A outra Eldorado

Na terra onde Bolsonaro cresceu, comunidades mantêm área mais preservada de SP: 'Exemplo ao Brasil'

Juliana Domingos de Lima De Ecoa, em São Paulo Loiro Cunha/ISA
Henrique Santana/Folhapress

Localizada na região do Vale do Ribeira, a pequena Eldorado (SP) ficou conhecida como a cidade de Bolsonaro.

"A terra que me acolheu, que me projetou para o Brasil e para o mundo. Eldorado mora no meu coração", disse o presidente Jair Bolsonaro (PL) em discurso feito numa praça da cidade em 2019. "Devo muito da minha vida a essa pequena-grande Eldorado".

Bolsonaro nasceu em Glicério, noroeste paulista, mas viveu em Eldorado seu período de formação: da infância aos 18 anos de idade, entre as décadas de 1960 e 1970. Foi nessa época que ganhou o apelido de "Palmito", segundo declarações dos moradores da região ao jornal francês Le Monde. Parte de sua família ainda vive na região, onde é dona de imóveis, sítios e empresas.

Cunhado de Bolsonaro, o empresário Theodoro da Silva Konesuk foi alvo, inclusive, de um processo judicial por ocupar terras do quilombo do Bairro Galvão, em Iporanga, município vizinho de Eldorado.

Manoela Meyer/ISA
Colheita de bananas no Quilombo Sapatu, em Eldorado (SP)

88 quilombos

Apesar de ser descrita com frequência como uma das áreas mais pobres do estado, o Vale do Ribeira tem uma enorme riqueza socioambiental. A região abriga o maior remanescente preservado de Mata Atlântica do Brasil e 88 comunidades quilombolas em diferentes estágios de reconhecimento territorial por parte do Estado. Só em Eldorado, são 13 comunidades.

O atual presidente visitou um desses quilombos em 2017, declarando em seguida numa palestra no Clube Hebraica, no Rio de Janeiro, que o "afrodescendente mais leve de lá pesava sete arrobas" e que "nem para procriador serve mais". O então deputado chegou a ser denunciado pela Procuradoria-Geral da República e condenado em primeira instância pelas expressões de cunho racista, mas a acusação foi rejeitada pelo Supremo Tribunal Federal em 2018 levando em conta sua imunidade parlamentar.

Em 2022, Bolsonaro venceu em 14 das 20 cidades da região no primeiro turno da disputa presidencial. Uma delas foi Eldorado: o atual presidente teve 50,3% dos votos na cidade onde cresceu, contra 44,4% para Luiz Inácio Lula da Silva.

Eldorado tem apenas 15 mil habitantes, mas é o quarto maior município do estado em extensão territorial. Cortada pelo Rio Ribeira de Iguape, rodeada de quilombos e plantações de banana, é uma cidade antiga, que começou a se formar há mais de 300 anos, no primeiro ciclo do ouro. É onde fica a Caverna do Diabo, formação rochosa que, ao lado do circuito quilombola, é um dos atrativos turísticos locais.

Segundo o líder quilombola Benedito Alves da Silva, o Ditão, o clima na cidade é de violência e enfrentamento. "Os bolsonaristas estão indo pra cima", diz a Ecoa. Nos quilombos, segundo ele, Lula é favorito.

Ditão também diz que há racismo dos eldoradenses contra quem vive nas comunidades: "É uma cidade muito preconceituosa. É muito mais fácil a gente trabalhar com as pessoas de fora do que da nossa própria cidade por conta do racismo".

Henrique Santana/Folhapress Cartaz pendurado por apoiador de Bolsonaro em Eldorado (SP)

Cartaz pendurado por apoiador de Bolsonaro em Eldorado (SP)

Manoela Meyer/ISA
Colheito de mandioca em quilombo do Vale do Ribeira

Área mais conservada de São Paulo

O Vale do Ribeira concentra 21% do que resta do bioma da Mata Atlântica em território nacional - o total equivale a apenas 7% da vegetação original. É a área mais conservada do estado.

