Ensina-me a comer

Além de imprescindível para o combate à covid, o SUS tem papel fundamental para ajudar o país a comer melhor

Carlos Minuano Colaboração para Ecoa, de São Paulo

"Minha alimentação era normal", afirma a dona de casa Marina de Jesus, 55, que há cinco anos enfrenta duas doenças crônicas: diabetes e pressão alta. Bacon, por exemplo, nunca faltava no cardápio, diz ela.

De resto, linguiça, muitas frituras, tudo bem carregado de gordura. "Igual a todo mundo", justifica a mulher, atualmente em tratamento pelo SUS (Sistema Único de Saúde).

Apesar da demora no atendimento, Marina não reclama da UBS (Unidade Básica de Saúde) onde foi procurar ajuda. "Fiz exames que diagnosticaram os problemas e como estava obesa fui atendida por uma nutricionista". O principal tratamento foi mudar a alimentação. Ajudou a controlar as doenças e a perder peso.

No Brasil, a pandemia da covid-19 mostrou o tamanho e a importância do SUS, mas os braços de atendimento do sistema, como mostra o caso da Marina, vão para além das emergências em hospitais. Ensinar a comer melhor e incentivar a prática de atividades físicas são tratamentos contra doenças crônicas.

O alerta veio na década de 1980 quando especialistas nos Estados Unidos sinalizaram que pessoas estavam adoecendo por causa da alimentação. A explosão de casos por aqui aconteceu a partir de 2000, chegando à mesma constatação: os brasileiros estavam comendo muito mal.

Postos de saúde começaram então um trabalho, que segue até hoje, de ensinar a população a comer melhor. "Ações voltadas a todas as faixas etárias priorizam atitudes simples e fáceis", observa a nutricionista Juliana Menezes, que atende em uma UBS.

Descasque mais, desembale menos

Uma evolução importante veio com a classificação Nova, elaborada em 2009 por pesquisadores do Nupens (Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde Pública), da USP (Universidade de São Paulo), que passou a separar os alimentos de acordo com seu processamento industrial.

Muita gente ficou doente até se perceber que o consumo de produtos industrializados e o aumento das doenças crônicas estavam relacionados. "É quando começa a entrar em cena a prevenção", conta a nutricionista Camila da Silva, que trabalha em um programa de atendimento à população conveniado ao SUS, em Curitiba.

Antes focada em nutrientes, a lista passou a ser dividida nas categorias "in natura" (vegetais, carne, leite e ovos), processados (pães e queijos) e ultraprocessados (cereal matinal açucarados, refrigerantes, bebidas adoçadas, entre outros).

O documento foi a base de uma nova edição, em 2014, do Guia Alimentar para a População Brasileira, criado em 2006, para ajudar a população a comer melhor. A nova classificação passou a nortear políticas e os programas de nutrição do SUS. A dica essencial é "descasque mais, desembale menos". Ou seja, para melhorar a saúde, priorize a alimentação natural.

Mas, segundo relata a nutricionista Juliana, infelizmente, a maioria das pessoas não chegam aos postos de saúde a tempo de prevenção. "Nosso trabalho acaba sendo feito para aliviar e tratar, principalmente doenças crônicas."

Você tem fome de quê?

"Comi e bebi de tudo a vida toda e nunca morri." Quem nunca ouviu alguém rebater assim alguma crítica sobre alimentação? Mas será mesmo que não estamos morrendo em decorrência do que comemos e bebemos? Infelizmente, sim, estamos.

Quase 13 mil adultos morrem por ano no Brasil devido ao consumo excessivo de refrigerantes, sucos de frutas em caixinha adocicados e chás ultraprocessados. Pelo mesmo motivo, quase 1,4 milhão de adultos têm diabetes tipo 2 no Brasil.

Os dados são de uma pesquisa sobre o impacto das bebidas açucaradas em países da América Latina. Realizado em 2020 pelo Instituto de Efectividad Clinica y Sanitária (IECS), na Argentina, com a participação da ACT Promoção da Saúde nos dados sobre o Brasil.

Apesar dos danos à saúde, o setor de refrigerantes e bebidas adoçadas recebeu do governo federal no final de 2020 um aumento dos incentivos fiscais. Uma renúncia de receita de R$ 547,1 milhões para 2021, segundo dados da Febrafite (Federação Brasileira de Associações de Fiscais de Tributos Estaduais).

Nos últimos anos, o acesso a alimentos ultraprocessados aumentou, seja por causa do preço mais barato ou maior disponibilidade no mercado, alerta a diretora-geral da ONG ACT Promoção da Saúde, Paula Johns. "Isso traz indicadores ruins para o campo da saúde." Na pandemia, esse cenário se agravou, como Ecoa contou na reportagem "Quanto custa a sua comida?", também neste ciclo de Alimentação.

"Não me reconhecia no espelho"

O problema da supervisora de operações logísticas Vera Lúcia, 48, não foi apenas o refrigerante. Ela conta que durante anos exagerou também na cerveja e nos petiscos. Vera diz que passou a não se reconhecer mais ao se olhar no espelho, porém o empurrãozinho que faltava para buscar ajuda veio na forma de dores no estômago.

Ela procurou atendimento em uma UBS. Depois da triagem foi encaminhada para um trabalho em grupo conduzido por uma nutricionista do posto de saúde. "Achei que não daria resultado, mas resolvi tentar", relembra.

