Cura pela mata

Biodiversidade é uma das principais fontes para a indústria farmacêutica. Desmatar é perder novos medicamentos

Rodrigo Bertolotto De Ecoa, em São Paulo Mary Cagnin/UOL

A floresta é a farmácia mais próxima de indígenas, ribeirinhos e seringueiros. Eles conhecem a planta certa, a parte exata dela que deve ser usada, o método de extração e a dose para tratar febres, dores, inflamações. Não é feitiço. É um saber acumulado por séculos de observação e prática (de acertos e erros). Isso também é chamado de conhecimento empírico, e está entre os métodos científicos.

Tanto é assim que os pesquisadores correm para os biomas inexplorados e para as medicinas tradicionais quando precisam achar remédios, seja pelo surgimento de novas doenças, como agora, seja porque os medicamentos conhecidos perderam eficácia para as enfermidades já conhecidas.

Um caso exemplar disso tem frequentado a boca dos presidentes de Estados Unidos e Brasil e de milhares de contaminados pelo coronavírus. Trata-se da quina (Cinchona officinalis). Os nativos sul-americanos apresentaram as propriedades da casca dessa árvore aos colonizadores, que a levaram para o Velho Mundo para combater uma doença que afligia as civilizações de lá: a malária. Também conhecida como paludismo ou "febre dos pântanos", a enfermidade virou surto quando a agricultura aumentou as áreas encharcadas, ideais para a proliferação do mosquito que carrega o protozoário.

Tanto a medicina oficial quanto as versões tradicionais, como a chinesa ou a indígena, têm como base histórica o uso de plantas para aliviar sintomas e fortalecer o sistema imunológico. Com a industrialização, essas substâncias foram se aprimorando em eficiência e segurança. Mas a natureza e o conhecimento dela seguem servindo de inspiração até hoje, com cada novo medicamento sendo registrado na Farmacopeia Brasileira, compêndio de fármacos, insumos, drogas vegetais e produtos para a saúde, sob administração da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária).

Mary Cagnin/UOL

Brinde à medicina

Da quina se extrai também o quinino, componente da água tônica. O refrigerante sempre foi dito como digestivo, mas recentemente ganhou notoriedade como parte de um tipo diferente de "febre": o gin tônica, drink dito como básico para o jovem cosmopolita requintado. Porém tomar umas doses nesses tempos de quarentena não vai safar ninguém do novo coronavírus.

Foi justamente observando a fabricação do quinino que o médico alemão Samuel Hahnemann (1755-1843) criou a homeopatia. Ele argumentava que não era o amargor da quina que curava a malária, como se acreditava. Seu efeito nos trabalhadores saudáveis era o mesmo mal-estar que acometia os pacientes infectados pelo protozoário. O próprio Hahnemann tomou a quina e se sentiu mal para testar a teoria. Surgia o tal "conceito de semelhança" ("semelhante pelo semelhante se cura"), tão caro a essa terapia alternativa da medicina.

Em Xapuri, interior do Acre, a técnica em enfermagem Neide Ribeiro costuma receitar a parentes e amigos que coloquem um pedacinho de quina para curtir no vinho e tomem quando aparecer algum problema no fígado. "Não cobro de ninguém. Faço de pura bondade. Aprendi com meus pais, que aprenderam com os índios. A quina causa muita coisa boa, mas tem que ter cuidado. Por isso, ela tem esse gosto bem amargoso. O amargor avisa que é pra não exagerar", argumenta.

A cloroquina, versão sintetizada nos anos 1940 do princípio ativo, já tem patente pública e é usada no tratamento também de doenças como amebíase, artrite e lúpus. Em 2020, ela está sendo aplicada de forma experimental em contaminados pela Covid-19 em meio à urgência da pandemia, mas os resultados até aqui são inconclusivos, apesar da publicidade cavalar de alguns políticos. Pelo menos, outros sete medicamentos estão sendo testados pelo mundo - todos na estratégia acelerada de "reposicionamento de fármacos", ou seja, são remédios já aprovados para outras enfermidades agora aplicados para tentar frear a pandemia (o que é mais rápido do que criar, testar e aprovar uma pílula ou vacina do zero).

Quem sabe bem disso é o Doutor Raiz, o nome "comercial" de Raimundo Nonato da Silva, 54, dono há três décadas de uma loja de plantas medicinais no Mercado Velho, tradicional ponto turístico de Rio Branco, no Acre.

Deus me livre de chegar aqui alguém com essa doença nova. Eu que não indico quina para ela, não. Vou falar para ir pro hospital. Aqui, eu vendo quina para quem tem problema de malária, de estômago, queda de cabelo, caspa, lêndia. Até pra dormir bem é bom. Ontem mesmo tomei um chá suave dela de noite e dormi dez horas seguidas.