Isso se deve em grande parte à presença das comunidades quilombolas e ao sistema de produção agrícola utilizado por elas há mais de 300 anos.

"Os povos da floresta e sua forma de manejo com processo regenerativo contribuem para a proteção dos territórios onde as famílias vêm resistindo há séculos", diz a Ecoa a engenheira agrônoma Fabiana Fagundes, que presta assessoria técnica à Cooperativa dos Agricultores Quilombolas do Vale do Ribeira (Cooperquivale). "Eles realizam práticas agrícolas ancestrais, mantendo a floresta conservada e garantindo a soberania alimentar".

Essas práticas ancestrais formam o Sistema Agrícola Tradicional Quilombola do Vale do Ribeira e foram reconhecidas como patrimônio cultural do Brasil em 2018 pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).

"Aqui na comunidade todos nós trabalhamos na roça, é a principal atividade. Além da produção de subsistência, tem também a banana orgânica que a gente trabalha aqui desde 2000, sem agrotóxico", diz Ditão, 67, nascido e criado no Quilombo Ivaporunduva, em Eldorado.

A técnica utilizada no Vale é conhecida como roça de coivara, uma agricultura itinerante herdada dos povos indígenas e de africanos escravizados, que foi transmitida de geração em geração. Ela se baseia no rodízio das áreas de plantio, unindo produção e conservação.

Nascida no Quilombo Sapatu, também em Eldorado, a produtora rural Maria Tereza Vieira, 44, lembra de ter aprendido a plantar dessa maneira observando a mãe e fazendo como ela.

"Desde pequena - fora do horário da escola, claro - eu acompanhava minha mãe nessas roças. Ela incentivava a gente, liberava uma parte daquela terra pras crianças. ", Maria recorda.

Levantamentos realizados pelo Instituto Socioambiental encontraram mais de 240 variedades de plantas manejadas nas roças e quintais quilombolas. A maioria é destinada à alimentação, mas também há espécies usadas para fins medicinais, para a construção de casas e na confecção de artesanatos.

Era um divertimento: ao mesmo tempo que a gente brincava, aprendia também a plantar as sementes

Maria Tereza Vieira, produtora rural

Flávia Nascimento/ISA
Produtos agroecológicos dos quilombos do Vale do Ribeira são organizados para o transporte na sede da Cooperquivale, em Eldorado (SP)

Dos quilombos para as quebradas

Maria vive atualmente no Quilombo Nhunguara, que fica no município de Iporanga, vizinho a Eldorado. A agricultora produz palmito pupunha, hortaliças, legumes, mandioca e banana. Uma parte é para consumo próprio e a outra vai para o comércio através da Cooperquivale e de outras associações locais.

Assim, além de alimentar os quilombolas, a produção agroecológica do Vale do Ribeira vira merenda escolar, em programas e equipamentos públicos de segurança alimentar do estado.

Durante a pandemia de covid-19, as roças dos quilombos do Ribeira contribuíram diretamente para matar a fome nas periferias e favelas de São Paulo. Com o fechamento das escolas, as verduras, legumes e frutas produzidas na região ficaram sem destino e passaram a ser doados a comunidades vulneráveis. Mais de 300 toneladas de alimentos foram distribuídas, beneficiando cerca de 43 mil pessoas.

A partir daí, os produtos orgânicos e agroecológicos do Vale do Ribeira ganharam também uma feira mensal na capital paulista, a Quilombo Quebrada, parceria entre a Cooperquivale e as iniciativas Mulheres de Orì e Kitanda das Minas.

Na pandemia, quando muita gente estava passando fome, as associações de quilombos de Eldorado e Iporanga fizeram o que eles [do governo] não fizeram. Deviam ter respeito por nós porque damos exemplo para o Brasil.