A nutricionista alertou que, pela idade e pelas dores que estava começando a sentir, Vera não demoraria a ter outros problemas de saúde. Para reverter o quadro, a opção seria consumir uma comida mais saudável. "Eu não comia frutas, verduras e legumes, aprendi muita coisa sobre alimentação no trabalho em grupo."

Ela mudou o cardápio e começou a fazer caminhadas. Não sente mais dores no estômago e, felizmente, não desenvolveu doenças crônicas. E não foi só isso. Mudando os hábitos alimentares, Vera voltou a ficar novamente em paz com o espelho. "Me sinto bem, com minha autoestima elevada, e principalmente saudável e feliz."

Mitos em relação à alimentação só favorecem a indústria alimentícia, não a saúde, avisa a nutricionista Camila. "Me perguntam sempre quantos ovos podem ser consumidos por dia. A maioria tem medo, mas bolachas recheadas comem sem preocupação". A dica dela é simples: não tenha medo de comer comida de verdade.

É impossível comer um só?

Um detalhe importante para entender o estrago dos ultraprocessados na saúde é a mudança que causam no paladar. O sabor acentuado diz muito sobre o que esses produtos causam, explica a nutricionista Camila. "Faz as pessoas consumirem mais."

Por isso é tão comum o slogan: "é impossível comer um só". "As pessoas deixam de sentir sabor em uma maçã, em uma comida mais caseira, porque têm vontade e necessidade fisiológica de comer esses alimentos [ultraprocessados]". O mesmo ocorre com bebidas, como refrigerantes, sucos e iogurtes adoçados. "Além de fazer mal, reduz o consumo de água", diz Camila.

Outro ponto negativo é a quantidade de aditivos que recebem em sua composição. Em geral, a receita é a mesma: pouco alimento de verdade e muitos corantes, conservantes, espessantes e quantidades absurdas de açúcar, tanto da sacarose (da cana-de-açúcar) como da frutose (ou seja, extraído da fruta e transformado em adoçante).

Os impactos negativos são muitos. "O funcionamento geral do organismo é afetado, a absorção de micronutrientes é prejudicada e o aumento de gorduras nas artérias eleva o risco de doenças cardiovasculares", explica Camila.

O cenário no Brasil não é um dos mais favoráveis quando se fala em alimentação saudável, mas a nutricionista observa alguns pequenos movimentos se tornando efetivos. "As pessoas estão mais informadas e mais preocupadas com isso."

Comer é um ato político

A pandemia da covid-19 colocou movimentos por uma alimentação saudável em segundo plano, lamenta a médica e colunista de Ecoa Júlia Rocha.

Atendimentos presenciais dos programas de alimentação e nutrição do SUS estão paralisados. O acesso ao alimento também se tornou um problema ainda maior para as populações mais vulneráveis, com dados crescentes de insegurança alimentar. Sem recursos, muitos estão impedidos de escolher o que comer. "Comem o que tem, quando tem", comenta Júlia.

"O Brasil voltou ao mapa da fome", observa a diretora-geral da ACT, Paula Johns. "Isso passa pela pandemia, mas também pelo desmonte de políticas políticas voltadas à alimentação saudável."

"Medidas regulatórias deixam muito a desejar", avalia Paula. Segundo ela, há muito para avançar em áreas prioritárias. Ela cita o ambiente institucional, com foco na escola, tributação de produtos nocivos à saúde, rotulagem nutricional frontal clara, que informe as pessoas com clareza sobre produtos industrializados e restrição de marketing.

O paradigma do nutricionismo está ligado com desigualdades e assimetrias de um poder concentrado na mão de poucos, que aproveitam as crises para criar nichos de mercado, escreve Paula no prefácio de "Nutricionismo", de Gyorgy Scrinis (editora Elefante). Lançado em abril, o livro se aprofunda na intrincada relação entre alimentação e interesses públicos e privados. "Comer é de fato um ato político", conclui Paula.

Se alimentar bem não precisa ser complicado

  • Frutas

    Varie pelo menos duas ao dia

  • Legumes e verduras

    Também duas vezes ao dia, mesmo quando o jantar for um lanche inclua uma cenoura ralada e um alface

  • Arroz e feijão

    Não tenha medo de consumir, são ótimos

  • Proteínas

    Se você come carne, é bom variar a fonte com peixe, porco, carne vermelha e ovo. No link abaixo você como substituir a proteína animal no cardápio

    Leia mais
  • Água

    Beba à vontade. Deixe sucos e outras bebidas para festas e momentos mais esporádicos

Ciclo de Alimentação

A alimentação é um direito previsto na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 e também na Constituição Federal brasileira. Isso significa o Estado tem a obrigação de garantir que a população tenha acesso a alimentos saudáveis e nutritivos em todas as suas refeições.

Com o agravamento da pandemia, mais do que nunca, precisamos falar sobre alimentação e combate à fome, investigar maneiras sustentáveis de produção, olhar para quem garante produtos in natura a preços acessíveis e, claro, cobrar políticas públicas efetivas.

Acompanhe reportagens especiais, entrevistas exclusivas, perfis e colunas para mostrar quem tem criado soluções, instigado reflexões e liderado possibilidades de transformação a partir de diferentes regiões, vivências e realidades.

Ler mais
Topo