Doutor Raiz, aprendeu os segredos amazônicos com sua avó e sua mãe nos seringais de Xapuri

Remédios em extinção

O Brasil tem um patrimônio genético de 200 mil espécies registradas em seu território, mas o cálculo é que existe por volta de 1,8 milhão - isso significa que apenas 11% estão catalogadas. Já o conhecimento tradicional dos usos desse patrimônio nacional inclui 305 etnias indígenas, além de populações quilombolas, caiçaras, seringalistas etc. Esses dados são do Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGen), órgão do Ministério do Meio Ambiente.

Calcula-se que o Brasil detenha mais de 10% da biodiversidade do planeta, ou seja, possui um tesouro vegetal e animal. Estima-se que 2.000 vegetais estão ameaçados de extinção atualmente, com o desmatamento batendo recorde ano a ano. Os dados são alarmantes mesmo em 2020 — madeireiros têm aproveitado o momento enquanto o foco do noticiário está na pandemia.

Exemplos não faltam de plantas que vão rareando e, com elas, desaparecem também possibilidades de novos medicamentos. Elfriede Bacchi, professora de Farmácia da Universidade de São Paulo, conseguiu bons resultados contra a úlcera coletando tarobinha nas proximidades de Leme, interior de SP. Ela pesquisou em plantas da mesma espécie em outras regiões, mas não atingiu a mesma eficácia. Quando voltou a Leme, a mata já tinha dado lugar a plantações de algodão e soja. "Era um trecho de cerrado. Desconfio que a diferença era o tipo de solo de lá", afirma a professora.

Sua colega Rachel Castillo, da Universidade Federal de Minas Gerais, fez uma expedição com estudantes a reservas de Mata Atlântica em seu Estado, mas não encontrou pés de tinguaciba, de cujo tronco se retira um cicatrizante que tradicionalmente é usado pelos índios. "Como esse, muito conhecimento tradicional se está perdendo", sentencia Castillo.

Nessa corrida contra a devastação entrou até a Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária). Em parceria com o Instituto Biológico, seus pesquisadores conseguiram obter do capim-marmelada boas concentrações do ácido chiquímico, base do medicamento que combateu a gripe aviária (H1N1), responsável pela pandemia anterior, entre 2009 e 2010. A planta que originalmente forneceu esse ácido foi o anis estrelado (Illicium verum), espécie originária da China.

Vegetação "casca grossa"

Atrás de novas moléculas salvadoras, a Embrapa foi da caatinga até a Antártida, passando pelo arquipélago rochoso de São Pedro e São Paulo, meio caminho entre a América e a África. "Esses ambientes extremos são minas de bactérias e fungos a serem exploradas", diz Rodrigo Mendes, chefe de pesquisa da Embrapa Meio Ambiente.

No semi-árido nordestino, pesquisaram os micro-organismos no entorno da planta mofumbo (Combretum leprosum) atrás de atividade antitumoral para o rim ou ovário. No Polo Sul, o levantamento é sobre uma gramínea (Deschampsia antarctica), e as 70 bactérias que convivem com ela, que, por resistir à radiação ultravioleta, poderia esconder propriedades para combater o câncer de pele. "São ambientes inóspitos, mas colonizados por muitos micro-organismos que resistem a extremos de temperatura e umidade e possuem propriedades que podem ser importantes para o homem", afirma Mendes.

Muitas vezes a solução não está no vegetal em si, mas no chamado microbioma, o conjunto de bactérias, fungos, vírus e insetos que vivem dentro ou fora das plantas. Um caso clássico disso é o taxol, substância extraída de arbusto chamado teixo do Pacífico (Taxus brevifolia) e muito usada no tratamento de câncer de mama, pulmão e ovário. A principal dificuldade era que se extraia pouca quantidade de cada planta, não atendendo à crescente demanda de mercado. Até que se descobriu que quem produzia o taxol era um fungo presente na casca da árvore. O fungo foi levado para o laboratório e começou a produzir em escala industrial.

Nossa cultura atual é a da industrialização. Tudo tem que ser validado, quantificado e padronizado. Claro que isso dá maior segurança e eficácia ao produto. Mas não podemos esquecer que a substância sintética veio de um ser vivo que a desenvolveu ao longo da evolução para sua própria sobrevivência, e nós pegamos emprestado.

Rachel Castillo, professora de Farmácia da UFMG

Entre o chazinho e a pílula

Conhecendo a história dos remédios, as fronteiras entre os extratos da fitoterapia e as cartelas de pílulas da alopatia vão se apagando. A história da aspirina é um resumo disso.