Ditão, Líder quilombola

André Villas-Bôas/ISA

Histórias que não estão nos livros

Ditão é "raiz da comunidade". Antes dele, seus pais e avós também nasceram e viveram no Quilombo Ivaporunduva, considerado o mais antigo do Vale do Ribeira. Sua história remonta ao século 17, quando escravizados foram trazidos à região para trabalhar na mineração do ouro.

Foi a partir da morte do pai de Ditão, no fim dos anos 1970, ainda em meio à ditadura militar, que ele começou a se envolver nas lutas da comunidade. Desde então, viu mudanças importantes.

Ivaporunduva foi a primeira comunidade quilombola do Vale de Ribeira a conquistar o título definitivo de seu território, em 2010.

Foi também pioneira no estado em se organizar para reivindicar esse reconhecimento: o processo de titulação começou na década de 1990, quando a Associação Quilombo de Ivaporunduva entrou com uma ação na Justiça Federal requerendo o registro.

"A gente ainda luta muito no sentido de fazer com que outras comunidades possam ter seu território titulado. A gente não pode vencer uma etapa e achar que o jogo já está ganho", afirma Ditão.

Também houve melhorias na infraestrutura do quilombo: a partir dos anos 2000, eles passaram a ter acesso à energia elétrica e a construção de estradas e de uma ponte sobre o rio Ribeira de Iguape tornou o quilombo acessível por terra, facilitando o escoamento da produção.

Mesmo com algumas transformações ao longo das décadas, a Mata Atlântica ainda cobre 80% do território de Ivaporunduva. Além do modo de cultivo dos quilombolas, sua relação de pertencimento com a terra tem contribuído para a preservação.

Ter a mata preservada na nossa região faz a gente se sentir mais orgulhoso de ter essa riqueza. Isso faz com que a gente não queira destruir. A gente tem essa harmonia, esse entendimento de que podemos trabalhar junto [com a natureza].

Maria Tereza Vieira, Agricultora quilombola

Manoela Meyer/ISA

Esse patrimônio natural e histórico é compartilhado com a sociedade pelo turismo de base comunitária, do qual todas as 110 famílias de Ivaporunduva participam de alguma forma.

"É um trabalho que é muito bem aceito pelas escolas e faculdades. É uma fonte de renda vinda não de uma empresa, mas da associação, que faz com que todas as famílias da comunidade estejam inseridas e ganhem um quinhãozinho", explica Ditão, que também atua como monitor ambiental e historiador comunitário nessas visitas.

"A gente conta pras pessoas histórias que não estão nos livros, que nossos pais e avós contavam desde a época da escravidão", diz Ditão. "Essas histórias a cidade não conhece, nenhum jornal fala sobre. E nós temos que contar pra que as pessoas saibam quem são os quilombolas".

Claudio Tavares/ISA

Semear o amanhã

Manter a Mata Atlântica conservada no Vale do Ribeira não beneficia somente as populações quilombolas: a região está ajudando a reflorestar o interior de São Paulo e até áreas em outros estados, como o Rio de Janeiro.

Esse trabalho de restauração ecológica tem sido feito através da Rede de Sementes do Vale do Ribeira, criada em 2017. Os mais de 40 quilombolas de quatro comunidades que participam dela já coletaram 2,6 toneladas de sementes nativas, o equivalente ao peso de um elefante-da-floresta. Esse trabalho possibilitou a restauração de cerca de 74,5 hectares de áreas degradadas, o que dá mais de 70 campos de futebol.

A coleta das sementes também gera renda para os coletores como a produtora rural Maria Tereza Vieira, do Quilombo Nhunguara, que está na rede desde o início e diz querer "exportar cada vez mais nossas sementes".

Ela também se preocupa com o resultado das eleições presidenciais: "Essas eleições estão dando o que falar. Aqui [em Nhunguara] não tem indecisos. Tem um lado que eu particularmente quero que ganhe e tenho todo o meu argumento pra isso. Vamos ver o que vai acontecer dia 30".

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