Estátua e alforria

Arquiteto escravizado Tebas é homenageado com estátua afrofuturista no centro de São Paulo

Beatriz Sanz De Ecoa, em São Paulo Keiny Andrade/UOL

O suor escorre pela testa de Lumumba mesmo que os termômetros marquem apenas 18ºC na capital paulistana. A transpiração é efeito da solda incessante que o acompanhou nos últimos 64 dias enquanto construía a estátua que vai homenagear Joaquim Pinto de Oliveira, mais conhecido como Tebas. O arquiteto trabalhou em grandes obras na cidade de São Paulo no século 18, tinha seu trabalho disputado pela elite de São Paulo ainda em vida e comprou sua alforria 110 anos antes da abolição da escravatura. No entanto, sua trajetória foi apagada da história oficial por ser negro.

Enquanto viveu, Tebas fez fachadas das casas de representantes da elite paulista. Mas sua fama se justificava pelo trabalho em igrejas, o mais conceituado no século 18. Não à toa, a estátua criada por Lumumba e Francine Moura ficará entre duas igrejas onde Tebas trabalhou: a Igreja da Ordem Terceira do Carmo, que teve a fachada criada pelo arquiteto, e a Catedral da Sé, onde construiu a torre do projeto que foi demolido em 1911.

Enquanto solda concentrado, Lumumba pouco fala. Mas basta se afastar da obra por um instante que conversa com todos, dá recomendações aos que ficam no canteiro e comemora. É possível sentir sua empolgação na reta final do projeto.

Quem vê a leveza de agora talvez não imagine que em todas as noites dessa última semana, ele dormiu apenas duas horas. Com boa parte das outras 24 horas do dia dedicadas a finalizar o monumento, que tem inauguração prevista para o dia 5 de dezembro.

Apesar de já ter feito trabalhos para Disney e DreamWorks, o artista considera esta a obra de sua vida — até o momento. Toda em aço, a peça tem 3,65 metros de altura e pesa cerca 300 kg, sem contar o pedestal de concreto.

Até apresentar a ideia do projeto Tebas à Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, Lumumba nunca havia trabalhado com metal. Ainda assim encampou o desafio. Segundo o artista plástico, há uma facilidade em utilizar o material que vem da ancestralidade.

Não é possível que não seja ancestral o fato de eu nunca ter trabalhado com metal e fazer o que eu estou fazendo. Então não foi a Secretaria Municipal de Cultura quem me escolheu, quem me escolheu foi o próprio Tebas. Essa ancestralidade que vem de Ogum, que vem de trabalhar o metal, ela está presente neste trabalho.

Lumumba

Keiny Andrade/UOL

Capacetes brancos

Nos canteiros de obra, os capacetes representam a hierarquia do trabalho. Enquanto os visitantes usam capacetes amarelos, e pedreiros usam os azuis, os capacetes brancos são reservados a cargos mais altos como engenheiros, arquitetos e encarregados.

Um dos maiores orgulhos de Francine Moura em relação à escultura que criou ao lado de Lumumba é ter duas mulheres negras ostentando capacetes brancos.

Para simbolizar isso, ela pede ao fotógrafo que as imagens que ilustram essa reportagem mostrem que ela está de mãos dadas com Mabi Elu, a engenheira que acompanhou o projeto desde os primeiros dias de sua concepção.

"Você não vê duas mulheres negras com capacetes brancos nas obras por aí, e é por isso que essa foto é histórica", afirma.

Foi por conta disso que a arquiteta — que também é cenógrafa, diretora de arte e carnavalesca - afastou-se dos escritórios e grandes construtoras.

"De dois anos para cá, eu tenho assinado projetos afrorreferrenciados. Ou meus clientes são pessoas negras ou os temas abordados são temas pretos", conta Francine. "Foi uma escolha. Fiquei por nove anos trabalhando numa grande empresa, na engenharia de uma grande empresa. Ambiente corporativo. Foi muito bom, aprendi muito, mas não conseguia ser eu mesma, não conseguia exercer minha criatividade da maneira como eu gostaria. Eu me sentia podada ali, então foi muito bom, em certos aspectos e muito ruim em tantos outros. Até que chegou um ponto em que escolhi que queria trabalhar com projetos que, de fato, me alimentem, alimentem a minha alma e que sejam verdadeiros para mim", prossegue.

Entre os projetos afrorreferenciados aos quais se entregou estão a Casa Preta Hub e o Festival Feira Preta 2019, ambos em São Paulo e organizados pela empreendedora Adriana Barbosa, colunista de Ecoa, e também um mobiliário planejado para uma biblioteca no quilombo Graça de Deus, em Mirinzal, no Maranhão.

Além disso, como carnavalesca, Francine assinou desfiles de escola de samba e de blocos de rua. Ela foi responsável pela apresentação da Unidos do Vale Encantado, escola que representa o bairro da Cidade Ademar, no sul de São Paulo. A escola desfila na rua e não no sambódromo porque faz parte do grupo especial de bairros. E também pelo desfile do bloco Ilu Inã.

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Das bolas às telas

Enquanto os coleguinhas saíam da sala, o pequeno Lumumba foi solicitado a continuar. Naquele dia, a professora queria ter certeza que era ele quem fazia os trabalhos que entregava na escola.

A professora já havia perguntado a Sônia Maria, mãe do menino, se os trabalhos eram feitos por ele. Mesmo recebendo resposta afirmativa, ela não acreditava.

Apesar do talento para as artes, naquele momento o jovem Lumumba sonhava em ser jogador de futebol.

"Meu pai é policial, e reprimia qualquer manifestação artística como se fosse coisa de homossexuais, depravados, maconheiros. E ele foi jogador de futebol, então eu queria seguir os passos do meu primeiro herói particular", explica.

O sonho de infância não se concretizou. Somente aos 22 anos, enquanto trabalhava fazendo fachadas de comércio — um ofício similar ao que Tebas exercia séculos antes — Lumumba enxergou a arte como vocação e carreira.

De forma autodidata, ele começou a pintar telas que mesclavam a renascença italiana com a mitologia iorubá.

Os primeiros quadros que vendeu retratavam Iansã, Oxum e Oxalá. "Vendi, na época, pelo que seria o dinheiro da feira", relata.

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A única negra na sala

Francine narra que entre os 75 alunos que se formaram com ela na turma de arquitetura da universidade Mackenzie em 2001, ela era a única negra.

Nos cinco anos que frequentou a universidade, ela não foi apresentada a nenhum professor negro ou a qualquer referência negra em sua área.

Por conta disso, suas duas únicas referências foram apresentadas a ela há pouco tempo. A primeira é Gabriela Gaia, arquiteta, urbanista e professora do departamento de arquitetura e urbanismo da UFBA (Universidade Federal da Bahia); o segundo é o próprio Tebas.

"Eu trabalhei no Departamento de Patrimônio Histórico. Entrei e saí de lá sem nunca ouvir falar do Tebas, isso há 20 anos", destaca.

Apesar disso, Francine sente que as coisas estão mudando. Ao ver a estátua quase pronta, sendo instalada entre a Igreja da Ordem Terceira do Carmo e a Catedral da Sé, dois locais que foram marcados pelo trabalho de Tebas, ela fica emocionada.

"A gente sabia que tinha que ficar entre as duas [igrejas] e que ele apontasse um caminho, mais que apontar para Igreja do Sé, ele nos aponta um caminho. Um caminho para o futuro, para um novo tempo, mas com a direção do legado que ele nos deixou".

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