gosta da vida e que nega uma tragédia. Acho assustador, mas isso nos obriga a trabalhar com rigor.

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Publicado em 28 de fevereiro de 2021.

Edição: Fernanda Schimidt; Reportagem: Marcos Candido;

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