O grego Hipócrates, considerado "o pai da medicina", receitava há mais de 2.400 anos o chá da casca e das folhas do salgueiro branco (Salix alba) para febres e dores. Esse conhecimento chegou até o século 19, quando o ácido salicílico presente na planta foi sintetizado em laboratório e surgiu o best seller das drogarias. A partir dele, se ergueu todo o complexo industrial farmacêutico.

Segundo Castillo, o cálculo é que mais da metade dos novos remédios do mundo seja de extratos naturais e substâncias produzidas por organismos vivos, que podem depois ser mimetizadas em laboratório. A outra parte é produzida por biotecnologia, modificando genes ou moléculas para produzir substâncias sob medida para atacar os mecanismos das doenças.

Foi assim que a quina se transformou, após mudanças em sua estrutura, em cloroquina ou hidroxicloroquina. Mesmo nesses exemplos de manipulação científica, o material original é de origem natural para depois ser modificado em laboratório.

Só mais uma dose

Uma substância ser um remédio eficiente, uma droga alucinógena ou um veneno mortal é uma questão de quantidade. A beladona (Atropa belladona) que o diga. Seu nome vem do uso desde a Antiguidade de seu fruto para dilatar as pupilas, deixando a mulher bonita (em italiano, "bella donna").

A partir da Idade Média, essa planta também passou a ser usada nos rituais de bruxaria, aliviando dores e provocando alucinações. Essa sabedoria feminina chegou até hoje, e os alcalóides extraídos da planta estão entre os princípios ativos dentro dos frascos receitados contra as cólicas, como as menstruais.

Os alcalóides, como morfina e cocaína, foram as primeiras substâncias naturais sintetizadas pelo homem devido à simplicidade de sua extração, ainda na primeira metade do século 19. Usadas inicialmente como analgésicos, logo viraram drogas recreativas (ou de abuso). Pela facilidade de fabricação, até hoje conseguem ser refinadas em laboratórios improvisados no meio da mata.

A floresta também esconde outro tipo de crime: a biopirataria. Esse delito, porém, era mais frequente até a virada do século. Em 2001, com a criação do CGen, foram mais controlados o acesso, a pesquisa, o transporte e a fabricação de fármacos a partir de espécies nativas e de conhecimentos tradicionais do Brasil.

Antes disso, os japoneses patentearam o uso da brasileiríssima espinheira santa (Maytenus ilicifolia) para controlar as dores no tratamento de câncer, com efeito similar à morfina, mas sem causar dependência. Outro exemplo foi a patente norte-americana do jaborandi (Pilocarpus microphyllus) para o combate ao glaucoma.

"Na Amazônia, o tráfico de espécies vegetais era tão comum como o tráfico de drogas. Hoje é mais controlado. Chega a ser bastante difícil e burocrático até para as universidades brasileiras trabalharem com essas plantas. Toda hora as normas de acesso mudam, e isso atrapalha muito as pesquisas", relata Bacchi.

De uns anos para cá, tem umas plantas medicinais que são mais difíceis de achar. Justamente as mais procuradas na loja. O pessoal tira do mato e não planta. E a floresta vai indo cada vez mais pra longe.

Doutor Raiz

A raiz da questão

O indígena observou animais feridos se roçarem em uma planta e descobriu o poder cicatrizante da copaíba. O produtor rural viu seu gado ter hemorragia por comer o trevo cheiroso, e o incidente gerou uma pesquisa que acabou criando um novo anticoagulante. O cientista olha um arbusto como o mofumbo, que resiste à secura da caatinga, e investiga suas propriedades contra o câncer. Esses conhecimentos, seja o tradicional ou o acadêmico, começam com a observação, seguem com a experiência e se perpetuam pela transmissão para os outros.

Conciliar esses dois saberes, o ancestral e o universitário, reserva ao Brasil um grande potencial farmacêutico, além de ser um excelente argumento (como se precisasse de mais algum) para preservar os ecossistemas dentro do mapa nacional. Os mandatários atuais, porém, prejudicam isso tirando verba de pesquisa.

"Não param de cortar nossas bolsas. Desde 2014, a penúria no nosso laboratório só aumenta", se lamenta Castillo.

A questão de fundo é que o imediatismo das políticas atuais encara a natureza como um almoxarifado do país (fazendo vista grossa à retirada ilegal de minério e madeira de lá) e não como uma gigantesca biblioteca florestal, com um conhecimento feito de raízes, folhas e sementes que só um estudo detalhado desse acervo poderia fazer justiça a sua extensão.

"Para curar as pessoas, a Amazônia é um lugar muito especial. Tem tanta planta boa que as pessoas acham que é milagre", sintetiza o Doutor Raiz. Enquanto não se investir em conhecimento, muita gente (inclusive autoridades eleitas) ainda vai continuar acreditando em santos remédios ou poções mágicas.

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